Processo n.º 9492/21.3T8LSB-A.L1
Tribunal a quo - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 3
Recorrente - M… (Requerido-Réu)
Recorrido/a(s) - A… (Requerente-Autor) MA… (Requerente-Autora)
Requeridos/as NA… (Requerida) Jn… (Requerido)
Sumário:
I – Tendo
ocorrido a venda de um imóvel, por escritura pública, na pendência de uma acção
em que se discute se dele faz ou não parte um sótão, o vendedor-transmitente
continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por
meio de habilitação, admitido a substituí-lo, nos termos do artigo 263.º, n.º
1, do Código de Processo Civil.
II - Este normativo tem como pressupostos de
aplicação:
i.-
a pendência de uma acção;
ii.-
a existência de uma coisa ou de um direito litigioso;
iii.-
a transmissão da coisa/direito litigioso na pendência de uma acção, por acto
entre vivos;
iv.-
o conhecimento da transmissão na acção.
III – O
adquirente, mesmo que não haja habilitação fica vinculado ao caso julgado que
se forma sobre a sentença proferida na acção.
IV – A
transmissão inter vivos não dá origem a qualquer suspensão
da instância.
V - O
incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa única e simplesmente
produzir a modificação nos sujeitos da lide – ou seja efeitos de natureza meramente processual - não interferindo
nem dando azo a qualquer discussão sobre o direito que constitui o objecto do
processo.
V – O
habilitado substitui o transmitente aceitando a tramitação no estado em que a
encontrar, sem interferir no objecto da causa tal como se encontre já definido.
VI – A admissibilidade da habilitação de
adquirente(s), assim, depende da verificação dos seguintes pressupostos:
1
- a pendência de uma acção;
2
- existência de uma coisa ou de um direito litigioso;
3
- a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção, por acto
entre vivos e conhecimento da transmissão durante a acção;
4
- a validade da transmissão, quer em relação ao objecto, quer em relação à
qualidade das pessoas que nela intervieram, analisando se foi feita a prova
legalmente exigida do acto fundante da cessão;
5
- a verificação pelo Tribunal de que o processo principal segue os seus termos,
com o/a(s) habilitado/a(s) em substituição da anterior parte e que esta sai da
acção.
VI – O
incidente de habilitação de adquirente/cessionário não pode ser decidido
enquanto não tiver sido apreciada a admissibilidade da Reconvenção (e o seu
âmbito), uma vez que disso depende saber se esta apresenta alguma autonomia que
pudesse obrigar a deixar de conhecer o pedido reconvencional ou a manter nos
autos transmitente e adquirente, situações que sempre seriam processualmente inadmissíveis.
VII - O
incidente de habilitação do adquirente/cessionário tem como objectivo a
substituição processual, integral, de um dos sujeitos e não a substituição para
um segmento da causa e a sua manutenção para outro.
.
Relatório
Por apenso à acção declarativa com
processo comum, intentada por A… e MA… contra M…, vieram aqueles requerer a presente habilitação de adquirente, de AN… e JN…, alegando – em síntese – que estes celebraram com o Réu (M…),
uma Escritura Pública de Compra e Venda através da qual adquiriram, livre de
ónus ou encargos (tendo já registado a aquisição), a fracção autónoma
individualizada pela letra “D” e correspondente ao Piso 2 (2.º andar ou sótão),
destinada a habitação, T2, com duas varandas a tardoz, com duas saídas para a
próprio piso, integrada em regime de propriedade horizontal no prédio urbano
sito na Rua …… inscrito na respetiva matriz sob o artigo --- da freguesia de -----
e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º --- da
freguesia de ---- .
Sucede que esse imóvel é o objecto da
acção principal a que a presente habilitação se mostra apensa, pelo que, tendo
ocorrido a sua transmissão, a instância se modifica subjectivamente, nos termos
do disposto nos artigos 262.º, alínea a), 263.º, n.º 1 e 356.º, n.º 1, alínea
a), do Código de Processo Civil, devendo os Requeridos ser admitidos a
substituir o Réu, na qualidade de proprietários da fracção em causa.
Citados os Requeridos e notificado o Réu da acção principal:
-
vieram os Requeridos deduzir oposição, requerendo a improcedência do incidente
e recusando a substituição do Réu por si, nos termos do n.º 2 e/ou n.º 3 do artigo
263.º do Código de Processo Civil, ou em alternativa, ser o presente incidente
de habilitação de adquirente convolado em incidente de intervenção principal
provocada, ordenando-se a citação dos ora Requeridos na qualidade de Réus para
contestar, nos termos do disposto nos artigos 316.º e seguintes.
Alegam, para isso, ser adquirentes da
fracção em causa, como terceiros de boa-fé e que desconheciam em absoluto a
existência de qualquer litígio, judicial ou extrajudicial, entre as partes
sobre a composição e/ou uso da mesma e que tal desconhecimento foi determinante
no negócio. E mais acrescentam que “não estão absolutamente certos” de que o
motivo que determinou o Réu M…(transmitente da referida fracção D), a vender o
imóvel, não tenha sido o de dificultar a posição dos Autores e que se estes
tivessem promovido o competente registo da acção (n.º 3 do artigo 263.º), os
Requeridos teriam tido a oportunidade de a conhecer em tempo e não concluir a
compra.
-
veio o Requerido (Réu) M… pugnar pela improcedência do presente incidente,
alegando que o mesmo não é compatível com o pedido reconvencional por si
deduzido na ação principal, bem como, com o pedido de condenação dos Autores
como litigante de má-fé.
