quarta-feira, 11 de maio de 2022

Uma mediação imobiliária que correu mal, uma nulidade num contrato e uma carta enviada para o sítio certo

Processo n.º 86700/20.8YIPRT.L1

Tribunal a quo

Tribunal Judicial da Comarca da Madeira-Juízo Local Cível do Funchal - Juiz 3

Recorrente(s)

R.  (Réu)

Recorrido/a(s)

 M., Lda. (Autora)

 

            Sumário:

I – Um contrato de mediação imobiliária que tenha resultado de uma negociação prévia entre as partes afasta a aplicação do do regime das cláusulas contratuais gerais, mas, sob pena de nulidade, tem de conter todos os elementos exigidos pelo n.º 2 do artigo 16.º da Lei 15/93 de 08 de Fevereiro.

II – Sendo o contrato nulo tal não obsta a que a mediadora possa ser ressarcida pelo serviço que prestou: em face do artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, não sendo possível restituir a prestação de facto positiva (“tudo o que tiver sido prestado”), o critério para encontrar o valor a restituir haverá de ser o da remuneração acordada pelos contraentes, por corresponder ao valor que, de forma objectiva, se poderá reconduzir ao conceito de “valor correspondente”.

III – Se o cliente envia uma carta registada com aviso de recepção para a mediadora para denunciar o contrato antes da sua prorrogação automática e a mediadora não a recebe e ignora o aviso para a levantar originando a sua devolução, a denúncia tem-se como válida e eficaz.

 

Relatório

M, Lda. intentou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra R peticionando a sua condenação no pagamento de € 8.997,50 acrescidos de juros de mora, vencidos até 13/10/2020 e vincendos até integral pagamento.

Em suma, a Autora alega o não pagamento de uma factura emitida no âmbito da sua contratação pelo Réu para prestação de serviços de mediação imobiliária (venda de um seu imóvel).

Citado, o Réu apresentou Oposição, defendendo, em síntese, a improcedência da acção, por ter atempadamente denunciado o contrato.

Saneada a acção, realizou-se a audiência de Julgamento sendo proferida Sentença, na qual se conclui com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo a presente acção procedente, por provada, e, em consequência, condeno o réu R no pagamento à autora M, Lda., da quantia de € 8.997,50 (oito mil, novecentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos), a título de incumprimento contratual, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal civil de 4%, desde a data de vencimento da factura (03/08/2020) até efectivo e integral pagamento”.

 É desta decisão que vem interposto recurso por parte do Réu, o qual apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:

1. O contrato em causa nos autos é um contrato de mediação imobiliária onde estão inseridas cláusulas contratuais gerais, em que só o preço - definido pela avaliação efectuada pela A. -, o prazo de duração do contrato e a opção pelo regime de exclusividade foram definidos pelo Réu, o que não é suficiente para afastar a qualificação do contrato sub judice como sendo um contrato de adesão ou com cláusulas contratuais gerais sujeitas ao seu regime jurídico.

2. O contrato de mediação imobiliária em causa corresponde a um modelo-tipo de contrato utilizado pela A., pré-preenchido, apenas com algumas cláusulas com espaços em aberto destinados a serem preenchidos posteriormente com a identificação do cliente, do prédio, valor da comissão, duração do contrato, identificação do angariador imobiliário, e opção pelo regime de exclusividade ou não.

3. “O facto de o contraente que propõe contratos cujas cláusulas são predispostas por si, consentir na negociação de algumas, não exclui que se qualifique o contrato como contrato de adesão: o que importa é saber se o aderente pode negociar as que lhe aprouver” (Acórdão do STJ de 14/12/2016).

4. Face às cláusulas pré-fixadas, o contrato em questão contempla primordialmente os interesses económicos da sociedade mediadora/A., e não os do consumidor/Réu, pois, mais importante do que a duração do contrato é a possibilidade da sua renovação automática, a forma e o prazo de denúncia, e a percentagem da comissão, e essas não foram, nem são susceptíveis de serem negociadas no modelo seguido pela A..

5. O presente processo teve início com um procedimento de Injunção, tendo a A., através do seu ilustre Mandatário, indicado no Requerimento de Injunção que se tratava de um contrato com consumidor que comporta cláusulas gerais.

