domingo, 13 de março de 2022

Incidente de Despejo Imediato: os requisitos e o que nele pode ser apreciado - RL 21/12/2021

 Processo n.º   8161/20.6T8LSB-A.L1

Tribunal a quo - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa-Juiz 7

Sumário:

I – O incidente de despejo imediato existe para obstar a que, no decurso de uma acção de despejo, alguém possa desfrutar de um imóvel durante o seu decurso, sem pagar as respectivas rendas.

II – Formalmente, o incidente é simples e passa por um requerimento do senhorio, pela audiência do arrendatário e pela decisão.

III – Para que o incidente possa funcionar é necessário:

                                       - que esteja assente a existência de um contrato de arrendamento;

                                       - que haja mora do arrendatário no tocante ao pagamento da renda na pendência da acção de despejo.

IV – A ausência do pagamento da renda não é a única questão a apreciar no incidente de despejo imediato.

V - Se houver matéria controvertida no que respeita à existência do contrato, às partes que nele são contratantes, à sua vigência, ou a alguma patologia que lhe esteja associada e possa influenciar o pagamento das rendas em causa, não pode ser utilizado o incidente de despejo imediato (a letra do artigo 14.º do NRAU não o permite e a sua ratio não o justifica).

VI - Estando alegada factualidade que pode conduzir à improcedência da acção e a exigir às partes o devido esforço probatório, o incidente de despejo imediato não pode ser usado, pois existe uma falta de legitimação material para fazer esse pedido incidental.

 

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

 

Relatório

E…, SA. intentou a presente acção declarativa de  condenação contra

            - C…, LDA.,

            - D… e

            - E…
 
peticionando que

                        a) Seja declarado caducado o/s contrato/s de subarrendamento a favor da R. sociedade e, em conformidade, seja a mesma condenada na entrega do imóvel à A., livre e devoluto e pessoas e bens próprios;

                        b) Subsidiariamente seja declarada a nulidade do/s subarrendamento/s por simulação e, em conformidade, ser a sociedade R. condenada a entregar à A. o imóvel em causa, livre e devoluto de pessoas e bens ou, entendendo-se que estamos perante um negócio doloso que seja declarada a sua anulação.

                        c) Subsidiariamente ao anterior seja declarada a resolução do contrato de subarrendamento e, em conformidade, seja a sociedade R. condenada a entregar à A. o imóvel em causa, livre e devoluto de pessoas e bens e ainda na condenação da mesma, em regime de solidariedade com os demais RR. No pagamento do valor de € 5.400,00 vencidos e ainda no montante de € 1.400,00 mensais desde Abril de 2020, inclusive, e até à prolação de douta sentença que declare a resolução do contrato e, a partir da data desta, no montante mensal indemnizatório de € 2.800,00 mensais.

 

Foi apresentada Contestação onde – para o que aqui releva – os Réus questionam a posição da Autora como “senhoria”, na relação de subarrendamento com a Ré sociedade (colocando em causa a posição de locatária financeira da Autora e a sua legitimidade material para o recebimento de rendas.

 

Foi apresentada Réplica, onde se defenda que a acção seja julgada procedente no saneamento.

 

Posteriormente, a mesma Autora apresentou Requerimento suscitando incidente de despejo imediato da sociedade Ré e solicitando a sua notificação para dar cumprimento ao disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU, alegando que a dita Ré reconheceu a Autora como locatária (mercê do pagamento de três rendas); que não paga as rendas, pelo menos, desde fevereiro de 2020 (com referência a Março) e subsequentes; e que os antigos locatários já não têm direito ao recebimento das rendas.

 

O Tribunal a quo veio a decidir o seguinte:

Ora, de acordo com o disposto no artigo 14.º do NRAU, sob a epígrafe “Ação de despejo”, nos seus números 1, 3, 4 e 5:

“1 - A ação de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo.

3 - Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.

4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.

