Sumário (elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
I – A
presença do Tempo como factor conformador das situações jurídicas está
particularmente presente na prescrição, a qual pressupõe a existência de um
direito, o seu não exercício e o decurso do Tempo.
II - O
fundamento da prescrição assenta na inércia negligente do titular do direito em
exercitá-lo e impõe, por razões de certeza e segurança jurídica, protecção dos
devedores e estímulo ao exercício dos direitos, a gravosa consequência de
extinguir da obrigação (ou, pelo menos, permitir que o obrigado possa recusar o
cumprimento).
II – O
artigo 310.º, alínea e), do Código Civil estabelece um prazo prescricional de 5
anos, para capital e juros correspondentes que devam ser pagos de forma
conjunta.
III – Esta
alínea abrange as obrigações pecuniárias decorrentes de um plano de amortização
do capital e dos juros correspondentes, a pagar em prestações periódicas e
sucessivas e que correspondem a uma fracção de capital e uma de juros, em
proporções variáveis, mas a pagar conjuntamente.
IV – É o
facto de estarem causa estas diversas prestações periódicas (com capital e
juros), plasmadas no plano de amortização, que justifica a aplicação do prazo
da referida alínea e) (a expressão “quotas de amortização” designa prestações
fraccionadas ou repartidas que se caracterizam pela ausência de notas de
autonomia).
V – Esta
prescrição destina-se a incentivar a diligência do credor na recuperação dos
créditos e a prevenir e evitar a ruína do devedor, pela acumulação da dívida,
derivada de quotas de amortização de capital pagável com juros em prazos
periódicos curtos (que, com a exigência do pagamento de uma só vez decorridos
muitos anos, poderia provocar a insolvência do devedor).
VI - A
circunstância do direito de crédito se vencer na sua totalidade em resultado de
incumprimento, não altera o seu enquadramento em termos da prescrição
(mantendo-se no artigo 310.º, alínea b), CC), uma vez que não se altera a
natureza da dívida: o que é devido continua a ser todas as quotas de
amortização individualmente consideradas e não a quantia global do capital em
dívida.
Relatório
L……….. intentou acção de execução para
pagamento de quantia certa contra
-
M……………… e
-
J……………..
Por
apenso a esses autos, vieram os executados deduzir oposição,
por meio de embargos de executado,
invocando que
-
não foram notificados da alegada cessão de créditos, nem a exequente comprova
que esta incluiu o crédito exequendo;
-
os créditos emergentes do contrato de mútuo titulado na escritura pública dada à execução,
inclusive o peticionado a título de cláusula penal, prescreveram, por decurso do prazo de prescrição previsto
no artigo 310.º,
alínea e), do Código
Civil, aplicável;
-
assim não se entendendo, pelo menos prescreveram os juros de mora vencidos há mais de cinco anos,
considerando a data de instauração da execução, por decurso do prazo previsto na alínea d) do citado artigo 310.º do Código Civil;
- desconhecem e não têm a obrigação
de conhecer se a exequente
imputou a quantia
recebida do produto da venda
do imóvel hipotecado, realizada em sede de execução fiscal, pela forma especificada no requerimento executivo, e se ficou em dívida o montante
peticionado;
- comprovando-se
que o fez, tal imputação foi abusiva, por terem sido prioritariamente pagos outros
créditos que não o exequendo, garantido por hipoteca.
Realizou-se
audiência prévia e, posteriormente, audiência final, após a qual foi
proferida Sentença que
decretou os factos provados e não provados e, a final, julgou procedente a excepção de prescrição do direito de crédito
exequendo e, em consequência, julgou extinta a execução.
A
Embargada-Exequente veio recorrer da Sentença e apresentou as suas Alegações, onde lavrou as
seguintes Conclusões:
A) Determina o Tribunal a quo, na Sentença
recorrida, que a responsabilidade dada à Execução se encontra prescrita, ao
abrigo do disposto no Artigo 310 º al. e) do Código Civil.
B) Pressupondo, para tanto, que num contrato
de mútuo bancário liquidável em prestações sucessivas, assumindo estas a
natureza de obrigações periódicas, distintas e autónomas, ficam as mesmas
sujeitas ao prazo de prescrição de 5 anos, estabelecido no artigo 310º, al) e)
do Código Civil.
C) Sucede, no entanto, que, perante o
incumprimento por parte do mutuário, que deixa de pagar as prestações, e tendo
o mutuante considerado vencidas todas as prestações e devido o pagamento do
valor total remanescente, fica sem efeito o plano de pagamento acordado.
D) Retomando, o montante em dívida, à sua
natureza original de capital (e juros), sujeito ao prazo de prescrição
ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º, do Código Civil.
E) No caso ora em discussão, o imóvel sobre o
qual incidia a hipoteca foi penhorado, e posteriormente vendido no âmbito de um
processo de execução fiscal, pelo que, nos termos do referido contrato, o Banco
…………, S.A., considerou vencidas todas as prestações.
F) Ora, vencendo-se todas as prestações
contratualizadas, fica sem efeito o plano prestacional acordado, pelo que não
tem aplicabilidade à situação vertente o prazo prescricional disposto no artigo
310.º, caindo na hipótese prevista no artigo 309º, ambos do Código Civil.
G) Ainda que se entendesse que o prazo prescricional
aplicável ao crédito Exequendo fosse o prazo de 5 anos, de acordo como Artigo
310º do Código Civil, o que não se concede, o referido prazo prescricional
aplica-se a cada uma das prestações isoladamente, em razão da data do seu
vencimento, e nunca ao valor global.
H) Nessa linha, celebrado o contrato em 17 de
Setembro de 2001, ficado estabelecida a devolução da quantia mutuada em 300
(trezentas) prestações mensais, a última prestação vencer-se-ia em Agosto de
2025.
I) Pelo que, por esta doutrina, todas as
prestações vencidas nos 5 anos anteriores à instauração da acção executiva, até
à última prestação de Agosto de 2025, nunca poderiam ter sido julgadas
prescritas.