6. Nos termos do disposto no art. 16º da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 102/2017, de 23 de Agosto, uma empresa de mediação que pretenda utilizar um contrato de mediação imobiliária com cláusulas contratuais gerais tem duas opções:

                             - Ou segue o modelo de contrato aprovado pela Portaria 228/2018, de 13 de Agosto, estando dispensada da aprovação prévia mas devendo depositar o modelo de contrato, junto do IMPIC, I. P., sob pena de nulidade;

                             - Ou não segue, e nesse caso, os modelos de contratos com cláusulas contratuais gerais de mediação imobiliária só podem ser utilizados pela empresa após aprovação prévia dos respetivos projetos pelo IMPIC, I. P., sob pena de nulidade.

7. O contrato de mediação imobiliária em causa não corresponde ao modelo aprovado pela referida Portaria, pelo que o mesmo estava sujeito a aprovação prévia pelo IMPIC, I. P., sob pena de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 16º, n.ºs 4, 6, e 7, da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 102/2017, de 23 de Agosto, e arts. 1º, 2º e 3 da Portaria 228/2018, de 13 de Agosto.

8. Competia ao A., como facto constitutivo do seu direito, alegar e juntar documento comprovativo de que o contrato em questão tinha sido aprovado pelo IMPIC, I.P., o que não fez.

9. Pelo que o contrato em causa é nulo, por violação do disposto no art. 16º, n.ºs 4 e 7, da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 102/2017, de 23 de Agosto.

10. O contrato de mediação celebrado entre a A. e R., nomeadamente, nas suas cláusulas Quarta e Quinta, não contém os elementos obrigatórios constantes das alíneas c) e g) do n.º 2 do referida norma do art. 16º, dado que não resulta do clausulado a especificação dos efeitos que decorrem do regime de exclusividade para o cliente, nomeadamente, o de maior relevância e repercussão na sua esfera económica previsto no art. 19º, n.º 2, da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, ou seja, o facto de ser igualmente devida à empresa a remuneração acordada nos casos em que o negócio visado no contrato de mediação tenha sido celebrado em regime de exclusividade e não se concretize por causa imputável ao cliente proprietário ou arrendatário trespassante do bem imóvel.

11. Mas apenas o direito que só a A., enquanto Mediadora contratada, tem de promover o negócio objecto do contrato de mediação durante o respectivo período de vigência.

12. Indicar que a remuneração é acrescida de IVA à taxa legal em vigor não é exactamente o mesmo que indicar a taxa de IVA aplicável, em termos de percentagem aplicável, sendo, a nosso ver, necessário indicar essa percentagem, o que não foi feito.

13. O contrato celebrado entre as partes é também nulo por violação do disposto no art. 16º, n.º 2, alíneas c) e g), e n.º 7, da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 102/2017, de 23 de Agosto.

14. O contrato de mediação em apreço é nulo, pelas razões e fundamentos invocados supra, sendo certo que a nulidade é do conhecimento oficioso, e como tal, independentemente dos fundamentos que tenham sido invocados pelas partes nos articulados, cumpre ao Tribunal apreciar se existe outra causa de nulidade, e existindo, declará-la.

15. Caso assim se não entenda, e se considere o contrato celebrado entre as partes válido e não nulo, então, entendemos que o mesmo foi validamente denunciado pelo Réu, tendo em conta a factualidade provada sob as alíneas C), Q) e R), e os documentos sob os n.ºs. 3 e 8 juntos com a Oposição, para que se remete.

16. O douto Tribunal a quo pronunciou-se no sentido de considerar que “não tendo operado a suposta denúncia, o contrato renovou-se por igual período. Logo estava em vigor à data da venda do imóvel”, o que se discorda.

17. A denúncia do contrato de mediação efectuada pelo Réu foi válida e eficaz, impedindo, assim, a renovação do contrato, cessando os seus efeitos a partir do dia 13 de Abril de 2020.

18. A carta de denúncia foi entregue na loja CTT …, e enviada sob registo e com aviso de recepção a 19 de Fevereiro de 2020, a 20 de Fevereiro, a carta não foi entregue pelo motivo de o destinatário estar ausente, ficando disponível para levantamento no Posto dos CTT …, a partir do dia 21 de Fevereiro, sendo devolvido ao remetente a 4 de Março, com a indicação de não ter sido reclamado/levantado.

19. O Réu denunciou validamente o contrato de mediação imobiliária por carta registada com aviso de recepção para a morada do estabelecimento da A., onde esta exerce a sua actividade de mediação, tendo ficado um aviso postal para levantar a referida carta do R., num posto dos CTT, pelo que se a A., não levantou, dúvidas inexistem de que só por culpa sua, só por facto que lhe é única e exclusivamente imputável é que não foi notificada da denúncia do Réu, pelo que se considera válida e eficaz a denúncia efectuada, nos termos do disposto no art. 224º, n.º 2, do Código Civil.