Apreciando as Oposições deduzidas, o Tribunal a quo decidiu julgar procedente incidente de habilitação do adquirente, numa decisão datada de 28/03/2022 e fundamentada nos seguintes termos:
“No
direito processual civil, a habilitação tem por objetivo colocar o sucessor no
lugar que o falecido ou transmitente ocupava no processo pendente e certificar
que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica em que esta se
encontrava.
Tal
como vem proposta pelos Requerentes, a habilitação configura-se como incidente
de uma causa que corre em juízo, ou seja, segundo a modalidade da habilitação
incidental, a que se alude no artigo 351.º e seguintes, do Código de Processo
Civil, baseada na transmissão da coisa ou direito em litígio.
Dispõe
o artigo 351.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que “a habilitação dos
sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem
os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que
sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as
partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem
requerentes”, com isto querendo significar que, em processo civil, a
habilitação propõe-se como objetivo certificar que determinada pessoa sucedeu a
outra na posição jurídica que esta ocupava.
No
caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o
transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente
não for, por meio de habilitação, admitido a substitui-lo, podendo a
habilitação ser promovida, também, pela parte contrária, para além do transmitente
ou do adquirente, nos termos das disposições combinadas dos artigos 263.º, n.º
1, e 356.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Trata-se
de uma habilitação «inter vivos» que, ao invés do que acontece nas situações de
transmissão «mortis causa», se apresenta com carácter facultativo, não sendo,
assim, condição «sine qua non» do prosseguimento da causa, pois que, enquanto
tal não ocorrer, o transmitente continua a ter legitimidade para a demanda, até
ao final do pleito, sendo certo que, por outro lado, a dedução do incidente não
susta o andamento da causa principal e da instância Alberto dos Reis, Código de
Processo Civil Anotado, I, 1980, 604.
O
adquirente pode ser habilitado como sucessor do alienante, ou deixar de o ser,
continuando, neste caso, o transmitente a figurar como parte, ainda que já não
tenha interesse na ação, passando, então, à categoria de substituto processual
do adquirente ou do cessionário Alberto dos Reis, Comentário ao Código de
Processo Civil, Volume 3º, 1946, 74 e ss.
Considerando
que estamos perante um incidente de habilitação do adquirente ou cessionário,
previsto no art. 356.º do Código de Processo Civil, a oposição terá de se
cingir a dois casos:
-
Invalidade formal ou substancial da cessão;
-
A transmissão ter sido feita para tornar mais difícil a posição do requerido.
Analisados
os documentos juntos pelos Requerentes aos presentes autos, designadamente a
Escritura de Compra e Venda e a certidão da Conservatória Predial de Lisboa
(cfr. fls. 4. a 8.), há que concluir pela inexistência de qualquer invalidade
formal.
Por
outro lado, os Requeridos, em sede da contestação apresentada, limitaram-se a
alegar que “(…) não estão absolutamente certos de que o motivo que determinou o
Réu M…, transmitente da fração D aos Requeridos, a promover, como promoveu e
fez, a venda do imóvel, não foi o de dificultar a posição dos AA”.
Para
que a oposição deduzida seja atendível nos termos e para os efeitos do disposto
no art. 356.º, n.º 1, alínea a), segunda parte, do Código de Processo Civil,
deveria traduzir-se numa afirmação perentória, acompanhada da invocação dos
factos que lhe servem de suporte para dificultar a sua própria posição e não a
dos Requerente.
É
que, não obstante os Requeridos estarem em desacordo com a habilitação
deduzida, a substituição só deveria ser recusada, em conformidade com o que
resulta do artigo 263.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando se entenda
que a transmissão padece de invalidade formal ou substancial da cessão, ou foi
efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária –
vide Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3º, 1946,
79 e 80.
Tal
como referimos, ambas as situações improcedem.
Também
não colhe a questão da falta de registo da presente ação, porquanto, o segmento
legal previsto no n.º 3 do art. 263.º apenas é aplicável caso não haja lugar à
substituição legal.
Ressalve-se
que os ora Requeridos, caso assim o entendam, sempre poderão fazer valer os
seus direitos contra o Ré vendedor, em ação futura.
Por
sua vez, em sede da ação principal o Réu M… alega ter deduzido pedido
reconvencional com vista a ser reconhecido que o sótão faz parte da fração
autónoma em causa e, na negativa, que é uma parte comum de uso exclusivo da
mesma fração.
Acontece
que o aludido pedido reconvencional é indissociável da fração autónoma em causa
e do direito real de propriedade que lhe está subjacente, o qual, como acima
ficou demonstrado passou para a titularidade dos Requeridos.
Acresce
que o pedido de condenação dos ora Requerentes, Autores na ação principal, não
tem autonomia, pelo que nunca, por si só, poderia pôr em causa a procedência do
presente incidente de habilitação.
Assim
sendo, atendendo à documentação constante dos autos, é de reconhecer os
Requeridos como adquirentes, nos termos e para os efeitos previstos no disposto
no art. 356.º do Código de Processo Civil.
Nestes
termos e atento o disposto no artigo 356.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo
Civil, decide-se julgar os Requeridos AN…, e JN…, habilitados a intervir como
adquirentes na ação principal, na qualidade de Réus, em substituição do Réu
primitivo.
*
Custas
pelos Requeridos - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
*
Notifique e registe”.