5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O”.

 

Porém, lida e analisada a contestação apresentada nos presentes autos, verifica-se que a linearidade invocada pela Autora não ocorre em concreto, visto ser questionada a posição desta como “senhoria” na relação de subarrendamento com a Ré.

Com efeito, a simples leitura do articulado 6.º a 21.º da contestação, denominado de “impugnação da matéria de facto”, permite observar que a Ré questiona a posição de locatária financeira à Autora, ou seja, coloca em crise a legitimidade material desta para o recebimento de rendas, erigindo tal matéria a uma temática controvertida na lide.

A mesma Ré chega a afirmar, a tal propósito, que:

“(…).

17º. Em 19 de dezembro, recebem os RR. nova missiva, com a indicação de Interpelação, doc. 4, que se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, indicando outra sociedade, desta vez com a firma E…, S:A, A., nos presentes autos,

18º. Contudo, no dia 4 de novembro de 2019, é indicado aos RR., através de email, conforme doc.5, que se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o IBAN, para que os RR, efectuassem as transferências das rendas respectivas, conforme doc. 6, que se junta e dá por integralmente reproduzido;

19º. Ora, a A. através do seu mandatário, foi interpelada pelos mandatários dos RR., para que procedesse à demonstração documental da transferência de propriedade do imóvel afecto ao contrato de subarrendamento de que os RR., são subarrendatários;

20º. Nesse mesmo contrato supra mencionado, é claro que o mesmo só pode ser alvo de cessação, ou não renovação pelo primeiro contraente, LUIS MANUEL DE PAIVA RODRIGUES, ou pelo proprietário do imóvel, único dono e legitimo proprietário da propriedade plena, Banco …, S.A;

21º. O que não aconteceu”.

Nessa medida, constatando-se que a indicada argumentação é suficiente para rebater, de antemão, os aspetos “lineares” que a Autora avançou no seu requerimento antecedente, entende o Tribunal não estarem reunidas as condições para se determinar o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU, na certeza de que a Ré não reconheceu a Autora como locatária financeira do imóvel em apreço, nem o seu direito ao recebimento das rendas.

Ora, se é discutida tal questão, com base em pressupostos de facto invocados pela Ré na sua contestação, está vedado à “senhoria” o recurso ao incidente de despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da ação, desde logo porque a própria obrigação de pagamento de “rendas”, em sentido próprio, é posta em causa.

Como já referia Aragão Seia (cfr. Arrendamento Urbano, Almedina 7.ª edição, pág. 382), com um alcance similar: “Só se pode falar em rendas vencidas na pendência da ação se esta estiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão pelo réu” – veja-se, também em sentido confluente, Ac. Rel. Lisboa de 20.12.2018, relatado por Carlos Oliveira e com texto disponível em www.dgsi.pt.

Em face do exposto, sem necessidade de considerandos acrescidos, por despiciendos, o Tribunal indefere liminarmente o incidente de despejo imediato suscitado pela Autora, não se ordenando o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU”.

 

A Autora recorreu desta decisão lavrando as seguintes Conclusões:

A) É aplicável aos presentes autos o disposto no art. 14.º, n.º 4 e 5, do NRAU que determina a entrega imediata do locado.

B) A R. nada disse sobre o doc. n.º 1 junto com a p.i. que constitui um documento particular autenticado, cuja falsidade não foi posta em causa (art. 363.º, n.º 3, do CC), no qual a autenticidade está presumida (art. 370.º, n.º 1, do CC), tendo-se as assinaturas por verdadeiras (art. 375.º do CC), assim fazendo-se prova plena das declarações dos seus autores (art. 376.º do CC), o qual assim constitui prova inequívoca da posição de senhoria da A. perante a R..

C) A R., por outro lado, pagou à A. as três primeiras prestações, a título de rendas, tal como consta no doc. nº 6 junto da p.i., o que também não foi contestado.