20. Nesse sentido, cite-se, entre muitos outros, o douto Acórdão do STJ, de 14 de Novembro de 2006, (in CJ, STJ, Ano XIV, tomo 3, pág.s 109 a 111), e o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Setembro de 2014 (Processo 53/14.4TBACN.C1), disponível em www.dgsi.pt, para que se remete.

21. A A. não tem direito a receber a remuneração acordada por o imóvel ter sido vendido a 05/06/2020, quando o contrato já não estava em vigor, e sem a sua intervenção, sendo que os únicos serviços que prestou foram diligenciar pela emissão de certificado energético relativo ao imóvel, publicitação e realização de visitas ao imóvel, sem que desses serviços tivessem resultado potenciais interessados para o negócio, e sem que este se tivesse concretizado em consequência actual e directa da prestação dos seus serviços.

22. O art. 19.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, dispõe que num contrato de mediação com exclusividade, como é o caso, apesar da prestação a que a mediadora se obriga ser uma prestação de meios, a obrigação de retribuição, a cargo do cliente, está condicionada à obtenção de resultados, quer seja, a concretização do negócio objecto do contrato de mediação com interessado angariado pela mediadora, quer seja, a simples angariação de interessado no negócio, não se concretizando este por causa imputável ao cliente.

23. Não resulta da matéria provada que a A. tivesse angariado qualquer interessado no negócio, e muito menos, que tivesse concretizado o negócio visado pelo contrato de mediação com interessado angariado por si, pelo que os serviços prestados pela A. não tiveram qualquer benefício ou vantagem para o Réu.

24. Para que a mediadora imobiliária tenha direito à remuneração incumbe-lhe a alegação e prova de factos que permitam estabelecer o nexo causal entre a atividade de mediação desenvolvida por aquela e a concretização do negócio.

25. Assim sendo, entendemos que a A. não tem direito à remuneração prevista no contrato celebrado entre as partes, quer o contrato seja válido, quer seja nulo.

26. Nesse sentido, cite-se o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 2021 (Processo 5722/18.7T8LSB.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

IV. A atividade desenvolvida pela mediadora, com vista à angariação de interessados para o negócio objeto da mediação, sem que esse negócio se concretize, não sendo a ausência de resultado imputável ao cliente, não é considerada uma atividade que, só por si, aporte alguma vantagem ou benefício para o cliente.

V. Se da atividade desenvolvida pela Autora não foi alcançado nenhum dos resultados a que o pagamento da retribuição estava condicionado, não faz qualquer sentido que, por força da nulidade do contrato, a Autora possa obter aquilo a que não teria direito se o contrato fosse válido”.

27. Nesse sentido, cite-se, ainda, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de Março de 2021 (Processo 1145/18.6T8FAR.E1), disponível em www.dgsi.pt: “V - Se a atividade desenvolvida e os resultados obtidos não atribuíssem à empresa de mediação, se o contrato fosse válido, o direito a remuneração, não lhe assiste direito a compensação decorrente da declaração de nulidade do negócio”.

28. A considerar-se que o contrato não é nulo, e que foi válida e eficazmente denunciado pelo Réu, então, à data em que o imóvel objecto do contrato de mediação foi vendido o contrato já não estava em vigor, pelo que é absolutamente lícito que o imóvel fosse vendido com intervenção de outra mediadora, não tendo a A. direito a qualquer remuneração, pois, a A., não angariou quaisquer interessados para o negócio, nem concretizou a venda do imóvel em questão, como consequência da sua actividade de mediação.

29. O Réu não violou a sua obrigação de não vender o imóvel, sem intervenção da Autora, no decurso do prazo do contrato, porquanto à data da venda do imóvel com intervenção de outra mediadora, o contrato de mediação celebrado entre a A. e R. já não estava em vigor, por força da denúncia válida e eficaz efectuada pelo Réu, pelo que não houve qualquer incumprimento contratual por parte deste.

30. Não existe qualquer obrigação de o Réu pagar à Autora a quantia peticionada por esta, a título de pagamento da remuneração subjacente aos serviços de mediação imobiliária prestados pela Autora.