É desta
decisão que vem interposto recurso por parte do Requerido-Réu M…, o qual apresentou
as suas Alegações, onde lavrou
as seguintes Conclusões:
“a)
O Recorrente considera que a habilitação do adquirente requerida pelos Autores
não é legalmente admissível;
b)
O Recorrente peticionou a condenação dos autores como litigantes de má fé e que
fosse considerada ilidida a presunção de que o sótão é uma parte comum fazendo
parte da fração ou, se assim não se entender, reconhecer-se que sótão é uma
parte comum do uso exclusivo da fração;
c)
Considera o Recorrente que os Autores alteraram, dolosamente, a verdade dos
factos, imputando-lhe comportamentos ilícios que não praticou;
d)
O artigo 542.º, n.º 1, do CPC diz que tendo litigado de má-fé, a parte é condenada
em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir;
e)
Tendo sido formulado pelo Recorrente um pedido de indemnização por litigância
de má-fé dos Autores, a correspondente apreciação/julgamento e eventual
condenação, constitui objeto de pretensão de que o juiz não pode deixar de
conhecer.
f)
O Recorrente tem interesse em contrariar a versão dos Autores, fazendo prova da
versão alegada na contestação/reconvenção, ilidindo a presunção de que o sótão
é uma parte comum fazendo parte da fração ou, se assim não se entender,
reconhecer-se que sótão é uma parte comum do uso exclusivo da fração;
g)
Os Autores alegam factos (falsos) que colocam em causa a conduta do Autor, nomeadamente
alegando que este procedeu a uma abertura ilegal na sua fracção autónoma para o
sótão, o que este não aceita e lhe interessa contrariar para salvaguardar a sua
posição perante terceiros.
h)
Essa defesa não poderá ser assumida pelos adquirentes, conforme resulta, aliás,
do teor da sua contestação ao presente incidente de habilitação;
i)
O Recorrente mantém interesse na demanda, nomeadamente na apreciação do pedido
reconvencional e condenação dos Autores como litigantes de má-fé, da qual não
prescinde.
j)
Não é admissível o incidente de habilitação do adquirente ou cessionário quando
tenha sido deduzida reconvenção por não ser possível manter dois Réus na acção;
k)
A habilitação inviabilizava a apreciação do pedido reconvencional, isto porque
não existe a possibilidade legal de em consequência da procedência do incidente
de habilitação o transmitente e adquirente permanecerem na lide ou de se se
cindir o objeto da ação excluindo-se a apreciação do pedido reconvencional;
l)
O pedido de condenação formulado pelo Recorrente tem por base uma faculdade
legal e que o Tribunal a quo não pode deixar de apreciar;
m)
O ora recorrente não se limitou a improcedência do pedido dos Autores, mas
deduziu contra estes uma pretensão autónoma de condenação
n)
Não sendo possível a habilitação processual, nomeadamente por existir pedido
reconvencional, o processo prosseguirá os seus legais termos com o transmitente
da coisa ou do direito em litígio;
o)
A habilitação de adquirente ou cessionário tem natureza meramente facultativa,
uma vez que a transmissão da coisa ou do direito em litígio não opera a
suspensão da instância da ação em curso e o transmitente continua a ter
legitimidade para a causa até ao seu termo;
Pelo
exposto, deve a decisão recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra
que considere improcedente o pedido de habilitação de AN… e JN… para intervir
na acção principal, na qualidade de Réus, em substituição do ora recorrente,
com o que farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA”.
Os
Requerentes-Autores apresentaram Contra-Alegações
nas quais concluíram que:
“A.
Os Recorridos intentaram contra o Recorrente ação declarativa de condenação sob
a forma de processo comum, tendo sido por este apresentada Contestação – cfr. a
Petição Inicial, Ref.ª CITIUS 29000302, de 20.04.2021, e a Contestação, Ref.ª
CITIUS 29538744, de 15.06.2021.
B.
Os Recorridos, por apenso aos autos principais, deduziram incidente de
habilitação de adquirente contra AN… e JN…, no âmbito do qual peticionaram que
os Requeridos fossem habilitados na qualidade de Réus, em substituição do
Recorrente, tendo sido apresentada Contestação por parte dos Recorridos e do
Recorrente – cfr. o Requerimento Inicial, Ref.ª CITIUS 30043954, de 16.08.2021,
a Contestação. Ref.ª CITIUS 30425885, de 01.10.2021, e a Contestação, Ref.ª
CITIUS 31747092, de 21.02.2022.
C.
A Sentença Judicial proferida pelo Tribunal a quo julgou os Requeridos AN… e JN…,
habilitados a intervir como adquirentes na ação principal, na qualidade de
Réus, em substituição do Recorrente – cfr. a Sentença Judicial, Ref.ª CITIUS
414311801, de 28.03.2022.
D.
A douta decisão judicial não merece qualquer censura, inexistindo incorreta
aplicação do Direito ao caso em apreço.
E.
Existe, e de forma clarividente, inobservância das regras legais aplicáveis à
alegação e formulação de conclusões em sede de impugnação da matéria de
direito, bem como errónea interpretação do Direito por parte do Recorrente. Com
efeito,
F.
Em sede de Conclusões – e, aliás, também em sede de Alegações – o Recorrente
não indicou as normas jurídicas putativamente violadas, nem, tão pouco, o
sentido com que, no seu entender, as normas que constituiriam fundamento
jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e/ou aplicadas pelo
Tribunal a quo.
G.