J) Já que não podem aproveitar os Embargantes
os benefícios de dois entendimentos diametralmente opostos: não só que o prazo
de prescrição aplicável é de 5 anos; como se julga prescrita a globalidade
(capital e juros) da dívida.
K) O prazo prescricional de 5 anos é
aplicável a cada prestação isoladamente e, por outra banda, o prazo prescricional
de 20 anos é aplicável à globalidade do crédito vencido (comportando capital e
juros).
L) O entendimento previsto no artigo 310º do
Código Civil, de prescrição em 5 anos, refere-se a um plano de pagamentos
prestacional, aplicando-se a cada prestação por si só, prescrevendo cada uma 5
anos após o seu vencimento, o que se concebe, mas não se concede.
M) Assim, deverá entender-se, como supra
melhor se demonstrou, que o incumprimento de uma das prestações implica o
vencimento das demais, conduzindo à conversão da dívida numa global verba onde
vêm incluídos capital e juros, à qual aí ter-se-á sempre que aplicar prazo
prescricional ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.
Os
Embargantes-Recorridos vieram apresentar Contra-Alegações,
onde concluíram que:
1
- Entendem os Recorrentes que a Recorrida não obedece, no seu recurso sobre a
matéria de direito, ao estipulado no artigo 639.º do CPC.
2-
Porquanto não indica suficientemente o quadro jurídico que o recorrente entende
por violado e aplicável, nos termos dos n.º 1 e 2 do citado artigo 639.º, mais
precisamente as normas violadas por erro de interpretação ou de aplicação ou as
normas que deviam ter sido aplicadas e que o não foram por erro na determinação
ou escolha da norma.
3-
Deve assim ser o recurso rejeitado neste âmbito.
4-
De relevante nestes autos de recurso é aferir em concreto qual o prazo de
prescrição aplicável ao caso sub judice,
se o prazo de 5 anos conforme determinado pela Douta Sentença Recorrida (310
al. e) do Código Civil se o prazo ordinário de 20 anos conforme pretendido pela
Recorrente.
5-
Pugnam os Recorridos pelo primeiro daqueles à semelhança do que foi doutamente
decidido pelo Tribunal a quo.
6-
Porquanto a obrigação exequenda tratava-se de uma obrigação de reembolso de
dívida que foi objeto de um plano de amortização, composto por diversas quotas,
que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios.
7-
Facto que impõe a aplicação neste caso a um prazo de prescrição mais curto,
portanto de 5 anos e prejudica a aplicação do prazo ordinário de 20 anos.
8-
Neste âmbito relevam os acórdãos de 27/3/2014, processo
n.º189/12.6TBHRT-A.L1.S, de 29/9/2016, processo n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1, de
10/9/2020, processo n.º 805/18.6T8OVR-A.P1.S1 e de 12/11/2020, processo n.º
7214/18.5T8STB-A.E1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
9-
Tem sido igualmente entendido por este Supremo Tribunal que a circunstância de
o direito de crédito se encontrar vencido na totalidade, em consequência de
patologias ocorridas no plano do (in)cumprimento do contrato, não altera o seu
enquadramento em termos da prescrição – cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ
de 4/5/1993, publicado na Coletânea de Jurisprudência (STJ), Ano I, T. II, pág.
82, de 18/10/2018, processo n.º 2483/15.5T8ENT-A.E1.S1 e de 23/1/2020, processo
n.º 4518/17.8T8LOU-A.P1.S1.
10-
Facto que põe em crise a argumentação da Recorrente neste âmbito.
11-
O prazo de 5 anos para prescrição iniciou-se pelo menos, a partir de 15/12/2009.
12-
Uma vez que a Recorrente apenas intentou a ação executiva, em 01/08/2019,
cremos não haver dúvidas de que ocorreu a prescrição relativamente a todas as
prestações pelo menos em 15-11-2014.
Questões
a Decidir
São as Conclusões
do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º
1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do
tribunal ad quem (exercendo uma
função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina,
2018, pág. 115), sendo certo que tal limitação já não
abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código
de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação
de questões de conhecimento oficioso.
Os
Recorridos começam por dizer que o Recurso deveria ser rejeitado por não
obedecer ao estipulado no artigo 639.º do CPC, por não indicar suficientemente
o quadro jurídico que entende por violado e aplicável, mais precisamente as
normas violadas por erro de interpretação ou de aplicação ou as normas que
deviam ter sido aplicadas e que o não foram por erro na determinação ou escolha
da norma.
Decidindo: Não assiste
qualquer razão aos Recorrentes, uma vez que a Recorrente explicita com clareza
as normas em causa (artigos 309.º e 310.º, alínea e), do Código Civil) e a
interpretação que delas faz, distinta da que foi feita pelo Tribunal recorrido.
Assim,
em causa nestes autos estará a decisão quanto à seguinte questão:
I
– o prazo prescricional do artigo 310.º, alínea e) é aplicável à situação de um
crédito hipotecário vencido na totalidade ?
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
de Facto
A
sentença sob recurso considerou como provada
a seguinte factualidade:
1 - Por escritura pública de «Mútuo com
Hipoteca e Fiança» outorgada em 17/09/2001, Banco ………….., SA (segundo
outorgante), declarou emprestar a João Paulo Moutinho Ramos (primeiro
outorgante) a quantia de doze milhões e novecentos mil escudos (actualmente,
€64.344,93), já recebida, que este último se obrigou a restituir no prazo de
300 meses, através do pagamento de prestações mensais, de capital e juros,
contabilizados à taxa resultante da Euribor a noventa dias, acrescida de um
spread de 0,8%.
2 - Para garantia do cumprimento das
obrigações emergentes desse empréstimo, João Paulo Moutinho Ramos constituiu a
favor de B………. SA, hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra B,
correspondente ao rés-do-chão e andar com logradouro, do prédio urbano
constituído em regime de propriedade horizontal, situado …………….., descrito na
Conservatória do Registo Predial de ………. sob o n.º 1321.