31. Foram violados, ou incorrectamente interpretados, entre outros, os arts. 16º, n.º 2, alíneas c) e g), n.ºs 4, 6, e 7, e art. 19.º, n.ºs 1 e 2, ambos da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 102/2017, de 23 de Agosto, arts. 1º, 2º e 3 da Portaria 228/2018, de 13 de Agosto, bem como o art. 224º, n.º 2, do Código Civil.

A Autora veio apresentar CONTRA-ALEGAÇÕES, onde concluiu da seguinte forma:

A) Fundamentou e decidiu bem o Tribunal a quo, quando referiu que estamos aqui, perante um contrato de prestação de serviços (conforme o disposto no artigo 1154º do Código Civil).

B) O contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

C) Conforme resultou da prova testemunhal e documental, arrolada pela Recorrida, Recorrente e Recorrida acordaram na prestação de serviços próprios de mediação imobiliária por parte da Recorrida, mediante o pagamento de determinada quantia em dinheiro, por parte da Recorrente.

D) O facto de no contrato em questão, não estar tipificado uma cláusula referente ao branqueamento de dados e à protecção de dados pessoais, não o torna nulo.

E) Aqui, não estamos perante os típicos “contratos de adesão” onde há uma produção em massa, uma distribuição em cadeia, ou contratos em série. Os denominados contratos de adesão, surgem derivado às necessidades de racionalização, planeamento, celeridade e eficácia, que levam a que as empresas, recorram a este modo de contratar, eliminando ou esvaziando consideravelmente as negociações prévias entre as partes.

F) Como ficou provado pelo Tribunal a quo, aqui, neste contrato celebrado entre recorrente e recorrida, houve negociação de parte a parte. Não houve uma mera adesão a cláusulas pré-formuladas por outrem.

G) Nos contratos adesão, estão presentes, em regra, todas as características dos contratos de adesão em sentido amplo:

               - A pré-disposição, a unilateralidade, a rigidez, a generalidade e a

indeterminação.

                              - No essencial, porém, o contrato adesão, será regido, no todo ou em parte, pelas cláusulas previamente formuladas, sem que o aderente possa alterá-las. Tais cláusulas não são, pois, o resultado das negociações.

H) Ficou assente que as partes acordaram na prestação de serviços próprios da mediação imobiliária por parte da recorrida (no sentido desta diligenciar e conseguir interessados na compra do imóvel compropriedade do réu, tendo desenvolvido acções de promoção e recolha de informações sobre o negócio pretendido e características do dito imóvel), mediante o pagamento de determinada quantia.

I) Deverá ser este contrato de prestação de serviços, celebrado entre as partes (recorrente e recorrida) considerado válido e eficaz entre as partes.

J) Da análise da prova documental e testemunhal junta pela recorrida, decidiu bem o Tribunal a quo, quando decidiu que, a falta de menção no contrato ao branqueamento de capitais e à protecção de dados pessoais (cláusulas 9.ª e 14.ª do anexo à Portaria n.º 228/2018, de 13 de Agosto conjugadas com o artigo 10.º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto), não acarreta a sua nulidade, pois entende que o contrato celebrado entre recorrente e recorrida tinha sido objecto de negociação, isto é, não sendo um contrato de adesão verbi gratia, com recurso a cláusulas contratuais gerais, não é tal preceituado aplicável inexistindo assim qualquer causa de nulidade do contrato.

K) Nunca foi recepcionado pela recorrida, qualquer carta ou qualquer aviso de carta registada com aviso de recepção para ser levantado, respeitante à denúncia do contrato de mediação imobiliária.

L) Pelo que ter-se-á de concluir que o contrato de mediação imobiliária se renovou automaticamente, estando em vigor no momento em que o Recorrente celebrou o contrato de compra e venda.

M) Assim, estando em vigor o contrato de mediação imobiliária, em regime de exclusividade, no momento da alienação do imóvel por parte do Recorrente, estava ele obrigado a pagar a remuneração contratada à Recorrida, neste caso, no montante de 8.500,00€, acrescidos do IVA aplicável.

N) A compradora tomou conhecimento da venda do imóvel através da publicidade realizada pela Recorrida.

O) Factos esse que reforça o direito à remuneração da Recorrida.

P) A douta sentença recorrida julgou todos estes factos alegados pela Recorrida como provados, julgando procedente a acção.

Q) O Tribunal a quo apreciou correctamente a prova produzida.

