Processo n.º 8161/20.6T8LSB-A.L1
Tribunal a quo - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa-Juiz 7
Sumário:
I – O
incidente de despejo imediato existe para obstar a que, no decurso de uma acção
de despejo, alguém possa desfrutar de um imóvel durante o seu decurso, sem
pagar as respectivas rendas.
II – Formalmente,
o incidente é simples e passa por um requerimento do senhorio, pela audiência
do arrendatário e pela decisão.
III – Para
que o incidente possa funcionar é necessário:
-
que esteja assente a existência de um contrato de arrendamento;
-
que haja mora do arrendatário no tocante ao pagamento da renda na pendência da
acção de despejo.
IV – A
ausência do pagamento da renda não é a única questão a apreciar no incidente de
despejo imediato.
V - Se
houver matéria controvertida no que respeita à existência do contrato, às
partes que nele são contratantes, à sua vigência, ou a alguma patologia que lhe
esteja associada e possa influenciar o pagamento das rendas em causa, não pode
ser utilizado o incidente de despejo imediato (a letra do artigo 14.º do NRAU
não o permite e a sua ratio não o
justifica).
VI - Estando
alegada factualidade que pode conduzir à improcedência da acção e a exigir às
partes o devido esforço probatório, o incidente de despejo imediato não pode
ser usado, pois existe uma falta de legitimação material para fazer esse pedido
incidental.
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
E…,
SA. intentou
a presente acção declarativa
de condenação contra
-
C…, LDA.,
-
D… e
-
E…
peticionando que
a)
Seja declarado caducado o/s contrato/s de subarrendamento a favor da R.
sociedade e, em conformidade, seja a mesma condenada na entrega do imóvel à A.,
livre e devoluto e pessoas e bens próprios;
b)
Subsidiariamente seja declarada a nulidade do/s subarrendamento/s por simulação
e, em conformidade, ser a sociedade R. condenada a entregar à A. o imóvel em
causa, livre e devoluto de pessoas e bens ou, entendendo-se que estamos perante
um negócio doloso que seja declarada a sua anulação.
c)
Subsidiariamente ao anterior seja declarada a resolução do contrato de
subarrendamento e, em conformidade, seja a sociedade R. condenada a entregar à
A. o imóvel em causa, livre e devoluto de pessoas e bens e ainda na condenação
da mesma, em regime de solidariedade com os demais RR. No pagamento do valor de
€ 5.400,00 vencidos e ainda no montante de € 1.400,00 mensais desde Abril de 2020,
inclusive, e até à prolação de douta sentença que declare a resolução do
contrato e, a partir da data desta, no montante mensal indemnizatório de €
2.800,00 mensais.
Foi
apresentada Contestação onde –
para o que aqui releva – os Réus questionam a posição da Autora como “senhoria”,
na relação de subarrendamento com a Ré sociedade (colocando em causa a posição
de locatária financeira da Autora e a sua legitimidade material para o
recebimento de rendas.
Foi
apresentada Réplica, onde se defenda que a acção seja julgada procedente no
saneamento.
Posteriormente,
a mesma Autora apresentou Requerimento suscitando incidente de despejo imediato
da sociedade Ré e solicitando a sua notificação para dar cumprimento ao
disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU, alegando que a dita Ré reconheceu a
Autora como locatária (mercê do pagamento de três rendas); que não paga as
rendas, pelo menos, desde fevereiro de 2020 (com referência a Março) e
subsequentes; e que os antigos locatários já não têm direito ao recebimento das
rendas.
O
Tribunal a quo veio a decidir o
seguinte:
Ora,
de acordo com o disposto no artigo 14.º do NRAU, sob a epígrafe “Ação de
despejo”, nos seus números 1, 3, 4 e 5:
“1 -
A ação de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento
sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e
segue a forma de processo comum declarativo.
3 - Na
pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas
ou depositadas, nos termos gerais.
4 -
Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a
dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para,
em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da
indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas
custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas
a final.
5 -
Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o
senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento
do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo
15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O”.
Porém,
lida e analisada a contestação apresentada nos presentes autos, verifica-se que
a linearidade invocada pela Autora não ocorre em concreto, visto ser
questionada a posição desta como “senhoria” na relação de subarrendamento com a
Ré.