3 - Na cláusula nona do Documento
Complementar à referida escritura pública, a esta anexo, estipulou-se o
seguinte:
«A presente hipoteca poderá ser executada:
a)- se não forem pagas as
prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas
importa o vencimento imediato de todas;
b)- se o imóvel ora hipotecado vier
a ser (…) objecto de execução (…), [caso] em que se consideram igualmente
vencidas e exigíveis as obrigações que assegura;(…)».
4 - Os embargantes outorgaram a escritura
pública referida em 1., nela declarando, além do mais, que «solidariamente
afiançam todas as obrigações que o primeiro outorgante assume a título do
presente empréstimo e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores
se obrigam perante o Banco ao cumprimento das mesmas, renunciando desde já e
expressamente ao benefício de excussão prévia, bem como ao benefício do prazo,
previsto no artigo setecentos e oitenta e dois do Código Civil, sendo-lhes por
isso imediatamente exigível o cumprimento antecipado das obrigações emergentes
deste empréstimo, sempre que o Banco o possa exigir do primeiro outorgante».
5 - As prestações mensais estipuladas na
referida escritura pública deixaram de ser pagas em 02/08/2009.
6 - A fracção autónoma identificada no ponto
2. supra veio a ser vendida, em 15/12/2009, no processo de execução fiscal n.º
2380200401502263, pelo preço de €93.000,00.
7 - Em 23/07/2009, B……………, SA, reclamou,
nessa execução fiscal, o pagamento dos seguintes créditos:
a)- créditos emergentes do acordo
de empréstimo constante da escritura pública ora dada à execução, no montante
de €50.677,31, acrescido de juros de mora vincendos e despesas no valor de
€2.573,80;
b)- créditos emergentes do acordo
de empréstimo titulado na escritura publica de «compra e venda, mútuo com
hipoteca», outorgada em 17/09/2001, no montante de €58.927,27, acrescido de
juros de mora vincendos e despesas no valor de €2.992,79; e
c)- créditos emergentes do acordo
de empréstimo titulado na escritura publica de «mútuo com hipoteca», outorgada
em 29/09/2003, no montante de €16.956,61, acrescido de juros de mora vincendos
e despesas no valor de €997,60.
8 - Por sentença de 30/06/2010, transitada,
proferida no processo n.º 25/10.8BEMDL, o Tribunal Administrativo e Fiscal de …………..
reconheceu os créditos reclamados por B……….., SA, no processo de execução
fiscal referido no ponto 6. supra, e graduou-os, para efeitos de pagamento com
o produto da fracção autónoma acima identificada, com o crédito exequendo e
demais créditos reclamados.
9 - O B………., SA, recebeu do produto da venda
da fracção autónoma identificada no ponto supra a quantia de €91.412,65.
10 - Por acordo celebrado em 21/09/2016,
designado «Contrato de Cessão de Créditos», B……, SA, e B……………….., SA, cederam à
ora exequente/embargada uma carteira de créditos, bem todas as garantias a eles
inerentes, onde se inclui o crédito emergente da escritura pública dada à
execução.
11 - Por cartas de 10/11/2016, a
exequente/embargada comunicou aos executados/embargantes o facto acima
referido.
12 - A acção executiva a que estes autos
estão apensos foi instaurada em 01/08/2019.
13 - Os embargantes foram citados para os
termos da referida execução em 24/09/2019.
14 - Os embargantes nunca foram antes
interpelados para pagar o crédito ora executado.
Como não provado foi dado o seguinte
facto:
A
- Após imputação da quantia de €91.412,65, referida no ponto 9. dos factos
provados, aos créditos identificados no ponto 7. supra, a dívida emergente do
acordo constante da escritura pública dada à execução ascendia, em 08/04/2011,
a €39.501,22, a título de capital, e €29.777,66, a título de juros de mora e
cláusula penal.
Fundamentação
de Direito
A
Sentença sob recurso julgou parcialmente procedente a acção com base no
seguinte processo de raciocínio:
I - reagindo contra a inércia do titular do direito de
crédito que, podendo exercê-lo, não o faz, a lei confere ao devedor a
faculdade de recusar o cumprimento da prestação uma vez decorrido o prazo que fixa como sendo o razoável para o
exercício do direito (artigo 304.º,
n.º 1, do CC);
II
- a lei prevê um prazo ordinário de prescrição de 20 anos para a generalidade
dos direitos de crédito (artigo 309.º
do CC), estabelecendo um de 5 anos para
determinadas categorias de direitos de crédito, que têm em comum o facto de
terem por objecto prestações periodicamente renováveis ou consideradas como tal
(artigo 310.º do CC);
III
- estão nessa categoria o direito a juros, convencionais ou legais (artigo
310.º, alínea d), do CC) e - por expressa
determinação legal - as quotas de amortização do capital pagável com os juros
(artigo 310.º, alínea e), do CC);
IV
- a razão de ser do maior grau de diligência exigido ao credor de prestações periódicas de valor pré-determinado
(quotas), integradas por capital e juros, prende-se com o facto de a passagem do tempo ter, nestes
casos, um efeito especialmente oneroso para o
devedor, que se poderia ver confrontado, com a exigência de pagamento
integral e de uma só vez de uma dívida contratualmente concebida como sendo de longa duração e pagável em prestações de montante
pré-definido, o que exorbitaria a sua previsível capacidade económica;
V
- o crédito emergente do contrato de mútuo dado à execução (fraccionada em 300 prestações
mensais pré-determinadas, com diferentes prazos de vencimento,
incluindo, cada uma delas, uma parcela de amortização de capital e uma parcela de juros remuneratórios) reveste as características que a lei considera
relevantes para o efeito da sua sujeição
ao prazo de prescrição de 5 anos;
VI
- é irrelevante, para o efeito de afastar
a aplicabilidade do prazo prescricional em causa, que o direito de
crédito se tenha vencido na totalidade por efeito da venda do imóvel hipotecado em sede de execução fiscal, porque
isso não altera o seu enquadramento
em termos da prescrição;
VII
- o direito de crédito executado podia e devia ter sido exercido a partir de
02/08/2009 (data do incumprimento) ou, pelo menos,
a partir de 15/12/2009 (data da venda do imóvel hipotecado no processo de
execução fiscal) estava prescrito à
data da instauração da execução (01/08/2019).