R) O Tribunal a quo actuou bem (aliás, é seu dever), pois sustentou-se no art.º 5º, nº 3 do CPC.

S) De modo algum este contrato padece de nulidade, devendo manter-se inalterada a sentença recorrida!

 

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, há que verificar da existência de duas invocadas nulidades e das consequências daí decorrentes:

            I – eventual nulidade do contrato celebrado entre Autora e Réu, por violação do regime das cláusulas contratuais gerais;

            II – eventual ocorrência da denúncia do contrato.

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

Fundamentação de Facto

Releva para a presente decisão a seguinte factualidade:

A) A autora dedica-se à mediação imobiliária, consistente na actividade de, em nome dos seus clientes, promover imóveis com vista à sua venda, permuta, trespasse, arrendamento, bem como na procura de imóveis para esses mesmos fins.

B) No exercício dessa actividade, a autora foi contactada pelo réu no sentido de tratar do processo de venda da casa do último.

C) Em 13/10/2019, as partes celebraram um acordo denominado “contrato de mediação imobiliária”, nos termos do qual:

                             - o réu autorizou a autora a promover a venda de uma moradia T3 sita …;

                             - a autora obrigou-se a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra pelo valor de € 170.000, desenvolvendo para o efeito acções de promoção e recolha de informações sobre os negócios pretendidos e características do imóvel;

                              - o réu contratou a autora em regime de exclusividade;

                             - a remuneração só seria devida se a autora conseguisse interessado que concretizasse o negócio visado;

                             - o réu obrigou-se a pagar à autora a título de remuneração a percentagem de 5% calculada sobre o preço pelo qual o negócio fosse efectivamente concretizado, ou o montante de € 8.500,00, acrescidos de IVA;

                             - tinha a validade de seis meses contados a partir da sua celebração, renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, caso não fosse denunciado por qualquer das partes através de carta registada com aviso de recepção ou outro meio equivalente, com a antecedência mínima de dez dias em relação ao seu termo;

                             - nada é disposto sobre branqueamento de capitais.

D) O preço do imóvel, a duração do contrato e o carácter de exclusividade foram definidos pelo réu.

E) A autora diligenciou pela emissão de certificado energético relativo ao imóvel referenciado em C).

F) A autora publicitou o imóvel referenciado em C).

G) A autora realizou visitas ao imóvel referenciado em C).

H) Por conta do serviço prestado, a autora emitiu a factura A2020/12 no valor de € 8.997,50, datada de 03/08/2020 e vencida na mesma data.

I) O réu recebeu a factura referenciada em H).

J) Apesar de interpelado, réu não pagou a factura referenciada em H).

K) O imóvel referenciado em C) foi vendido em 05/06/2020 com intervenção de outra mediadora imobiliária.

L) O réu deixou de permitir visitas ao imóvel por parte da autora a partir de Fevereiro de 2020.

M) O réu é jardineiro na Câmara Municipal d….

N) Tem o 9.º ano de escolaridade.

O) O réu e a sua ex-cônjuge C… eram comproprietários do imóvel referenciado em C).

P) A sua ex-cônjuge não assinou o “contrato de mediação imobiliária” com a Autora.

Q) O réu remeteu uma carta de denúncia do contrato datada de 19/02/2020, para o estabelecimento comercial da autora, à Rua ….

R) A carta referenciada em Q) foi devolvida ao réu.

 

O Tribunal considerou não Provados os seguintes factos

1) Poucos dias após a remessa a denunciar o contrato, o réu foi por diversas vezes contactado por telemóvel pelos representantes da autora S e R, com as seguintes ameaças: “vais-te dar mal”, “vais pagar o que deves”, “vou-te levar para Tribunal”, no sentido de o intimidar e pressionar para não cancelar o contrato.

2) O réu ficou convencido que tomaram conhecimento da sua denúncia e manteve a decisão de terminar o contrato.

3) O envelope da carta de denúncia estava aberto.

 

 

Apreciação da Matéria de Facto

A matéria de facto apurada não foi colocada em causa.

 

Fundamentação de Direito

O Tribunal a quo decidiu pela procedência da acção, orientado pelo seguinte processo de raciocínio:

               I – Está em causa um contrato de prestação de serviços - artigo 1154.º do Código Civil - mais precisamente de um contrato de mediação imobiliária, de tipicidade social inegável e especialmente regulado na Lei n.º 15/2013, de 08 de Fevereiro.