Com
efeito, a simples leitura do articulado 6.º a 21.º da contestação, denominado
de “impugnação da matéria de facto”, permite observar que a Ré questiona a
posição de locatária financeira à Autora, ou seja, coloca em crise a
legitimidade material desta para o recebimento de rendas, erigindo tal matéria
a uma temática controvertida na lide.
A
mesma Ré chega a afirmar, a tal propósito, que:
“(…).
17º.
Em 19 de dezembro, recebem os RR. nova missiva, com a indicação de Interpelação,
doc. 4, que se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos
legais, indicando outra sociedade, desta vez com a firma E…, S:A, A., nos
presentes autos,
18º.
Contudo, no dia 4 de novembro de 2019, é indicado aos RR., através de email,
conforme doc.5, que se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os
efeitos legais, o IBAN, para que os RR, efectuassem as transferências das
rendas respectivas, conforme doc. 6, que se junta e dá por integralmente
reproduzido;
19º.
Ora, a A. através do seu mandatário, foi interpelada pelos mandatários dos RR.,
para que procedesse à demonstração documental da transferência de propriedade
do imóvel afecto ao contrato de subarrendamento de que os RR., são
subarrendatários;
20º.
Nesse mesmo contrato supra mencionado, é claro que o mesmo só pode ser alvo de
cessação, ou não renovação pelo primeiro contraente, LUIS MANUEL DE PAIVA
RODRIGUES, ou pelo proprietário do imóvel, único dono e legitimo proprietário
da propriedade plena, Banco …, S.A;
21º.
O que não aconteceu”.
Nessa
medida, constatando-se que a indicada argumentação é suficiente para rebater,
de antemão, os aspetos “lineares” que a Autora avançou no seu requerimento
antecedente, entende o Tribunal não estarem reunidas as condições para se
determinar o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU, na certeza
de que a Ré não reconheceu a Autora como locatária financeira do imóvel em
apreço, nem o seu direito ao recebimento das rendas.
Ora,
se é discutida tal questão, com base em pressupostos de facto invocados pela Ré
na sua contestação, está vedado à “senhoria” o recurso ao incidente de despejo
imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da ação, desde logo
porque a própria obrigação de pagamento de “rendas”, em sentido próprio, é
posta em causa.
Como
já referia Aragão Seia (cfr. Arrendamento Urbano, Almedina 7.ª edição, pág. 382),
com um alcance similar: “Só se pode falar em rendas vencidas na pendência da
ação se esta estiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de
qualquer modo em questão pelo réu” – veja-se, também em sentido confluente, Ac.
Rel. Lisboa de 20.12.2018, relatado por Carlos Oliveira e com texto disponível
em www.dgsi.pt.
Em
face do exposto, sem necessidade de considerandos acrescidos, por despiciendos,
o Tribunal indefere liminarmente o incidente de despejo imediato suscitado pela
Autora, não se ordenando o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 4, do
NRAU”.
A Autora recorreu desta decisão lavrando as
seguintes Conclusões:
A) É aplicável aos presentes autos o
disposto no art. 14.º, n.º 4 e 5, do NRAU que determina a entrega imediata do
locado.
B) A R. nada disse sobre o doc. n.º 1
junto com a p.i. que constitui um documento particular autenticado, cuja
falsidade não foi posta em causa (art. 363.º, n.º 3, do CC), no qual a
autenticidade está presumida (art. 370.º, n.º 1, do CC), tendo-se as
assinaturas por verdadeiras (art. 375.º do CC), assim fazendo-se prova plena
das declarações dos seus autores (art. 376.º do CC), o qual assim constitui
prova inequívoca da posição de senhoria da A. perante a R..
C) A R., por outro lado, pagou à A. as
três primeiras prestações, a título de rendas, tal como consta no doc. nº 6
junto da p.i., o que também não foi contestado.
D) Limitou-se a R., e nisto se estriba a
douta sentença sindicada, a referir que seria seu senhorio o primitivo titular
da locação financeira e, consequentemente, o contrato só poderia ser alvo de
cessação ou não renovação por parte do mesmo ou ainda do Banco … (proprietário
do imóvel), Cfr. ponto 20 da contestação.