*
"O
tempo é também na vida do direito um importante factor, um grande modificador
das relações jurídicas": são palavras de Luís Cabral de Moncada[1] e resultam claramente
comprovadas no instituto jurídico da prescrição.
Esta será, como referia Albano Ribeiro Coelho, "o meio por
que, havendo decorrido o tempo fixado na lei e verificando-se as demais
condições por esta exigidas, se adquirem
direitos pela posse, ou extinguem
obrigações por não se exigir o seu cumprimento"[2]:
"pela prescrição o devedor adquire o direito de se libertar do cumprimento da obrigação, alegando-a e paralisando
consequentemente a acção do credor", conclui Guilherme Moreira[3].
Como dizem Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, a “sua
invocação é feita, na maior parte dos casos, por exceção, como um meio de
defesa que o devedor opõe ao exercício do direito pelo credor”, constituindo
“um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu
exercício”, traduzindo-se “em o direito prescrito sofrer na sua eficácia um
enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento
ou a conduta a que esteja adstrita”[4].
O fundamento dominante deste
instituto jurídico, assenta seguindo agora Manuel de Andrade, na "negligência do titular do direito em
exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir
ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular),
indigno de protecção jurídica (dormientibus
non sucurrit ius)"[5].
Santoro-Passarelli sublinha
mesmo que a razão do instituto não é tanto a da certeza das relações jurídicas (…) como a da adaptação da situação de
direito à situação de facto: uma vez que que um direito subjectivo não é
exercido por quem o poderia fazer, durante
um certo tempo, esse direito perde-se para o seu titular”[6]
Como se refere num estudo publicado
pela Cour de Cassation francesa em 2014 sobre o tempo[7], a
“prescrição sanciona, antes de mais, a negligência em fazer valer um direito”,
lutando contra a “inércia de um credor ou do titular de um direito”, respondendo
a considerações mais individualistas e subjectivas no caso do direito civil e
de interesses de ordem pública e paz social no direito penal, mas em todos os
casos, sob o impulso de virtudes de pacificação social[8]
E
é nessas virtudes que repousam os interesses
de ordem pública assinalados por Rodrigues
Bastos[9], ligados:
-
à certeza e segurança jurídicas ("as situações de facto que se
constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando
expectativas e se organizando planos de vida"[10]);
-
à protecção dos devedores
("contra as dificuldades de prova a que estariam expostos no caso de o
credor vir exigir o que já haja, porventura, recebido"[11]);
-
ao estímulo e pressão educativa sobre "os titulares
dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação,
quando não queiram abdicar deles"[12] .
Sobre
este ponto, refere Von Thur[13] que "existe
uma probabilidade, baseada na experiência, «de que uma pretensão formulada com
base num facto constitutivo dado com muita anterioridade nunca tenha ocorrido
ou se tenha extinguido. Não obstante, subsistindo a prestação, o titular terá
de atribuir o prejuízo da prescrição à sua negligência na salvaguarda do seu
direito".
No fundo e para usar uma expressão de Dernburg, citada por Paolo Vitucci[14], o escopo da prescrição é a
«defesa do presente em face do passado».
Podemos até assumir que a prescrição
seja intrinsecamente injusta, mas será sempre um mal menor[15], em face dos
inevitáveis graves inconvenientes que ocorreriam, caso não existisse[16].
A situação é
particularmente clara no caso da prescrição negativa ou extintiva[17] ("instituto
por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados
durante certo tempo fixado na lei e que varia conforme os casos"[18]),
caracterizada "pelo facto de, não havendo sido pedido o cumprimento duma
obrigação durante o prazo fixado na lei, o credor perder o direito respectivo"[19].
Assim, e na síntese de Ana Filipa Morais Antunes, estamos diante
de um instituto fundado “em interesses
multifacetados”[20],
como:
“i)a probabilidade de ter sido feito o
pagamento;
ii)a presunção de renúncia do credor;
iii)a sanção da negligência do credor;
iv)a consolidação de situações de
facto;
v)a protecção do devedor contra a dificuldade
de prova do pagamento;
vi)a necessidade social de segurança
jurídica e certeza dos direitos;
vii)o imperativo de sanear a vida
jurídica de direitos praticamente caducos;
viii)a exigência de promover o
exercício oportuno dos direitos”[21].
Sistematizando os requisitos do conceito, temos "a existência dum direito;
o seu não exercício por parte do titular; e o decurso do tempo"[22],
sendo que, "verificados estes elementos, a prescrição procede"[23],
perdendo o direito alegado, a sua eficácia .
Em
concreto, no Código Civil Português, a matéria vem regulada nos artigos 298.º e
300.º a 327.º do Código Civil e ainda em normas especiais deste (artigos 430.º,
482.º, 498.º, 500.º, 521.º, 530.º, 636.º), sendo evidente a dicotomia criada
entre prescrições extintivas (artigos
309.º a 311.º, 498.º) e presuntivas
(artigos 312.º a 317.º).
É
esta contextualização em termos de Direito e de compreensão do que envolve e
fundamenta a prescrição, que nos vai permitir olhar os factos em causa neste
Recurso e decidir em conformidade.
Em
causa uma prescrição extintiva (a do artigo 309.º[24] - 20
anos - ou a do artigo 310.º, alínea e)[25] - 5
anos).
Há
assim que começar por perguntar, numa primeira abordagem, se o crédito
exequendo pode ser enquadrado na referida alínea e).
E
não parece que seja possível fugir a esse entendimento, como, aliás, vem – de
há muito – sendo decidido pela jurisprudência dos Tribunais superiores em
situações semelhantes.