D) Limitou-se a R., e nisto se estriba a douta sentença sindicada, a referir que seria seu senhorio o primitivo titular da locação financeira e, consequentemente, o contrato só poderia ser alvo de cessação ou não renovação por parte do mesmo ou ainda do Banco … (proprietário do imóvel), Cfr. ponto 20 da contestação.

E) E a douta sentença, neste particular, refere então que a R. não reconheceu a A. como locatária financeira do imóvel nem o seu direito ao recebimento das rendas e, consequentemente, mercê do facto de a obrigação do pagamento da renda estar contestada não admitiu o incidente de despejo imediato, assim o indeferindo liminarmente, do que, respeitosamente, discordamos.

F) A obrigação de pagamento da renda é correspetiva da obrigação, a cargo do senhorio, de proporcionar o gozo da coisa (art. 1022.º, conjugado com os art.s 1031.º, al. b) e 1038.º, al. a), do C.C.) e tendo a R. decidido, pura e simplesmente, deixar de pagar a renda (que já pagava à A.), existe incompatibilidade com a sua continuação do gozo da coisa.

G) Não colhe a simples afirmação da R. de que não reconhece a A. como senhoria e remetendo esta qualidade para os anteriores locatários financeiros porquanto, naturalmente, isto vai frontalmente contra o que se disse sobre o teor e efeitos do contrato de locação financeira outorgado entre o … e a A. e, bem assim, contra o ato de pagamento das rendas iniciais e ainda, por outro lado, a montante, a R. nem provou, tampouco sequer alegou, que estaria a pagar a renda a quem entendia ser senhorio.

H) Deveria, sempre com o devido respeito, o tribunal “a quo” observar que os fundamentos de defesa em nada afetam o cumprimento da obrigação de pagamento de renda e mais não são, face ao que foi dito, uma forma de protelar o gozo da coisa. Ou seja o espírito da lei ao criar este incidente é de não permitir que alguém possa gratuitamente, tal o caso, gozar de um imóvel, injustificadamente e à conta de outrem, durante o longo tempo que pode durar uma ação até ao despejo efetivo, tal como ocorre nesta ação que já tem cerca de 17 meses e ainda tem dois intervenientes que não se conseguem citar. De resto, notificada entre mandatários, a R. nem se pronunciou sobre o incidente.

I) Por outro lado a limitação objetiva do tribunal em conhecer diversas questões de forma prévia não contende com a possibilidade de decisão sempre que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, n.º 3, do CPC) e, na verdade, o que está apenas em causa é matéria de direito porquanto, face aos documentos juntos, apenas se pretende saber se o título de arrendamento é o não válido e, cremos, foi a própria R., nos termos e ações indicados, factual e juridicamente, que o aceitou como bom e, de resto, a validade ou invalidade do contrato é do conhecimento oficioso.

J) É este o sentido, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 639.º, n.º 2 al. c) do CPC, que deveria ser interpretado o art. 14.º, nºs 4 e 5 do NRAU, tendo ainda sido incorretamente analisados, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, os concretos meios de prova que decorrem dos documentos juntos sobre os n.ºs 1 e 6 à petição inicial.

 

Os Réus apresentaram Contra-Alegações, defendendo que não seja dado provimento ao recurso, uma vez que:

A)    A decisão está bem fundamentada, e faz boa aplicação da Lei aos factos em apreço;

            B) À Recorrente não lhe assiste razão quanto aos requisitos necessários à Acção de Despejo, por esta peticionada;

            C) Não é de todo aplicável o disposto no artigo 14º/4 e 5, do NRAU, que determina a entrega imediata do locado;

            D) A Recorrente não é Arrendatária do locado, porquanto o contrato de arrendamento não foi efectuado com a mesma, mas sim com o Sr. L…;

            E) Os Recorridos pagaram as rendas atempadamente, sem nunca falhar um mês, ao Arrendatário, conforme disposto nos artigos 1038º e 1039º, ambos do CC;