E) E a douta sentença, neste particular,
refere então que a R. não reconheceu a A. como locatária financeira do imóvel
nem o seu direito ao recebimento das rendas e, consequentemente, mercê do facto
de a obrigação do pagamento da renda estar contestada não admitiu o incidente
de despejo imediato, assim o indeferindo liminarmente, do que, respeitosamente,
discordamos.
F) A obrigação de pagamento da renda é
correspetiva da obrigação, a cargo do senhorio, de proporcionar o gozo da coisa
(art. 1022.º, conjugado com os art.s 1031.º, al. b) e 1038.º, al. a), do C.C.)
e tendo a R. decidido, pura e simplesmente, deixar de pagar a renda (que já
pagava à A.), existe incompatibilidade com a sua continuação do gozo da coisa.
G) Não colhe a simples afirmação da R.
de que não reconhece a A. como senhoria e remetendo esta qualidade para os
anteriores locatários financeiros porquanto, naturalmente, isto vai
frontalmente contra o que se disse sobre o teor e efeitos do contrato de
locação financeira outorgado entre o … e a A. e, bem assim, contra o ato de
pagamento das rendas iniciais e ainda, por outro lado, a montante, a R. nem
provou, tampouco sequer alegou, que estaria a pagar a renda a quem entendia ser
senhorio.
H) Deveria, sempre com o devido
respeito, o tribunal “a quo” observar que os fundamentos de defesa em nada
afetam o cumprimento da obrigação de pagamento de renda e mais não são, face ao
que foi dito, uma forma de protelar o gozo da coisa. Ou seja o espírito da lei
ao criar este incidente é de não permitir que alguém possa gratuitamente, tal o
caso, gozar de um imóvel, injustificadamente e à conta de outrem, durante o
longo tempo que pode durar uma ação até ao despejo efetivo, tal como ocorre
nesta ação que já tem cerca de 17 meses e ainda tem dois intervenientes que não
se conseguem citar. De resto, notificada entre mandatários, a R. nem se
pronunciou sobre o incidente.
I) Por outro lado a limitação objetiva
do tribunal em conhecer diversas questões de forma prévia não contende com a
possibilidade de decisão sempre que o processo contenha os elementos
suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, n.º 3, do CPC) e, na verdade, o
que está apenas em causa é matéria de direito porquanto, face aos documentos
juntos, apenas se pretende saber se o título de arrendamento é o não válido e,
cremos, foi a própria R., nos termos e ações indicados, factual e
juridicamente, que o aceitou como bom e, de resto, a validade ou invalidade do
contrato é do conhecimento oficioso.
J) É este o sentido, nos termos e para
os efeitos do disposto no art. 639.º, n.º 2 al. c) do CPC, que deveria ser
interpretado o art. 14.º, nºs 4 e 5 do NRAU, tendo ainda sido incorretamente
analisados, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 640.º, n.º 1, al.
b), do CPC, os concretos meios de prova que decorrem dos documentos juntos
sobre os n.ºs 1 e 6 à petição inicial.
Os
Réus apresentaram Contra-Alegações,
defendendo que não seja dado provimento ao recurso, uma vez que:
A)
A decisão está bem
fundamentada, e faz boa aplicação da Lei aos factos em apreço;
B)
À Recorrente não lhe assiste razão quanto aos requisitos necessários à Acção de
Despejo, por esta peticionada;
C)
Não é de todo aplicável o disposto no artigo 14º/4 e 5, do NRAU, que determina a
entrega imediata do locado;
D)
A Recorrente não é Arrendatária do locado, porquanto o contrato de arrendamento
não foi efectuado com a mesma, mas sim com o Sr. L…;
E)
Os Recorridos pagaram as rendas atempadamente, sem nunca falhar um mês, ao Arrendatário,
conforme disposto nos artigos 1038º e 1039º, ambos do CC;
F)
Os Recorridos não reconhecem a Recorrente como Arrendatária, porquanto não houve
cedência de posição contratual por parte do Arrendatário original, conforme
dispõe o artigo 1059.º, da Lei n.º 6/2006, Novo Regime do Arrendamento Urbano
(NRAU), com referência ao artigo 424º, do CPC;
G)
Os Recorridos não aceitaram factual nem juridicamente qualquer contrato, que não
seja o doc.1, junto com a contestação;
H)
O tribunal “a quo”, decidiu, e bem, ao abrigo do disposto no artigo 5º/2 e 3, considerando
todos os factos alegados pelas partes, dentro da fronteira da factualidade
alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido.