O Recorrente incumpriu os ónus de especificação, que sobre o mesmo recaiam, nos
termos do disposto no art. 639.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo
Civil, devendo, por esse motivo, e sem mais, ser convidado a completar as
conclusões contidas nas Alegações de Recurso, sendo o Recurso de Apelação
liminarmente rejeitado caso o Recorrente não dê cumprimento a tal convite de
aperfeiçoamento – cfr. ainda, o art. 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Sem prescindir,
H.
A oposição em sede de incidente de habilitação de adquirente encontra-se, nos
termos da Lei, limitada à verificação de um de dois fundamentos, a saber: (i)
invalidade formal ou substancial do acto de transmissão; ou (ii) haver a
transmissão ter sido feita para tornar mais difícil a posição dos Requeridos
nos autos principais – cfr. os arts. 263.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 1, do
Código de Processo Civil; e, na jurisprudência, o ac. do Tribunal da Relação de
Lisboa de 07.12.2021 (RELATOR: MICAELA SOUSA), e os acs. do Tribunal da Relação
de Guimarães de 23.04.2020 (RELATOR: JOSÉ MOREIRA DIAS), de 14.03.2019
(RELATOR: ALCIDES RODRIGUES), e de 21.06.2018 (RELATOR: MARIA CRISTINA CERDEIRA).
I.
Não se verifica, in casu, qualquer um dos fundamentos admissíveis para a
oposição ao incidente de habilitação de adquirente, porquanto:
(i)
a Escritura de Compra e Venda e a certidão da Conservatória Predial de Lisboa,
que se encontram juntas aos autos, não enfermam de qualquer invalidade formal
ou substancial (cfr. os docs. n.ºs 1 e 2, juntos pelos Recorridos no seu
Requerimento Inicial, Ref.ª CITIUS 30043954, de 16.08.2021, e a Sentença
Judicial, Ref.ª CITIUS 414311801, de 28.03.2022);
(ii) os Requeridos não alegaram
quaisquer factos que corroborem ter sido a transmissão da fracção subjacente ao
presente litigio feita para tornar mais difícil a posição processual dos Requeridos
(cfr. a Contestação. Ref.ª CITIUS 30425885, de 01.10.2021 e a Sentença Judicial,
Ref.ª CITIUS 414311801, de 28.03.2022);
(iii)
o Recorrente limitou-se fundamentar a alegada inadmissibilidade do incidente em
virtude de haver deduzido Reconvenção aquando da apresentação da sua
Contestação nos autos principais, o que, nos termos da Lei, não constitui
fundamento de oposição à habilitação dos adquirentes.
J.
Não configuram, naturalmente, obstáculos à habilitação
(i)
o (putativo) pedido reconvencional apresentado pelo Recorrente, que se mostra
absolutamente incognoscível (inexistindo quer a formulação de um pedido, quer a
invocação de uma qualquer causa de pedir no mesmo âmbito), bem como
(ii)
a (absurda) invocação de má fé no mesmo âmbito – cfr., aliás, a douta Sentença
Judicial, Ref.ª CITIUS 414311801, de 28.03.2022.
K.
O Recorrente apenas se opõe à habilitação porque visa, afinal, que a decisão
judicial a proferir não adquira efeito de caso julgado a respeito dos
adquirentes, uma vez que os mesmos adquiriram a fração na convicção de que a
mesma possui configuração e áreas que, na realidade, não possui, fazendo tal
parte da lamentável estratégia de apropriação de partes comuns do imóvel gizada
pelo Recorrente.
L.
A decisão judicial proferida pelo Tribunal a quo deve ser mantida nos seus
exatos termos atenta a absoluta ausência de fundamento do presente Recurso".
Questões a Decidir
São as Conclusões
do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º
1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do
tribunal ad quem (exercendo uma
função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES
GERALDES[1]),
sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
(artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo
qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu,
há apenas que verificar se a venda do imóvel a que se refere a acção à qual os
presentes autos estão apensos, pelo ali Réu aos aqui Requeridos, faz com que
estes possam ser habilitados em sua substituição e se se mostram reunidos todos
os pressupostos para a procedência do incidente de habilitação de adquirente.
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação de Facto
Releva
para a presente decisão a seguinte factualidade:
1
– O processo principal apenso deu entrada em juízo a 20/04/2021.
2
– Os pedidos nele formulados pelos Autores, ora Requerentes, foram os
seguintes:
“a)
Ser reconhecido que o sótão do edifício sito na Rua …, n.º --, freguesia de ---,
concelho de Lisboa é parte-comum do mesmo, edifício sendo compropriedade de
todos os condóminos, desde logo dos AA., e que o R. não possui qualquer direito
de propriedade ou de uso exclusivo sobre o mesmo;
b)
Ser reconhecido o direito dos AA. a aceder ao sótão do edifício sito na Rua ---,
n.º --, freguesia de ---, concelho de Lisboa, parte-comum do mesmo, sendo o R.
condenado a observar tal direito;
c) Ser o R. condenado a retirar do sótão do
edifício sito na Rua ---, n.º --, freguesia de ---, concelho de Lisboa, o
cilindro para aquecimento de água que no mesmo abusivamente colocou, bem como
ser o R. condenado a abster-se da prática de qualquer futura conduta sobre a
referida área comum do edifício;
d)
Ser o R. condenado a retirar de anúncios de alienação da sua fração autónoma a
referência ao sótão do edifício sito na Rua ---, n.º --, freguesia de ---,
concelho de Lisboa, como sua parte integrante ou de uso exclusivo, bem como a,
de futuro, não publicar ou permitir a publicação de anúncios de alienação da
sua fração autónoma que possuam a mesma ou análoga referência;
e)
Ser o R. condenado no pagamento de sanção pecuniária compulsória de € 500,00
diários por cada dia em que incumpra os deveres a que deve ser condenado nos
termos das alíneas b) a d) supra”.