Esta
alínea e) estabelece um prazo prescricional único, de curta duração (5 anos),
aplicável ao capital e aos juros correspondentes, que devam ser pagos de forma
conjunta, sendo que, em causa nos autos tínhamos um crédito emergente de um contrato de
mútuo no qual a prestação dos devedores ficou fraccionada em 300 prestações
mensais pré-determinadas, com diferentes prazos de vencimento,
incluindo, cada uma delas, uma parcela de amortização de capital e uma parcela de juros remuneratórios (cfr. Facto 1).
Ana Filipa
Morais Antunes assinala precisamente que a referida alínea abrange “as
hipóteses de obrigações pecuniárias, com natureza de prestações periódicas,
pagáveis em prestações sucessivas e que correspondam a duas fracções distintas:
uma , de capital e, outra, de juros, em proporções variáveis, a pagar
conjuntamente”[26].
Ou
seja, nesta situação “não está em causa uma única obrigação pecuniária
emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no
tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos,
mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor
e devedor e cristalizado num plano de amortização do capital e dos juros
correspondentes, que sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a
aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração. O referido
plano obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando
a respectiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido”[27].
A
existência deste plano de amortização fixando quotas de pagamento de capital e
juros, espaçadas no tempo é – assim – o factor decisivo para aqui poder ser
considerado[28].
Acompanhando
o decidido no Acórdão do STJ de 29/09/2016 (Lopes
do Rego)[29], “efectivamente, no caso
do débito do capital mutuado, estamos confrontados com uma obrigação de valor
predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fraccionado ou
parcelado num número fixado de prestações mensais; ou seja, em bom rigor, não
estamos aqui perante uma pluralidade de obrigações que se vão constituindo ao
longo do tempo, como é típico das prestações periodicamente renováveis, mas
antes perante uma obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo
pagamento foi parcelado ou fraccionado em prestações.
Porém,
o reconhecimento desta específica natureza jurídica da obrigação de restituição
do capital mutuado não preclude, sem mais, a aplicabilidade do regime contido
no citado art. 310º, já que – por explicita opção legislativa - esta situação
foi equiparada à das típicas prestações periodicamente renováveis, ao considerar
a citada al. e) que a amortização fraccionada do capital em dívida, quando
realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma
prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do
prazo quinquenal de prescrição.
Ou
seja, o legislador entendeu que , neste caso peculiar, o regime prescricional
do débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser
absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação
periodicamente renovável de juros, devendo, consequentemente, valer para todas
as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para
amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos,
o prazo curto de prescrição decorrente do referido art. 310º”[30].
Assim
e como se desmonta no Acórdão do STJ de 27/03/2014 (Silva Gonçalves)[31], a propósito
da tese defendida pela Recorrente[32], “o
certo é que a realidade circunstancial que envolve o relacionamento contratual
estabelecido entre o exequente e os executados se não propaga nesta realidade
jurídico-substancial. (…)
A
obrigação assumida pelos signatários do contrato, (…)compartimentada num mútuo e respetivos juros, converteu-se numa
prestação mensal de fraccionada quantia global que, desta forma, iria sendo
amortizada na medida em que se processasse o seu cumprimento; e esta
facticidade está abrangida pelo regime jurídico descrito no artigo 310.º,
alínea e), do C. Civil”.
A
expressão “quotas de amortização” utilizada nesta alínea designa prestações
fraccionadas ou repartidas que se caracterizam “pela ausência de toda e
qualquer nota de autonomia – as prestações fraccionadas ou repartidas
são “puros modos de concreção de um programa acabadamente definido””,
assinala-se no Acórdão STJ de 23/01/2020 (Nuno
Pinto Oliveira)[33], no
qual se assinala que a obrigação unitária assumida pelos mutuários (que podem,
para o caso dos presentes autos, ser os ora Recorridos-Embargantes) estava compartimentada
num mútuo e respectivos juros, ficando em causa uma obrigação de valor predeterminado
cujo cumprimento – por acordo das partes – estava fraccionado ou parcelado num
número fixado de prestações mensais (as 300 que constam dos factos apurados),
pelo que, essa obrigação unitária
(compartimentada no mútuo e respectivos juros), se converte na já referida “prestação
mensal de fraccionada quantia global”, a amortizar “na medida em que se processasse
o seu cumprimento”.
Deste
modo, o “acordo pelo qual se “compartimenta” a obrigação de restituição do
capital é um acordo de amortização e cada uma das prestações em que a obrigação
de restituição se “compartimenta” é uma quota de amortização. Em consequência,
cada uma das prestações mensais devidas pelo mutuário é uma quota de
amortização do capital no sentido do art. 310.º, alínea e), do Código Civil”[34].
A
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é, pode dizer-se, constante,
neste sentido, desde – pelo menos – a publicação na Colectânea de
Jurisprudência, do Acórdão de 04/05/1993, relatado pelo Conselheiro Santos Monteiro.[35]
Como
se diz no Acórdão do STJ de 18/10/2018 (Olindo
Geraldes)[36], na “verdade, desde há
muito, que a prestação englobando quotas de amortização de capital e juros,
numa proporção variável, tende a ser perspetivada de um modo unitário, com a
aplicação do prazo comum de cinco anos, para a verificação da prescrição.
Esta
prescrição destina-se a evitar a ruína do devedor, pela acumulação da dívida,
derivada designadamente de quotas de amortização de capital pagável com juros.
Numa situação destas, a exigência do pagamento de uma só vez, decorridos
demasiados anos, poderia provocar a insolvência do devedor a viver dos
rendimentos, nomeadamente do trabalho, e que o legislador, conhecedor das
opções possíveis, quis prudentemente prevenir, colocando no credor maior
diligência temporal na recuperação do seu crédito (VAZ SERRA, BMJ n.º 107, pág.
285).
Neste
âmbito, o legislador equiparou a amortização do capital, designadamente do
mútuo, realizada de forma parcelar ou fracionada por numerosos anos, como no
mútuo bancário destinado a habitação própria, ao regime dos juros, ficando
sujeito ao mesmo prazo de prescrição, nomeadamente cinco anos – art. 310.º,
alínea e), do CC.