Questões
a Decidir
São as Conclusões
do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º
1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do
tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição
inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]),
sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
(artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo
qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
Em causa estará, assim, a
verificação da presença dos requisitos do despejo imediato no contexto dos
presentes autos.
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
de Facto
Os
elementos relevantes constam descritos no Relatório.
Fundamentação
de Direito
Para
obstar à manutenção de situações de ocupação de locados sem pagamento de
rendas, no âmbito de um processo de despejo, o legislador criou um incidente
nominado onde faculta ao senhorio a possibilidade de pedir o despejo, sempre e quando
o arrendatário incumpra a obrigação de pagar as rendas vencidas na pendência da
acção.
“O
espírito da lei” – em linha com o exposto no Acórdão da
Relação de Lisboa de 20/12/2018 (Processo n.º 1830/17.0T8VFX.L1-7-Carlos Oliveira[2]) – “ao
criar o incidente de despejo imediato, agora previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do
N.R.A.U., foi sempre o de não permitir que alguém pudesse, gratuitamente,
desfrutar de imóvel, durante o longo período que poderia durar a ação até ao
despejo efetivo, numa situação que não seria reparável por nenhuma condenação
em indemnização, ou pelo pagamento das rendas vencidas, por ser frequente o
despejado não ter bens bastantes para o efeito. Pretendia-se evitar que o
devedor da renda permanecesse no gozo da coisa injustificadamente e à custa
alheia”.
Assim,
o artigo 14.º do NRAU refere – no seu n.º 3 – que, na pendência da acção de
despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos
termos gerais.
Por
seu turno, o n.º 4 do mesmo normativo dispõe que, se as rendas, encargos ou
despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem
pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao
seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida,
juntando prova aos autos.
Por
fim e no caso de caso de incumprimento pelo arrendatário, na sequência da
referida notificação, o senhorio pode requerer o despejo imediato.
“O
esquema do incidente é o seguinte: petição do senhorio, audiência do
arrendatário e decisão”[3],
sendo que é “necessário, por um lado, que haja mora do arrendatário
no tocante ao pagamento da renda, embora aquela se reporte a um período específico:
o da pendência da acção de despejo.
O
que pressupõe a constituição de uma relação arrendatícia válida e em vigor”[4].
Releva
pois aqui sublinhar, que a ausência do pagamento pode não ser a única questão
apreciar no que respeita ao destino deste incidente[5].
É
que, como vem de há muito a ser sublinhado pelo Tribunal Constitucional, “o
artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º
31/2012, de 14 de agosto, deve, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, ser
interpretado em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado
no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo
imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência
da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente
apreciado pelo juiz, pelo que, nos
casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto a outras questões[6] que não
digam exclusivamente respeito à falta de pagamento de rendas, o réu não está
impedido de exercer o contraditório mediante a utilização de outros meios de
defesa”[7].
Por
este motivo Laurinda Gemas-Albertina
Pedroso-Caldeira Jorge concluem que é “o juiz que deve apreciar se
o senhorio pode lançar mão do incidente, pois há situações em que o mesmo não pode
funcionar”[8].
Nesta
base, podemos concluir que este incidente, se bem que tenha como seu foco principal a falta de pagamento - no
decurso da acção - das rendas devidas pela existência do contrato (desde logo
pelas consequências que tem), se houver matéria controvertida pelo menos no que
respeita à existência do contrato, às partes que nele são contratantes, à sua
vigência, ou a alguma patologia que lhe esteja associada e possa influenciar o
pagamento em causa, não poderá funcionar, por nem a sua ratio aí se justificar, nem a letra do artigo 14.º o permitir.
Assim,
seguindo aqui de perto o decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/05/2021
(Processo n.º 273/20.2.T8AMD.B.L1-6-Ana
de Azeredo Coelho[9]),
o “incidente
implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação
de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão
na acção principal.
Temos
assim como requisitos de procedência do incidente:
1)
não pagamento ou depósito das rendas na sequência da notificação a que alude o
artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006.