3
– Na Contestação (apresentada a 15/06/2021), o Réu (ora Recorrente),
autonomizou um pedido reconvencional (“Da Reconvenção” – artigos 74.º e
seguintes) e um incidente de litigância de má fé, terminando o articulado da
seguinte forma:
“Termos
em que, e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve:
a)
a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, com as legais
consequências.
b)
Serem os Autores condenados como litigantes de má-fé com as legais
consequências;
c)
Ser a reconvenção ser julgada procedente, por provada, com as legais
consequências”.
4
– Em sede de Réplica (apresentada a 07/07/2021), os Autores, ora Requerentes
pediram o indeferimento liminar da Reconvenção “por se verificar excepção dilatória
insuprível, de inexistência/incognoscibilidade do pedido reconvencional” e que seja “julgado totalmente
improcedente, por não provado, o pedido de condenação dos AA. enquanto
litigantes de má fé, sendo o R. condenado em custas pelo ilícito incidente
causado”.
5
– Ainda não foi apreciada a admissibilidade do pedido reconvencional no
processo principal.
6
– Por escritura pública de Compra e Venda celebrada em 05.07.2021, perante o
notário A---, os ora Requeridos adquiriram ao Réu, livre de ónus ou encargos, a
fracção autónoma subjacente aos autos principais, individualizada pela letra
“D” e correspondente ao Piso 2 (segundo andar ou sótão) - destinada a habitação
- T dois, com duas varandas a tardoz, com duas saídas para a escada comum do
prédio no próprio piso, integrada em regime de propriedade horizontal no prédio
urbano sito na Rua ---, n.º --, inscrito na respetiva matriz sob o artigo --- da
freguesia de --- e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o
n.º --- da freguesia de …;
7
– Os ora Requeridos procederam ao registo da aquisição da referida fracção “D”
a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Pombal, nos termos da
apresentação ---- de 09.07.2021 – Fls. 4 a 8.
Fundamentação
de Direito
Antes
de mais assinale-se que, de acordo com o n.º 2 do artigo 639.º do Código de
Processo Civil, versando “o
recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)
As normas jurídicas violadas;
b)
O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem
fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c)
Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no
entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Referem
os Recorridos-Requerentes que o Recorrente-Requerido não diz quais as normas
que considera violadas nem o sentido que lhes dá e qual o entendimento que
deveria ter ficado reflectido na Sentença.
Todavia
verificadas as Alegações e respectivas Conclusões crê-se que – pelos mínimos é
certo – este desiderato foi cumprido, uma vez que nelas se reporta sempre
expressamente o incidente de habilitação e a interpretação que dele faz o
Recorrente no sentido da sua inadmissibilidade em concreto.
*
Para
apreciação deste recurso temos de convocar para análise os artigos 351.º a
357.º do Código de Processo Civil (em especial, os 352.º, n.º 1 e 356.º), relevando
ainda – em fundo – o artigo 263.º do mesmo diploma.
Assim,
o artigo 263.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, assinala que “no caso de
transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o
transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não
for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”.
Por
seu turno, o n.º 2 do mesmo preceito completa o enquadramento assinalando que “a substituição é
admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só
deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada
para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária”.
Estamos
ainda, há que sublinhá-lo, no âmbito da relação material controvertida e não no
plano processual (ao qual, todavia, o n.º 1, já faz referência com o “enquanto o
adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”).
Ou
seja, o que aqui está em causa é a previsão legal de uma situação em que, no
decurso de um processo judicial (e de forma “a evitarem-se os prejuízos que a parte
estranha à transmissão sofreria com uma demora na resolução do litígio”[2]), alguém (o
alienante/transmitente) mantém legitimidade processual, num caso em que deixou
de ser proprietário do bem ou do direito, sendo que, concomitantemente, “se sujeita o
transmissário aos resultados da acção”[3].
Este
normativo tem “quatro
pressupostos de aplicação, a saber:
1.º
A pendência de uma acção.
2.º
A existência de uma coisa ou de um direito litigioso.
3.º
A transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção por acto
entre vivos;
4.º
O conhecimento da transmissão na acção.
Verificando-se,
cumulativamente, todos os pressupostos, apesar da transmissão, o processo não
será suspenso, mantendo-se a legitimidade do transmitente até à eventual
habilitação do transmissário. Porém, e mesmo que a habilitação não ocorra, o
adquirente ficará vinculado ao caso julgado que se forma sobre a sentença
proferida na acção”[4].
A
presença do transmitente na acção e enquanto nela permanecer (com uma
legitimidade ad hoc extraordinária, como sublinha Paula Costa e Silva) não resulta do seu interesse directo ou
indirecto em nela permanecer, mas sim no interesse da protecção do
transmissário: repare-se que “são
fundamentalmente os interesses da parte estranha à transmissão que justificam a
presença do transmitente enquanto parte legítima na acção”, “a fim de a instância
decorrer regularmente até final” [5].