Com
efeito, a razão que justifica a prescrição dos juros decorrido o prazo de cinco
anos, tem igual cabimento, no caso do referido pagamento fracionado, não
obstante a restituição do capital mutuado possa corresponder a uma obrigação
unitária.
Dada
tal equiparação de regime, compreende-se que, ao caso, não possa ser aplicável
o prazo ordinário da prescrição de vinte anos, previsto no art. 309.º do CC”.
De
facto, sublinha-se - por seu turno - no Acórdão STJ de 10/09/2020 (Rijo Ferreira)[37], que
“a fixação deste prazo quinquenal, por contraposição ao prazo ordinário de
prescrição estabelecido no art.º 309º do CCiv., como é entendimento unânime,
encontra fundamento no interesse de proteção do devedor, prevenindo que o
credor, retardando a exigência de prestações periodicamente renováveis, as
deixe acumular, tornando excessivamente oneroso o pagamento a cargo do devedor.
Desta forma, o prazo especial de prescrição de cinco anos, previsto no artigo
310.º do Código Civil, visa proteger o devedor contra a acumulação da sua
dívida, que, de dívida de prazos periódicos mais curtos ou anuidades, se
transformaria em dívida de montante suscetível de o arruinar, se o pagamento
pudesse ser exigido pelo credor de uma só vez, ao final de vários anos,
situação que o legislador quis prevenir exigindo do credor acrescida diligência
temporal na recuperação do seu crédito”[38].
Assentamos
assim em que, a este tipo de situação, se aplica o prazo da alínea e) do artigo
310.º, concordando com a decisão proferida no Tribunal a quo e deitando por terra as conclusões da Recorrente em sentido
contrário.
**
Fica,
todavia, uma questão por resolver e que tem suscitado, apesar de – cremos – sem
motivo para tal, alguma controvérsia: a circunstância do direito de crédito se
vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento e de tal poder alterar
o seu enquadramento em termos da prescrição (ou seja, se, vencido o crédito,
tal desloca o prazo de prescrição dos 5 anos do artigo 310.º, para o geral de
20 anos do artigo 309.º).
Entende
a Recorrente que os Embargantes não podem ser duplamente beneficiados, por um
lado com o prazo de prescrição aplicável de 5 anos para as prestações mensais
e, por outro, com prescrição da globalidade (capital e juros) da dívida,
devendo sim, quanto a esta última (por ter vencido) aplicar-se o prazo
prescricional de 20 anos.
Neste
concreto ponto, os Recorridos-Embargantes referem que a circunstância de o
direito de crédito se encontrar vencido na totalidade, não altera o seu
enquadramento em termos da prescrição.
Vejamos
se assim é.
A
posição que vem sendo assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça é uniforme
(desde o já referido Acórdão de 04/05/1993, a todos os restantes Acórdãos já
citados) e vai no sentido de que (sob pena de se poder verificar uma situação
de insolvência, a qual, manifestamente, o legislador pretendeu evitar[39]
quando consagrou o prazo comum da prescrição da alínea e) do artigo 310.º), é
este o prazo a aplicar às situações em que ocorre a antecipação do vencimento
de todas as prestações, como consequência “de patologias ocorridas no plano do
(in)cumprimento do contrato”[40].
E
por razões sólidas que assumem todo enquadramento atrás falado sobre o que
fundamenta a prescrição.
“O
vencimento imediato de todas as prestações por via da falta de pagamento de uma
delas, nos termos do art.º 781º do CCiv, implica apenas e tão só isso mesmo: o
vencimento imediato, com perda do benefício do prazo; não tem por efeito
alterar a natureza da dívida, repristinando a anterior obrigação única que foi
substituída por uma obrigação fracionada.
O
que é devido continua a ser todas as quotas de amortização individualmente
consideradas e não a quantia global do capital em dívida.
E
o facto de as quotas de amortização deixarem nessa situação de estar ligadas ao
pagamento dos juros (cf. AUJ 7/2009, DR, I, 05MAI2009), por via dessa
antecipação do vencimento, não interfere, em nosso modo de ver, com o tipo de
prescrição aplicável em função da natureza da obrigação, que não é alterada
pelas vicissitudes do incumprimento.
Por
outro lado, se é certo que se logrou um dos fundamentos da aplicação da
prescrição quinquenal (o evitar a acumulação dos montantes em dívida tornando o
pagamento excessivamente oneroso para o devedor) não deixa de subsistir a
necessidade de uma acrescida diligência do credor na recuperação do seu
crédito, tendo em vista, numa óptica do ‘favor debitoris’ imanente ao CCiv,
evitando a perpetuação, com a consequente incerteza e insegurança, da situação
do devedor”[41].
Assim,
o “facto de o incumprimento de uma prestação implicar o vencimento antecipado
das restantes prestações em nada releva para o problema em causa, porque nesse
caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo
em dívida”[42]. A não ser assim,
argumenta-se ainda no já citado Acórdão do STJ de 06/07/2021 (Fátima Gomes), deixar-se-ia “ao credor a
escolha do regime aplicável, em prejuízo do devedor (e dos fiadores)”.
Na
tese da Exequente-Recorrente mesmo que o prazo prescricional fosse o do artigo
310.º, esse prazo aplicar-se-ia a cada uma das prestações isoladamente, em
razão da data do seu vencimento, e nunca ao valor global, mas esta tese carece
de sentido, uma vez que… as prestações estão todas vencidas: isoladamente
apenas relevam para efeitos prescricionais.
Tem,
pois, de concordar-se com o Tribunal a
quo quando afirma ser irrelevante, para o efeito de afastar a aplicabilidade do prazo prescricional em causa, que o direito de
crédito se tenha vencido na totalidade por efeito da venda do imóvel hipotecado em sede de execução fiscal, porque
isso não alterou o seu enquadramento
em termos de prescrição.