            F) Os Recorridos não reconhecem a Recorrente como Arrendatária, porquanto não houve cedência de posição contratual por parte do Arrendatário original, conforme dispõe o artigo 1059.º, da Lei n.º 6/2006, Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), com referência ao artigo 424º, do CPC;

G) Os Recorridos não aceitaram factual nem juridicamente qualquer contrato, que não seja o doc.1, junto com a contestação;

H) O tribunal “a quo”, decidiu, e bem, ao abrigo do disposto no artigo 5º/2 e 3, considerando todos os factos alegados pelas partes, dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido.

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

 

Em causa estará, assim, a verificação da presença dos requisitos do despejo imediato no contexto dos presentes autos.

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

 

Fundamentação de Facto

Os elementos relevantes constam descritos no Relatório.

 

 

Fundamentação de Direito

Para obstar à manutenção de situações de ocupação de locados sem pagamento de rendas, no âmbito de um processo de despejo, o legislador criou um incidente nominado onde faculta ao senhorio a possibilidade de pedir o despejo, sempre e quando o arrendatário incumpra a obrigação de pagar as rendas vencidas na pendência da acção.

O espírito da lei” – em linha com o exposto no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2018 (Processo n.º 1830/17.0T8VFX.L1-7-Carlos Oliveira[2]) – “ao criar o incidente de despejo imediato, agora previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do N.R.A.U., foi sempre o de não permitir que alguém pudesse, gratuitamente, desfrutar de imóvel, durante o longo período que poderia durar a ação até ao despejo efetivo, numa situação que não seria reparável por nenhuma condenação em indemnização, ou pelo pagamento das rendas vencidas, por ser frequente o despejado não ter bens bastantes para o efeito. Pretendia-se evitar que o devedor da renda permanecesse no gozo da coisa injustificadamente e à custa alheia”.

Assim, o artigo 14.º do NRAU refere – no seu n.º 3 – que, na pendência da acção de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.

Por seu turno, o n.º 4 do mesmo normativo dispõe que, se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos.

Por fim e no caso de caso de incumprimento pelo arrendatário, na sequência da referida notificação, o senhorio pode requerer o despejo imediato.

 

“O esquema do incidente é o seguinte: petição do senhorio, audiência do arrendatário e decisão”[3], sendo que é “necessário, por um lado, que haja mora do arrendatário no tocante ao pagamento da renda, embora aquela se reporte a um período específico: o da pendência da acção de despejo.

O que pressupõe a constituição de uma relação arrendatícia válida e em vigor”[4].

Releva pois aqui sublinhar, que a ausência do pagamento pode não ser a única questão apreciar no que respeita ao destino deste incidente[5].

É que, como vem de há muito a ser sublinhado pelo Tribunal Constitucional, “o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, deve, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, ser interpretado em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto a outras questões[6] que não digam exclusivamente respeito à falta de pagamento de rendas, o réu não está impedido de exercer o contraditório mediante a utilização de outros meios de defesa”[7].

Por este motivo Laurinda Gemas-Albertina Pedroso-Caldeira Jorge concluem que é “o juiz que deve apreciar se o senhorio pode lançar mão do incidente, pois há situações em que o mesmo não pode funcionar”[8].

Nesta base, podemos concluir que este incidente, se bem que tenha como seu foco principal a falta de pagamento - no decurso da acção - das rendas devidas pela existência do contrato (desde logo pelas consequências que tem), se houver matéria controvertida pelo menos no que respeita à existência do contrato, às partes que nele são contratantes, à sua vigência, ou a alguma patologia que lhe esteja associada e possa influenciar o pagamento em causa, não poderá funcionar, por nem a sua ratio aí se justificar, nem a letra do artigo 14.º o permitir.

Assim, seguindo aqui de perto o decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/05/2021 (Processo n.º 273/20.2.T8AMD.B.L1-6-Ana de Azeredo Coelho[9]), o “incidente implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.