Dando
corpo processual a esta matéria, o Código de Processo Civil, prevê nos artigos
351.º a 357.º o incidente de habilitação, reservando o artigo 356.º
precisamente para a “(Habilitação do adquirente ou cessionário)”, no qual
concretiza em que termos ela se faz no decurso de uma acção:
-
lavrando no processo um termo de cessão – n.º 1, alínea a);
-
juntando ao requerimento de habilitação - autuado por apenso - o título da
aquisição ou da cessão – n.º 1, alínea a);
-
notificando a parte contrária para contestar e, aí:
-
contestando, o notificado apenas
pode impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para
tornar mais difícil a sua posição no processo – n.º 1, alínea a);
-
em reacção o/a Requerente pode responder-lhe, seguindo-se a produção de prova e
a decisão – n.º 1, alínea b);
-
não contestando, o Tribunal verifica se o documento prova a aquisição ou a cessão
e, no caso afirmativo, declara habilitado o adquirente ou cessionário – n.º 1,
alínea b).
Linearmente
é assim que sucede e, daqui, começa por decorrer que – ao contrário do que
sucede no caso das transmissões mortis
causa ou de extinção de pessoa
colectiva – a transmissão inter vivos,
não gera qualquer suspensão da instância (cfr. artigos 269.º e 270.º), sendo
que “o
conhecimento destes factos não exerce influência na tramitação processual”[6].
Assim,
“por via
do incidente de habilitação do cessionário, permite-se que o cedente seja
substituído no processo pelo cessionário, o qual adquire a posição processual
que o cedente tinha no pleito, não sendo admissível que continuem ambos na
lide”[7].
E
a simplicidade e celeridade que se pretendem com este incidente está patente,
desde logo, na circunstância de a prova do contrato de cessão ser “documental – um
título escrito que prove a cessão (seja o contrato escrito de cessão, seja
outro título/declaração de aquisição ou cessão, seja termo de cessão lavrado no
processo) – não tendo de expressar o exato montante da obrigação ao tempo da
transmissão, mas devendo identificar o crédito de molde a permitir saber qual o
objeto da cessão (RC 3-10-17, 13/09)”[8].
O
incidente visa única e simplesmente produzir a modificação nos sujeitos da lide
– ou seja, efeitos de natureza
meramente processual - não interferindo nem dando azo a qualquer
discussão sobre o direito que constitui o objecto do processo, como
expressamente assinalam António Abrantes
Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa[9], referindo o Acórdão da Relação do
Porto de 26/02/2008 (Processo n.º 0726574-Guerra
Banha): “O
incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, tão só, produzir
modificação nos sujeitos da lide; produz, deste modo, efeitos de natureza
meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem
interferir com a discussão do direito que constitui o objecto da causa, tal como
é configurado pelo pedido e pela causa de pedir”.
No
mesmo sentido, o mais recente Acórdão da Relação de Lisboa de 07/12/2021
(Processo n.º 134/10.3TBCTX-D.L1-7-Micaela
Sousa) escreve que, com “a dedução do incidente de habilitação do cessionário
pretende-se apenas a modificação dos sujeitos na lide, pelo que os seus efeitos
são de natureza meramente processual, ou seja, não comporta a discussão e
decisão sobre o direito que constituiu o próprio objecto da causa”[10]: “O habilitado
sucedendo na posição processual do transmitente tem de aceitar a tramitação no
estado em que a encontrar, impulsionando apenas para o futuro e dentro destes
limites, sem interferir com o objeto da causa” (Acórdão da Relação de Évora de
07/11/2019, Processo n.º 1898/18.1T8PTM.E1-Mário
Silva).
E
é por isto que os fundamentos para contestar o incidente são tão limitados: não “se compreendendo
nas finalidades do incidente a discussão do direito substantivo em litígio na
causa principal, justifica-se que a oposição à habilitação pela parte contrária
esteja limitada a dois fundamentos referidos na al. a) do n.º 1 do art. 356.º
do CPC:
i)-
a invalidade (formal ou substancial) do acto de cessão ou transmissão, quer
quanto ao objeto, quer quanto às pessoas que nele intervieram, ou
ii)-
que a cessão ou transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição na
causa principal” (Acórdão da Relação de Guimarães de 14/03/2019, Processo
n.º 4141/16.4T8GMR-A.G1-Alcides Rodrigues);
iii)-
“que não
se encontra feita a prova legal da transmissão pelo requerente do incidente” (Acórdão da
Relação de Guimarães de 23/04/2020, Processo n.º 5239/16.4T8GMR-A.G1-José Moreira Dias).
A admissibilidade
da habilitação de adquirente(s), assim, depende da verificação dos seguintes
pressupostos:
-
a pendência de uma acção;
-
existência de uma coisa ou de um direito litigioso;
-
a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção, por acto
entre vivos e conhecimento da transmissão durante a acção;
-
a validade da transmissão, quer em relação ao objecto, quer em relação à
qualidade das pessoas que nela intervieram, analisando se foi feita a prova
legalmente exigida do acto fundante da cessão (assim, vd., o já citado Acórdão
da Relação de Lisboa de 03/12/2021, Processo n.º 134/10.3TBCTX-D.L1-7-Micaela Sousa).
E, a estes,
cremos ser de acrescentar um outro: a
verificação pelo Tribunal de que o processo segue os seus termos, com o/a(s)
habilitado/a(s) em substituição da anterior parte e que esta sai da acção.
Este acrescento
surge, precisamente, por força de situações como a presente nestes autos.
O
Réu na acção, à data em que esta foi intentada era o proprietário do imóvel em
causa e, por isso, contra ele foram deduzidos os pedidos.
Foi
também ele, enquanto proprietário e Réu, que Contestou e deduziu pedido
reconvencional.
Poucos
dias depois de dar entrada em juízo o seu articulado, o Réu – por escritura
pública – vendeu o imóvel em causa aos ora Requeridos AN… e JN….