Assim,
assente como está que a base da dívida exequenda era um contrato de mútuo
bancário liquidável em prestações sucessivas (e que estas de acordo com o plano
de pagamentos tinham a natureza de obrigações periódicas, distintas e
autónomas, que englobavam capital e juros remuneratórios), tais prestações
estavam sujeitas ao prazo de prescrição de 5 anos, estabelecido no artigo 310.º,
alínea e), do Código Civil.
Ocorrido
o incumprimento e ficando vencidas todas as prestações (que se prolongariam, efectivamente,
até 2025) o plano de pagamentos ficou sem efeito e passou a ser devido o valor
total remanescente.
Ao
valor em dívida manteve-se a aplicação do prazo prescricional do artigo 310º do
Código Civil.
O
vencimento das prestações ocorreu com o incumprimento a 02/08/2009 (Facto 5),
ou – numa outra perspectiva – aquando da venda do imóvel hipotecado (15/12/2009
– Facto 6).
A
execução foi intentada a 01/08/2019 e os Executados/Embargantes/Recorridos
citados a 24/09/2019.
Por
aplicação do prazo do artigo 310.º, alínea e), do Código Civil, o crédito sob
execução prescreveu em 2014: podia
e devia ter sido exercido a partir de 02/08/2009 (data do incumprimento) ou,
pelo menos, a partir de 15/12/2009
(data da venda do imóvel hipotecado no processo de execução fiscal) e só em 2019 (quase dez anos depois) a execução foi
intentada e os devedores interpelados.
A ordem
jurídica, como é evidente, não poderia permitir que esta situação fosse
sancionada (em face da dedução dos embargos e da invocação da prescrição por
quem dela pode ser beneficiário).
A
Recorrente-Embargada sublinhe-se, só de si se pode queixar, pois deixou que a
prescrição (e o que a fundamenta) se corporizasse, fazendo relevar o tempo
decorrido sobre a relação jurídica[43] que
estabeleceu com os Recorridos-Embargantes-Devedores e deixando que a certeza, a
segurança do tráfego jurídico e a paz social, se sobrepusessem aos direitos de
protecção que o ordenamento jurídico lhe proporcionava, por – com a sua inércia
– os não ter exercido nos limites temporais fixados pelo legislador[44]
(assim, vd. o acórdão do STJ de 19/06/2012, 944/08.3TBGDM.P1, Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt).
*
Concluindo,
a Sentença proferida merece total concordância e, como tal, vai confirmada na
íntegra.
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar improcedente a apelação,
confirmando a Sentença recorrida.
Custas
a cargo da Recorrente-Embargada.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 23 de Novembro de 2021
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1]
Lições de
Direito Civil, Parte Geral, II, 2.ª edição, Atlântida, Coimbra, 1955, página
423.
[2]
Albano Ribeiro Coelho, Prescrições de Curto Prazo, Jornal do
Foro, Ano 27, 142-143-144, Jan-Set, 1963, página 54.
[3]
Guilherme Moreira, Instituições de Direito Civil Português,
II, página 239.
[4]
Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de
Vasconcelos,
Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, Almedina, 2019, página 386.
[5] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 7.ª
reimpressão, Almedina, 1987, página 445; Paolo
Vitucci, La prescrizione, Tomo primo, Artt. 2934-2940, Giuffré Editore,
Milano, 1990, páginas 20 a 28.
[6]
Santoro-Passarelli, Teoria Geral do Direito Civil,
Atlântida, Coimbra, 1967, página 88.
[7]
“Le temps”,
estudo organizado sobre a direcção científica de Cécile Chainais, in Le temps dans la jurisprudence de la
Cour de Cassation, Rapport Annuel 2014, Cour de Cassation, 2015, páginas 126 a
409, em especial 137 a 287.
[8] Ob. cit., página 248.
[9]
Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, II, Lisboa, 1988,
página 63.
[10]
Manuel de Andrade, ob. cit., página 446.
[11]
Manuel de Andrade, ob. loc. cit.; Karl Larenz, Derecho Civil-Parte General, Editoriales de Derecho
Reunidas, 1978, páginas 328-329.
[12]
Manuel de Andrade, ob. loc. cit..
[13]
Citado por Karl Larenz,
ob. cit., página 329.
[14]
Paolo Vitucci, ob. cit., página 22.
[15]
Sublinhando a
“aterradora negatividade emprestada ao tempo”, François Ost (in O Tempo
do Direito, Instituto Piaget, 2001, página 9), conta a terrível história do
início das relações entre o tempo e o direito, através da mitologia grega: “Uma
história que, para dizer a verdade, começou mal. Kronos (…) não conseguiu que o tempo e o direito revertessem a seu
favor. A história de Kronos começa na
indistinção do não-tempo. Com efeito, originalmente, tínhamos Úrano, o céu, e Gea, a terra, enlaçados num abraço infindável de que nasciam
inúmeros filhos, enviados de imediato para o Tártaro. Desejosa de repelir as
intermináveis investidas do seu esposo, Gea
armou um dia o seu filho mais novo, Kronos,
com uma pequena foice, com a ajuda da qual este cortou os testículos de seu
pai. Esta mutilação assinala a separação do Céu e da Terra, e o início do
reinado de Kronos. Mas a história que
assim se inaugura é marcada pela violência e pela negação do tempo: Kronos tratou de mandar os seus irmãos,
os Cíclopes, para o Tártaro, enquanto
tomava o lugar de seu pai no trono, inaugurando um reino sem partilha. Avisado
por uma profecia de que um dos seus filhos o destronaria um dia, tinha o
cuidado de devorá-los assim que sua mulher, Reia, os punha no mundo. Até ao dia
em que esta, importunada, decidiu subtrair o último, Zeus, à vindicta de Kronos;
depois de o ter escondido numa gruta, fez o seu real esposo engolir uma pedra
envolta em faixas. Chegado à idade adulta, Zeus,
como o oráculo predissera, encabeçou uma revolta e pôs fim ao reino de Kronos que, por sua vez, foi enviado
para o Tártaro”.