Temos assim como requisitos de procedência do incidente:

1) não pagamento ou depósito das rendas na sequência da notificação a que alude o artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006.

2) pendência de acção de despejo.

3) não pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.

4) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à existência e validade do arrendamento.

5) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à obrigação de pagamento das rendas e à mora do devedor”.

 

Entrando a decidir.

Compulsados os autos importa assinalar que, para além da Autora-Recorrente e dos Réus (Sociedade e pessoas singulares, sendo estas últimas fiadoras), na relação contratual que está subjacente, surgem ainda o Banco…, L…, P… e a F…, sendo que as concretas posições que nela ocupam se mostram controvertidas.

O Tribunal a quo sublinhou esta questão de forma clara e assinalou que não estão reunidas as condições para se determinar o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 4, do NRAU, uma vez que não reconheceu a Autora como locatária financeira do imóvel em apreço, nem o seu direito ao recebimento das rendas.

Ou seja e em face da forma como os autos se mostram configurados tal qual resulta da Petição Inicial e da Contestação, aceitando a celebração do contrato de subarrendamento por 10 anos, a 01/11/2013 e por 10 anos (6.º e 9.º da Contestação), entre L… e C…, Lda. (7.º da Contestação) e que Banco…é o proprietário da fracção objecto do subarrendamento (8.º da Contestação), estando o imóvel em nome de L… (13.º da Contestação), não tendo havido cessação do contrato de subarrendamento (14.º da Contestação) e tendo aos Réus sido comunicado que a F… era a nova senhoria (15.º e 16.º da Contestação), surgindo depois uma interpelação da ora Autora intitulando-se senhoria (17.º da Contestação).

Como bem se assinalou no Acórdão da Relação do Porto de 20/05/2008 (Processo n.º 0821166-Cristina Coelho[10]), o incidente de despejo imediato “pressupõe que se mostre assente na acção de despejo a existência de um contrato de arrendamento, a legitimidade do autor e do réu, e o montante da renda acordada, sob pena de, sendo questionada alguma destas situações, não dever proceder o “incidente”, ou, actualmente, não se ordenar a notificação do arrendatário nos termos do art. 14º, nº 4 do NRAU[11].

Com este contexto de divergência quanto aos factos essenciais que relevam para a possibilidade de ser decretado um despejo imediato, torna-se evidente que o despejo imediato, tal como configurado no artigo 14.º do NRAU, não pode (no momento em que processualmente nos encontramos) ser utilizado pela Autora nos presentes autos.

Usando as palavras do Tribunal a quoestá vedado à “senhoria” o recurso ao incidente de despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da ação, desde logo porque a própria obrigação de pagamento de “rendas”, em sentido próprio, é posta em causa”, pois são os próprios intervenientes nas relações contratuais de arrendamento e subarrendamento que estão em causa.

Certo que a Autora usa argumentação relevável nas suas conclusões, mas essa relevância tem de ser apreciada na acção e não no incidente, o qual pressupõe esta concreta factualidade como assumida e resolvida: estando alegada factualidade que pode conduzir à improcedência da acção, exigindo o correspectivo esforço probatório às partes, o incidente de despejo imediato não pode ser usado[12].

Em situação paralela, o Desembargador Pereira Baptista sublinhou mesmo, no Acórdão da Relação de Évora de 22 de Janeiro de 2004, que admitir aqui o despejo imediato representaria que alguém pudesse lograr “prevalecer-se de efeitos próprios e específicos de um contrato que ainda não está estabelecido que seja válido como arrendamento” e que, “do que verdadeiramente se trata, da parte da autora requerente, é de falta de legitimação material – como tal, de condição da acção – para, em tais casos, peticionar despejo incidental, de modo que, não tendo sido feito qualquer pagamento ou depósito, pelo alegado inquilino, na sequência de tal requerimento, tal irreleva do ponto de vista de poder ser cominado com a sanção resolutória do contrato e, consequentemente, o requerimento da autora haverá de ser julgado improcedente, sem quaisquer termos posteriores, na medida em que não só processualmente não estabelecidos para o caso, como porque a prova a produzir respeita ao destino da própria acção e nessa sede cabe[13].