               II – A prestação de serviços, em geral, é um contrato sinalagmático, porquanto implica para as partes obrigações recíprocas e correlativas entre si e consensual na medida em que produz efeitos com o mero consenso das partes, conforme o princípio da liberdade de forma plasmado no artigo 219.º do Código Civil.

               III - As partes acordaram na prestação de serviços próprios da mediação imobiliária por parte da autora (diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra do imóvel compropriedade do réu, desenvolvendo para o efeito acções de promoção e recolha de informações sobre o negócio pretendido e características do dito imóvel), mediante o pagamento de determinada quantia em dinheiro por parte do réu (remuneração correspondente a percentagem de 5% calculada sobre o preço pelo qual o negócio fosse efectivamente concretizado, ou o montante de € 8.500, acrescidos de IVA, dúvidas não restam de que tal acordo consubstancia um contrato de prestação de serviços, mais exactamente um contrato de mediação imobiliária.

               IV - A falta de menção no contrato ao branqueamento de capitais e à protecção de dados pessoais (cláusulas 9.ª e 14.ª do anexo à Portaria n.º 228/2018, de 13 de Agosto, conjugadas com o artigo 10.º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto) não afecta a validade do contrato, uma vez que este foi objecto de negociação, não integrando regime das cláusulas contratuais gerais.

               V - A circunstância de a ex-cônjuge do réu, comproprietária do imóvel, não ter sido parte no contrato de mediação imobiliária também não fere a sua validade, desde logo porque isso era do conhecimento da autora.

               VI - A autora obrigou-se a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra do imóvel sub judice pelo valor de € 170.000,00, desenvolvendo para o efeito acções de promoção e recolha de informações sobre o negócio pretendido e características do imóvel e o réu obrigou-se a pagar à autora a título de remuneração a percentagem de 5% calculada sobre o preço pelo qual o negócio fosse concretizado, ou o montante de € 8.500+IVA.

               VII - A autora diligenciou pela emissão de certificado energético relativo ao imóvel, publicitou o imóvel e realizou visitas ao mesmo, visando a sua venda, pelo que é pelo réu àquela devido o pagamento da remuneração correspectiva.

               VIII - O expendido não é afastado pelo facto de o negócio se ter efectivado com intervenção de outra mediadora imobiliária, pois a autora cumpriu a sua obrigação consistente em levar a cabo actos de promoção do imóvel com vista à sua alienação (obrigação de meios), no âmbito de um contrato de exclusividade, sendo certo que a compradora conheceu o imóvel através da autora.

               IX – O réu incumpriu a sua obrigação de não vender o imóvel, sem intervenção da autora, no decurso do prazo do contrato e ainda impediu que esta cumprisse a sua obrigação, na medida em que colocou entraves à sua actuação (impedindo visitas).

               X – Não tendo operado qualquer denúncia o contrato renovou-se e estava em vigor à data da venda do imóvel.

               XI – A remuneração devida é justamente a quantia peticionada, como decorre da factura.

               XII – O réu não procedeu ao pagamento da remuneração a que se obrigou, incumprindo a sua obrigação, nos termos do disposto no artigo 762.º do Código Civil, o que o torna responsável pelo prejuízo causado à autora.

               XIII – O réu não logrou ilidir a presunção de culpa que sob si impende por ter

incorrido em incumprimento, prevista no artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil.

               XIV - A mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que na obrigação pecuniária os juros se contam desde a constituição em mora, a qual in casu corresponde à data do vencimento da factura (03/08/2020) correspondente aos serviços prestados, visto ter a obrigação prazo certo (artigos 804.º, 806.º, n.º 1 e 805.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Civil).

 

Iniciando a apreciação da matéria em discussão nestes autos, importa começar por verificar se o contrato celebrado entre Autora e Réu padece de alguma nulidade.

Esse é o entendimento do Réu, esse não foi o entendimento do Tribunal a quo.

 

O Réu pretende que no contrato estejam inseridas cláusulas contratuais gerais, consequentemente abrangidas pelo regime jurídico do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.° 220/95, de 31 de Agosto e n.º 249/99, de 7 de Julho).

Estando em causa um contrato de mediação imobiliária, está sujeito à Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, no qual se estabelece o regime jurídico do acesso e exercício da actividade de mediação imobiliária (que veio a ser alterado pelo Decreto-Lei n.º 102/2017, de 23 de Agosto), relevando ainda a Portaria n.º 228/2018, de 13 de Agosto, que aprovou o modelo de contrato de mediação imobiliária com cláusulas contratuais gerais.