2)
pendência de acção de despejo.
3)
não pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
4)
inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção
principal, quanto à existência e validade do arrendamento.
5)
inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção
principal, quanto à obrigação de pagamento das rendas e à mora do devedor”.
Entrando a decidir.
Compulsados
os autos importa assinalar que, para além da Autora-Recorrente e dos Réus
(Sociedade e pessoas singulares, sendo estas últimas fiadoras), na relação
contratual que está subjacente, surgem ainda o Banco…, L…, P… e a F…, sendo que
as concretas posições que nela ocupam se mostram controvertidas.
O
Tribunal a quo sublinhou esta questão
de forma clara e assinalou que não estão reunidas as condições para se
determinar o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU, uma vez
que não reconheceu a Autora como locatária financeira do imóvel em apreço, nem
o seu direito ao recebimento das rendas.
Ou
seja e em face da forma como os autos se mostram configurados tal qual resulta
da Petição Inicial e da Contestação, aceitando a celebração do contrato de
subarrendamento por 10 anos, a 01/11/2013 e por 10 anos (6.º e 9.º da
Contestação), entre L… e C…, Lda. (7.º da Contestação) e que Banco…é o
proprietário da fracção objecto do subarrendamento (8.º da Contestação),
estando o imóvel em nome de L… (13.º da Contestação), não tendo havido cessação
do contrato de subarrendamento (14.º da Contestação) e tendo aos Réus sido
comunicado que a F… era a nova senhoria (15.º e 16.º da Contestação), surgindo
depois uma interpelação da ora Autora intitulando-se senhoria (17.º da
Contestação).
Como
bem se assinalou no Acórdão da Relação do Porto de 20/05/2008 (Processo n.º 0821166-Cristina Coelho[10]), o incidente de
despejo imediato “pressupõe que se mostre assente na acção de
despejo a existência de um contrato de arrendamento, a legitimidade do autor e
do réu, e o montante da renda acordada, sob pena de, sendo questionada alguma destas
situações, não dever proceder o “incidente”, ou, actualmente, não se ordenar a
notificação do arrendatário nos termos do art. 14º, nº 4 do NRAU”[11].
Com
este contexto de divergência quanto aos factos essenciais que relevam para a
possibilidade de ser decretado um despejo imediato, torna-se evidente que o
despejo imediato, tal como configurado no artigo 14.º do NRAU, não pode (no
momento em que processualmente nos encontramos) ser utilizado pela Autora nos
presentes autos.
Usando
as palavras do Tribunal a quo “está
vedado à “senhoria” o recurso ao incidente de despejo imediato por falta de
pagamento das rendas na pendência da ação, desde logo porque a própria
obrigação de pagamento de “rendas”, em sentido próprio, é posta em causa”,
pois são os próprios intervenientes nas relações contratuais de arrendamento e
subarrendamento que estão em causa.
Certo
que a Autora usa argumentação relevável nas suas conclusões, mas essa
relevância tem de ser apreciada na acção e não no incidente, o qual pressupõe
esta concreta factualidade como assumida e resolvida: estando alegada
factualidade que pode conduzir à improcedência da acção, exigindo o
correspectivo esforço probatório às partes, o incidente de despejo imediato não
pode ser usado[12].
Em
situação paralela, o Desembargador Pereira
Baptista sublinhou mesmo, no Acórdão da Relação de Évora de 22 de Janeiro
de 2004, que admitir aqui o despejo imediato representaria que alguém pudesse
lograr
“prevalecer-se de efeitos próprios e específicos de um contrato que ainda não está
estabelecido que seja válido como arrendamento” e que, “do
que verdadeiramente se trata, da parte da autora requerente, é de falta de
legitimação material – como tal, de condição da acção – para, em tais casos,
peticionar despejo incidental, de modo que, não tendo sido feito qualquer
pagamento ou depósito, pelo alegado inquilino, na sequência de tal
requerimento, tal irreleva do ponto de vista de poder ser cominado com a sanção
resolutória do contrato e, consequentemente, o requerimento da autora haverá de
ser julgado improcedente, sem quaisquer termos posteriores, na medida em que
não só processualmente não estabelecidos para o caso, como porque a prova a
produzir respeita ao destino da própria acção e nessa sede cabe”[13].