Materialmente
são eles que passam a ser os proprietários do prédio, mas, como vimos, por
força do artigo 263.º, n.º 1, mantém-se extraordinariamente a legitimidade do
Réu, vendedor, transmitente, até à sua eventual habilitação, enquanto
compradores/transmissários.
Foi
essa habilitação que os ora Requerentes e Autores na acção principal promoveram
com os presentes autos, tendo os Requeridos (novos proprietários) apresentado
oposição.
Proferida
Sentença habilitando-os a prosseguir no processo principal em substituição do
Réu, veio este apresentar o presente recurso e colocando questões que se têm
como pertinentes, embora não seja claro que lhe assista razão quanto ao fundo
da sua pretensão.
No
que à Contestação do incidente por parte dos Requeridos respeita, o Tribunal a quo decidiu bem e de forma linear, considerando
o tipo de fundamento passível de ser utilizado e a forma tíbia como tais
Requeridos afirmaram, não estarem certos que o Réu tivesse feito a venda com o
fim de dificultar a posição dos Autores: “Para que a oposição deduzida seja atendível
nos termos e para os efeitos do disposto no art. 356.º, n.º 1, alínea a),
segunda parte, do Código de Processo Civil, deveria traduzir-se numa afirmação
perentória, acompanhada da invocação dos factos que lhe servem de suporte para
dificultar a sua própria posição e não a dos Requerente.
É
que, não obstante os Requeridos estarem em desacordo com a habilitação
deduzida, a substituição só deveria ser recusada, em conformidade com o que
resulta do artigo 263.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando se entenda que
a transmissão padece de invalidade formal ou substancial da cessão, ou foi
efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária”.
Já
no que respeita à argumentação utilizada pelo Réu e ora Recorrente, a situação
muda de figura, embora sem as consequências em concreto por si pretendidas.
Efectivamente,
a circunstância de o Réu ter deduzido um pedido reconvencional é susceptível de
lhe poder dar razão quando afirma que não pode ser excluído da acção.
Verificados
os autos principais não é, todavia, claro o que é que o Réu fez…
Vejamos:
-
no pedido com que termina a Contestação (transcrito na matéria factual sob o
n.º 3), apenas referir “Termos
em que, e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve:
a)
a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, com as legais
consequências.
b)
Serem os Autores condenados como litigantes de má-fé com as legais
consequências;
c)
Ser a reconvenção ser julgada procedente, por provada, com as legais
consequências”;
-
a partir do artigo 75.º do articulado afirma que “Deve, por isso, ser reconhecido que o
sótão faz parte da fração do Réu” (artigo 85.º), que “Se assim não se
considerar, sempre deve reconhecer-se que sótão é uma parte comum do uso
exclusivo da fração do Réu” (artigo 86.º) e que, como lhe são imputadas
condutas “manifestamente
ilegais e criminais” (artigo 89.º), tendo ele direito ao seu crédito bom
nome, os “Autores
incorreram em responsabilidade civil extra-contratual e, consequentemente,
constituíram-se na obrigação de indemnizar os danos daí resultantes” (artigo
91.º), “encontram-se
cumpridos todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos” (artigo
93.º) e tendo-se sentido “vexado, humilhado e
ofendido na sua honra e consideração” (artigo 100.º), lhe foram causados “danos não
patrimoniais indemnizáveis, computando-se para seu ressarcimento em quantia
nunca inferior a € 5.000,00, mas que poderá ser superior se o comportamento dos
Autores se mantiver” (artigo 106.º);
-
os Autores, em sede de Réplica, vieram defender a não admissão da Reconvenção
(aliás, com sólida argumentação).
Certo,
por outro lado, que o Tribunal a quo,
na decisão sob recurso, afirma - quanto a esta matéria - que o Réu “alega ter deduzido
pedido reconvencional com vista a ser reconhecido que o sótão faz parte da
fração autónoma em causa e, na negativa, que é uma parte comum de uso exclusivo
da mesma fração.
Acontece
que o aludido pedido reconvencional é indissociável da fração autónoma em causa
e do direito real de propriedade que lhe está subjacente, o qual, como acima
ficou demonstrado passou para a titularidade dos Requeridos.
Acresce
que o pedido de condenação dos ora Requerentes, Autores na ação principal, não
tem autonomia, pelo que nunca, por si só, poderia pôr em causa a procedência do
presente incidente de habilitação”.
Ora,
se este argumento funciona para o que respeita ao reconhecimento de que o sótão
faz parte do prédio do Réu, ou é parte comum do prédio em que aquele se insere,
tal já não sucede quanto a um eventual pedido de indemnização por
responsabilidade civil, por danos que só a si – pessoalmente – respeitam.
O
que se passa é que, havendo uma Reconvenção admitida que não seja a mera
contraposição do pedido do Autor ou que respeite a alguma situação pessoal do
Réu e não de si dissociável, a habilitação de um/a transmissário/a do
bem/direito em causa nos autos, levaria a que se não pudesse proceder a uma
substituição processual, mas que ficassem no processo mais partes (e, como
atrás se disse, não é “admissível
que continuem ambos na lide”[11]).
Ora
como bem se afirmou no Acórdão da Relação do Porto de 30/01/2012 (Processo n.º 115/09.0TBCHV-A.P1-Maria Adelaide Domingos), “o elemento
caracterizador do incidente de habilitação do adquirente/cessionário é precisamente
a substituição processual de um dos sujeitos e não a substituição para um
segmento da causa e a sua manutenção para outro.