Para o Réu, o facto de se ter provado que as cláusulas relativas ao preço de venda do imóvel, prazo de duração do contrato e celebração em regime de exclusividade terem sido objecto de negociação, isso não basta para afastar a qualificação do contrato como sendo um contrato de adesão ou com cláusulas contratuais gerais sujeitas ao seu regime jurídico.

Mas sem razão.

O Tribunal a quo expressamente sobre esta matéria refere com acerto que a “factualidade provada revela que houve negociação entre as partes, não integrando o concreto contrato cláusulas contratuais gerais, donde, não é exigível que dele constem cláusulas respeitantes ao branqueamento de capitais e protecção de dados, sem prejuízo, o contrato contempla a protecção de dados”.

Repare-se que as matérias essenciais foram negociadas como decorre dos Factos C e D e esta circunstância, desde logo, faz retirar do âmbito do regime das cláusulas contratuais gerais o contrato dos autos.

Aliás, mesmo que assim não fosse e se seguisse a posição assumida pelo Réu, sempre teríamos de concluir da mesma forma que na Sentença em apreço, nos termos do artigo 1.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, pois a Autora logrou comprovar que, no essencial, o contrato resultou de uma negociação prévia entre as partes e que não estamos, como simplistamente se pretende, perante um texto pré-formulado pela Autora de uso normalizado e generalizado, com ausência de negociação entre as partes (tornando também irrelevante o que vinha expresso no requerimento de injunção): é isto que resulta, para citar um exemplo, do entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano, no Acórdão de 29/04/2021 (Processo n.º 5722/18.7T8LSB.L1.S1).

Por esta via e pelo que provado resultou, nada há, portanto, a obstar à validade do contrato.

Todavia, há mais circunstâncias que relevam para a consideração dessa validade.

A Autora-Recorrida raciocina numa base errada, a de que não estando o contrato inserido no regime das cláusulas contratuais gerais, isso lhe permitiria “fugir” das exigências feitas pelo artigo 16.º, n.º 2[2], da Lei n.º 15/93, de 08 de Fevereiro.

E não é assim.

A opção do legislador foi por exigir que todos os contratos de mediação imobiliária fossem reduzidos a escrito (n.º 1 do artigo 16.º) e contivessem uma série e elementos (n.º 2), os quais, faltando, originariam a sua nulidade (n.º 5[3]).

De facto, nem sequer faria sentido que, estando em causa a protecção dos consumidores e o evitar de abusos contratuais numa área tão sensível como a da mediação imobiliária, se não estivessem em causa cláusulas contratuais gerais, as partes pudessem regular apenas o que quisessem e se o quisessem: os contraentes podem efectivamente regular como entenderem a sua relação contratual, mas têm de o fazer relativamente os elementos assinalados pelo n.º 2 do artigo 16.º.

Ora, em concreto, o contrato dos autos não indica nem a taxa de IVA aplicável (referência exigida na alínea c) do n.º 2), nem especifica minimamente os efeitos que decorrem do regime de exclusividade para o cliente (referência exigida na alínea g) do n.º 2), nomeadamente, quanto a esta última circunstância, como assinala a Recorrente, “o de maior relevância e repercussão na sua esfera económica, que decorre precisamente do disposto no art. 19º, n.º 2, da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, ou seja, o facto de ser igualmente devida à empresa a remuneração acordada nos casos em que o negócio visado no contrato de mediação tenha sido celebrado em regime de exclusividade e não se concretize por causa imputável ao cliente proprietário ou arrendatário”.

Nestes termos, não restam dúvidas sobre a nulidade do contrato celebrado, estando a nulidade invocada pelo contraente da mediadora.

Mas isso não é, de per se, suficiente para considerar a acção improcedente.

De facto, e como já em 2000 assinalavam Miguel Côrte-Real-Maria Mendes da Cunha, “no caso de haver a celebração de um contrato de mediação imobiliária sem sujeição à forma escrita e de cuja execução resultem vantagens para o cliente da sociedade de mediação (interessado), vantagens que decorram do integral cumprimento, por esta do contrato celebrado, apesar da sua nulidade, nesta específica hipótese é certo que, através do próprio instituto do enriquecimento sem causa, sempre a sociedade prestadora de tais serviços deverá ser ressarcida pela sua prestação. Milita decisivamente neste sentido o disposto no art. 289º do CC”[4].