A
Autora até poderá ter razão a final. Mas, para usar o incidente de despejo
imediato, com a matéria-base que se mostra controvertida, não a tem e foi isso
que foi – e bem – decidido pelo Tribunal a
quo, pelo que se confirmará a decisão sob recurso.
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar improcedente a apelação
e confirmar a decisão recorrida.
Custas
a cargo da Autora-Recorrente.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
Lisboa, 21 de Dezembro de 2021
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1]
Recursos no Novo
Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2]
Disponível em www.dgsi.pt.
[3]
António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento
Urbano (RAU), 6.ª edição actualizada, Rei dos Livros, 2001, página 174 (em
anotação ao artigo 58.º do RAU, que antecedeu o regime vigente, mas que neste
aspecto se não mostra alterado).
[4] Fernando de Gravato Morais, Falta de Pagamento da Renda no
Arrendamento Urbano, Almedina, 2010, página 228.
[5]
Assim, também,
RP 11/05/2021 (Processo n.º 1344/20.0T8VRL-A.P1-Ana Lucinda Cabral), disponível em www.dgsi.pt.
[6]
Sublinhado e carregado nossos.
[7] Acórdão do Tribunal
Constitucional de 27/06/2018 (1.ª Secção, Acórdão n.º 327/2018, Processo n.º
850/2014-Cláudio Monteiro),
disponível em https://jusnet.wolterskluwer.pt/Content/DocumentMag.aspx?params=H4sIAAAAAAAEAMtMSbH1CjUAAmMzY3NzE7Wy1KLizPw8WyMDQwsDMyNzkEBmWqVLfnJIZUGqbVpiTnGqWmJScX5OaUlqaFGmbUhRaSoAfQ3To0YAAAA%3DWKE.
Em
sentido idêntico já tinha sido proferido o Acórdão do Tribunal Constitucional
de 06/12/2005 (2.ª Secção, Acórdão n.º 673/2005, Processo n.º 100/2003-Mário Torres, publicado no Diário da República,
II série, n.º 25, de 03/02/2006, disponível também em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/673-2006-927691),
onde se julgou “inconstitucional, por violação do princípio da proibição da
indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a
norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º
321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual mesmo que na acção
de despejo persista controvérsia, quer quanto à identidade do arrendatário quer
quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a
ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o
despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na
pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a
apresentação de prova, até ao termo do prazo para a resposta, de que procedeu
ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização
devida”.
Vd.
também, Maria Olinda Garcia,
Arrendamento Urbano Anotado – regime substantivo e processual (alterações
introduzidas pela Lei n.º 31/2012, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2014, página
194.
[8]
Laurinda Gemas-Albertina Pedroso-Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano,
3.ª edição, Quid Juris, 2011, páginas 53 e 56.
[9]
Disponível em www.dgsi.pt.
[10]
Disponível em www.dgsi.pt.
[11]
Em sentido
semelhante, RP 20/05/2002 - Processo n.º 0250216-Ribeiro de Almeida (Sempre que na acção se aleguem factos que, a
serem provados, inviabilizam a procedência da acção intentada com fundamento na
falta de pagamento de rendas, não deve ser decretado o despejo imediato) e RL
19/06/2001 - Processo n.º 0032537-Ponce
de Leão (Para efeitos do (…)despejo
imediato, só se pode falar em rendas vencidas na pendência da acção se esta
assentar num arrendamento válido e eficaz quanto ao réu, que não seja de algum
modo posto em questão por este, ou se o mesmo não põe em causa o direito que o
autor se arroga de receber rendas).
[12]
“Com efeito, o
pressuposto do incidente é a falta de cumprimento da obrigação contratual de
pagamento da renda, pelo que, não estando assente a existência e validade do
contrato de arrendamento, fica por demonstrar tal requisito, com a consequente
falta e fundamento para a resolução do contrato e despejo” (Laurinda Gemas-Albertina Pedroso-Caldeira
Jorge, Arrendamento…, cit., página 56).
[13]
Relação de Évora
22/01/2004 (Processo n.º 2414/03-3-Pereira
Baptista), disponível em www.dgsi.pt.
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