Também
nos parece evidente que a apreciação da reconvenção não pode ficar prejudicada
por ter havido uma cessão de créditos pelo lado activo durante a pendência da
causa na qual já tinha sido deduzido e admitido o pedido reconvencional.
E
sempre se dirá que se a habilitação do adquirente/cessionário não é admitida
quando a cessão tenha sido feita com vista a tornar mais difícil a posição do
cedido no processo, por maioria de razão também não poderá ser admitida quando
implica a impossibilidade de apreciação de um pedido reconvencional deduzido
pelo cedido contra o cedente”, pelo que, nesses casos, o incidente de
habilitação não pode ser atendido, já que o modo como a lei o desenha “permite apenas duas
opções: ou a cedente continua na lide, já que a habilitação decorrente da
transmissão entre vivos da coisa ou direito litigiosa, é facultativa, ou a
cessionário intervém na lide, através da habilitação e, nesse caso, substituiu
a cedente adquirindo a posição processual in totum que a mesmo tinha no pleito.
Não há a possibilidade de ambas permanecerem na lide, nem a possibilidade de se
cindir o objecto da mesma, excluindo a apreciação do pedido reconvencional, por
força da substituição do sujeito processual cedente pelo sujeito processual
cessionário, quando este não adquiriu, na totalidade, por via do negócio
transmissivo, a posição contratual do cedente”.
Na
mesma linha, também o Acórdão da Relação do Porto de 26/06/2017 (Processo n.º 1701/15.4T8PVZ-A.P1-Augusto de Carvalho), concluiu que a “habilitação do
cessionário apenas é possível se este substituir integralmente o autor
primitivo. Não é possível a habilitação do cessionário da qual resulte a
manutenção na acção do primitivo autor, ainda que para apreciação de parte do
seu objeto”,
uma vez que “a
substituição da autora pela cessionária, em virtude da habilitação desta,
inviabilizaria a apreciação do pedido reconvencional”.
O
mesmo entendimento foi seguido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo
Norte de 12/10/2018 (Processo n.º 02861/14.7BEBRG-B-Frederico
Macedo Branco), assumindo-se que a “habilitação do cessionário apenas é
possível se este substituir integralmente o autor primitivo”, não sendo possível
a habilitação
“da qual resulte a manutenção na ação do primitivo autor, ainda que para
apreciação de parte do seu objeto”, desde logo porque a “substituição do autor
pelo cessionário, em virtude da habilitação deste, inviabilizaria a apreciação
do pedido reconvencional”.
Reportando-nos
ao processo principal ao qual os presentes autos se mostram apensos, sendo
admitido o pedido reconvencional e abrangendo este uma indemnização ao
Reconvinte, por danos por si sofridos, a habilitação não poderia ser admitida[12] e
haveria de funcionar na plenitude o artigo 263.º, nºs 1 a 3, do Código de
Processo Civil.
Só
que… a Reconvenção mostra-se deduzida, foi contrariada a sua admissibilidade e
o Tribunal ainda não teve oportunidade (porque não foi aberta conclusão para o
efeito) de sobre a matéria se pronunciar.
Só
depois desse momento, só depois de estar assente a existência de um pedido
reconvencional e em que termos e com que dimensão, é que será possível decidir
o presente incidente de habilitação.
Em
conformidade com o exposto, a decisão proferida (aliás, bem fundamentada), foi
prematura e não podia ter sido prolatada sem se saber se a Reconvenção estava
ou não admitida, pelo que terá de ser revogada, sendo substituída por outra que
determinará que o processo aguarde que nos autos principais seja decidida a
admissibilidade da Reconvenção.
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar parcialmente procedente a
apelação, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que
determina que os autos aguardem a decisão no processo principal, quanto à
admissibilidade da Reconvenção.
Custas
a cargo dos Recorridos.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 21 de Junho de 2022
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1]
António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo
Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Paula Costa e Silva, Um desafio à Teoria Geral do Processo-Repensando a Transmissão da Coisa ou
Direito em Litígio-Ainda um
contributo para o estudo da substituição processual (uma 2.ª edição), Coimbra Editora, 2009, página 84.
[3] Paula Costa e Silva, Um desafio…, cit., página 84.
[4] Paula Costa e Silva, Um desafio…, cit., página 70.
[5] Paula Costa e Silva, Um desafio…, cit., páginas 191 e 192.
[6]
António Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires
de Sousa,
Código de Processo Civil Anotado, I, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 432.
[7] António Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa,
Código…, ob. loc. cit..
[8]
António Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires
de Sousa,
cit., páginas 432-433.
[9]
António Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires
de Sousa,
cit., página 432.
[10]
Também concluem
no mesmo sentido os Acórdãos da Relação de Guimarães de 23/04/2020 (Processo
n.º 5239/16.4T8GMR-A.G1-José Moreira Dias),
de 14/03/2019 (Processo n.º 4141/16.4T8GMR-A.G1-Alcides Rodrigues) e de 21/06/2018 (Processo n.º 7153/15.1T8GMR-Maria Cristina Cerdeira), da Relação de
Évora de 07/11/2019 (Processo n.º 1898/18.1T8PTM.E1-Mário Silva) e da Relação de Coimbra de 16/03/2021 (Processo n.º 132/12.2TBCNT-E.C1-Carlos Moreira).
[11] António Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa,
Código…, ob. loc. cit..
[12]
Sendo que, o que
respeita ao incidente de litigância de má fé, esse sim, não teria qualquer
autonomia que fizesse perigar a procedência da habilitação.
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