A Autora até poderá ter razão a final. Mas, para usar o incidente de despejo imediato, com a matéria-base que se mostra controvertida, não a tem e foi isso que foi – e bem – decidido pelo Tribunal a quo, pelo que se confirmará a decisão sob recurso.

 

 

 

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo da Autora-Recorrente.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

Lisboa, 21 de Dezembro de 2021

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Pires de Sousa

 

 

 

José Capacete



[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2] Disponível em www.dgsi.pt.

[3] António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), 6.ª edição actualizada, Rei dos Livros, 2001, página 174 (em anotação ao artigo 58.º do RAU, que antecedeu o regime vigente, mas que neste aspecto se não mostra alterado).

[4] Fernando de Gravato Morais, Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, Almedina, 2010, página 228.

[5] Assim, também, RP 11/05/2021 (Processo n.º 1344/20.0T8VRL-A.P1-Ana Lucinda Cabral), disponível em www.dgsi.pt.

[6] Sublinhado e carregado nossos.

[7] Acórdão do Tribunal Constitucional de 27/06/2018 (1.ª Secção, Acórdão n.º 327/2018, Processo n.º 850/2014-Cláudio Monteiro), disponível em https://jusnet.wolterskluwer.pt/Content/DocumentMag.aspx?params=H4sIAAAAAAAEAMtMSbH1CjUAAmMzY3NzE7Wy1KLizPw8WyMDQwsDMyNzkEBmWqVLfnJIZUGqbVpiTnGqWmJScX5OaUlqaFGmbUhRaSoAfQ3To0YAAAA%3DWKE.

Em sentido idêntico já tinha sido proferido o Acórdão do Tribunal Constitucional de 06/12/2005 (2.ª Secção, Acórdão n.º 673/2005, Processo n.º 100/2003-Mário Torres, publicado no Diário da República, II série, n.º 25, de 03/02/2006, disponível também em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/673-2006-927691), onde se julgou “inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual mesmo que na acção de despejo persista controvérsia, quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”.

Vd. também, Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano Anotado – regime substantivo e processual (alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2014, página 194.

[8] Laurinda Gemas-Albertina Pedroso-Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, 3.ª edição, Quid Juris, 2011, páginas 53 e 56.

[9] Disponível em www.dgsi.pt.

[10] Disponível em www.dgsi.pt.

[11] Em sentido semelhante, RP 20/05/2002 - Processo n.º 0250216-Ribeiro de Almeida (Sempre que na acção se aleguem factos que, a serem provados, inviabilizam a procedência da acção intentada com fundamento na falta de pagamento de rendas, não deve ser decretado o despejo imediato) e RL 19/06/2001 - Processo n.º 0032537-Ponce de Leão (Para efeitos do (…)despejo imediato, só se pode falar em rendas vencidas na pendência da acção se esta assentar num arrendamento válido e eficaz quanto ao réu, que não seja de algum modo posto em questão por este, ou se o mesmo não põe em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas).

[12] “Com efeito, o pressuposto do incidente é a falta de cumprimento da obrigação contratual de pagamento da renda, pelo que, não estando assente a existência e validade do contrato de arrendamento, fica por demonstrar tal requisito, com a consequente falta e fundamento para a resolução do contrato e despejo” (Laurinda Gemas-Albertina Pedroso-Caldeira Jorge, Arrendamento…, cit., página 56).

[13] Relação de Évora 22/01/2004 (Processo n.º 2414/03-3-Pereira Baptista), disponível em www.dgsi.pt.  

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