[16]
Karl Larenz, ob. cit., página 329; cfr., Manuel de Andrade, ob. cit., página
446; Vaz Serra, Prescrição e
Caducidade, BMJ 105 (1961], páginas 5 a 248 e BMJ 106, páginas 45 a 278; José Puig Brutau, Caducidad,
Prescripción Extintiva y Usucapión, 3.ª edición actualizada y ampliada, Bosch,
1996, páginas 31 a 62.
[17]
De notar que
Autores como Pedro Pais de Vasconcelos
e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos
consideram que a “prescrição não extingue o direito nem a vinculação. Apenas
confere ao obrigado o poder de recusar o cumprimento” (Teoria Geral…, cit.,
página 387), ao passo que Carvalho Fernandes, a entende como a “extinção de
direitos por efeito do seu não exercício dentro do prazo fixado na lei, sem
prejuízo de se manter devido ao seu cumprimento como dever de justiça” (Teoria
Geral do Direito Civil. II, 5.ª edição, Universidade Católica Editora, 2010,
página 650).
[18]
Manuel de Andrade, ob. cit., página 445.
[19]
Albano Ribeiro Coelho, ob. cit., página 54.
[20]
Ana Filipa Morais Antunes, Algumas Questões
Sobre Prescrição e Caducidade, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, III, FDUL-Coimbra
Editora, 2010, página 39.
[21]
Ob. loc. cit..
[22]
Luís Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, cit., página
424; na 4.ª edição desta obra (Almedina, 1995, página 729); Rubén Stiglitz, Contratos-Teoría
General, I, Ediciones Depalma, 1994, páginas 769-770.
[23]
Albano Ribeiro Coelho, ob. cit. página 54.
[24]
“O prazo
ordinário da prescrição é de vinte anos”.
[25]
“Prescrevem no
prazo de cinco anos:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e) As quotas de amortização
do capital pagáveis com os juros;
f) (…)
g) (…)”.
[26]
Ana Filipa Morais Antunes, Algumas…, cit.
página 44.
[27]
Ana Filipa Morais Antunes, Algumas…, cit.
página 47; Prescrição e Caducidade, anotação aos artigos 296º a 333º, do Código
Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2014, páginas 124-128.
Com
dúvidas, Menezes Cordeiro, Tratado de
Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, 3.ª edição, Almedina, 2017, página
214.
[28]
Serão sempre
“indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital
pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos
perante quotas integradas por duas fracções: uma de capital e outra de juros, a
pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações
periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do
mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma
após outra” (Ana Filipa Morais Antunes,
ob. cit., página 47).
[29]
Processo n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[30]
No mesmo sentido, STJ 06/07/2021 (Fátima Gomes)-Processo n.º 6261/19.4T8ALM-A.L1.S1; STJ 09/02/2021 (Fernando Samões)-Processo n.º 15273/18.4T8SNT-A.L1.S1
STJ 12/11/2020 (Maria do Rosário Morgado)-Processo
n.º 7212/18.5T8STB-A.E1.S1; STJ 03/11/2020 (Fátima
Gomes)-Processo n.º 8563/15.0T8STB-AE1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt;
Também neste sentido STJ 08/04/2021 (Nuno
Pinto Oliveira)-Processo n.º 5329/19.1T8STB-A.E1.S1. disponível in https://www.direitoemdia.pt/search/show/2e2bc4e9fac0396e5f7bc7f38d042ff3315e1b49039c3948760dc3d74d98b05a.
[31]
Processo n.º
189/12.6TBHRT-A.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[32]
No sentido de na
alínea e) caberem apenas as obrigações pecuniárias com natureza de prestações
periódicas, pagáveis em prestações sucessivas e que correspondam a duas fracções
distintas: uma de capital e outra de juros, em proporção variável, a pagar
conjuntamente.
[33] Processo n.º
4518/17.8T8LOU-A.P1.S1, disponível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4518.17.8T8LOU.A.P1.S1.
[34]
STJ 23/01/2020 (Nuno Pinto Oliveira), cit..
[35]
Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal
de Justiça, Ano I, Tomo II, 1993, ASJP, páginas 82-84.
[36] Processo n.º 2483/15.5T8ENT-A.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[37]
Processo n.º 805/18.6T8OVR-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[38]
VAZ SERRA, no já referido estudo, publicado nos BMJ n.ºs 105
e 106 (Prescrição Extintiva e Caducidade – estudo de direito civil português,
de direito comparado e de política legislativa), esclarece que esta prescrição
reduzida de cinco anos “se destina a evitar que, pela acumulação de prestações
periódicas, se produza a ruína do devedor”, uma vez que o valor dos juros pode
mesmo vir a suplantar o do capital, de
modo que ela deve aplicar-se “sempre que se trate de prestações periódicas
derivadas de uma determinada relação jurídica” (página 119), sendo que, no que
concerne às quotas de amortização pagas conjuntamente com os juros
correspondentes, se não se utilizasse o mesmo critério “poderia dar-se uma
acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de
quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e
tratá-lo como juros” (página 114).
[39]
STJ 18/10/2018,
cit.; STJ 06/07/2021 e 03/11/2020, cits.;
[40]
Expressão
utilizada por Maria do Rosário Morgado no
Acórdão do STJ de 12/11/2020, cit..
[41]
STJ 10/09/2020,
cit..
[42]
STJ 12/11/2020,
cit. e STJ 26/02/2021 (Maria João Vaz Tomé)-Processo n.º 20767/16.3T8PRT-A.S2,
disponível in www.dgsi.pt.
[43]
Certo que a ora
Embargada adquiriu apenas em 2016 a carteira de créditos do B….., mas tal
irreleva para a situação dos devedores que a isso são totalmente alheios.
[44]
Cfr., STJ 19/06/2012, Processo
n.º 944/08.3TBGDM.P1.S1 (Fonseca Ramos), disponível in www.dgsi.pt.
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