E o mesmo se passa “na eventualidade de não se inserirem no contrato os mencionados elementos”[5], em que a nulidade será também invocável “apenas pelo cliente da entidade mediadora, mas sem prejuízo, ainda agora, de esta poder recorrer às regras do enriquecimento sem causa se, apesar da nulidade, tiver havido prestação efectiva de serviço e benefício, efectivo também, para a outra parte” [6].

 

Fernando Baptista de Oliveira, sobre esta matéria, refere que “se uns entendem que a compensação (ut artº 289º CC) deve corresponder ao valor dos serviços efectivamente prestados pelo mediador, outros assim não pensam, sustentando que tal compensação deve equivaler ao valor da remuneração acordada. Parece-nos que esta última posição é a mais correcta: afinal, não sendo possível restituir a prestação de facto positiva (“... tudo o que tiver sido prestado”), o critério para encontrar o valor a restituir deverá ser o da retribuição/comissão que foi acordada pelas partes contratantes, pois parece ser a única quantia que, de forma objectiva, se poderá reconduzir ao conceito de “valor correspondente” (cit. artº 289º/1). Anote-se, porém, que se a actividade desenvolvida pela mediadora não for de molde a justificar o recebimento da remuneração, a declaração da nulidade do contrato não muda as coisas: não lhe vai propiciar um recebimento a que não teria direito caso o contrato fosse válido!

Sem embargo do aqui exposto a respeito da nulidade do contrato de mediação imobiliária, é claro que se a nulidade não for invocada (por quem o pode ser – o comitente), o contrato mantém-se válido (mesmo que ferido daquele vício formal)”[7].

 

Ora, importa sublinhar que a mediadora (Autora) só teria direito a receber a sua remuneração - como decorre da Cláusula 5.ª do Contrato - se conseguisse interessado que concretizasse o negócio visado, nos termos e com as excepções previstas no artigo 19.º da Lei n.º 15/2013[8].

Como refere Higina Castelo a “remuneração da mediadora, porém, não é devida apenas pelo exercício da atividade de mediação, pelas diligências no sentido de encontrar interessado no negócio visado, nem sequer pelo bom sucesso dessa atividade (obtenção desse interessado).

Conforme determina o artigo 19, n.º 1, do RJAMI, a remuneração da empresa é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação (ou com a celebração do contrato-promessa, se assim tiver sido estipulado no contrato de mediação imobiliária).

É sobretudo nisto que reside o cariz inconfundível do contrato de mediação: o direito à remuneração depende de uma circunstância futura, incerta e externa à prestação da mediadora, ainda que com esta relacionada.

A conclusão do contrato visado não marca apenas o momento em que a remuneração é devida, sendo, mais do que isso, uma circunstância sem a qual não nasce para a mediadora o direito à remuneração.

Não sendo celebrado o contrato visado (ou o contrato-promessa quando a remuneração nesse momento esteja prevista no contrato de mediação), a mediadora não tem direito a ser remunerada.

Isto torna-se claro com a leitura do n.º 2 do art. 19, que introduz uma exceção nesta regra, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos: ter sido convencionada a exclusividade da mediadora; tratar-se de contrato de mediação celebrado com o proprietário ou o arrendatário trespassante do bem imóvel; e não se concretizar o negócio visado por causa imputável ao cliente (…). Fora deste circunstancialismo, o direito à remuneração apenas nasce com a conclusão e perfeição do contrato visado (ou do liminar, quando assim acordado)”[9].

 

Sucede que, tendo o contrato sido celebrado a 13/09/2019, no regime de exclusividade, por um período de seis meses (Cláusula 8.ª)[10], o imóvel em causa foi vendido em 05/06/2020 com intervenção de outra mediadora imobiliária (e sem que se mostre provado que o comprador por si tivesse sido “angariado”).

Neste contexto, se se consegue aceitar que no período de duração do contrato (seis meses) e em consequência das diligências da mediadora a venda do imóvel pudesse originar a sua remuneração pelo valor previsto (mesmo considerando a nulidade do contrato), já uma venda ocorrida posteriormente não pode ter esse resultado:

                                                           - quer porque isso corresponderia a prorrogar a validade de um contrato nulo;

                                                           - quer porque, a 19 de Fevereiro, o Réu denunciou o contrato, nos termos previstos na sua Cláusula 8.ª, através de uma carta registada com aviso de recepção.

No que a esta última questão se refere, o Tribunal a quo, sem expressamente discorrer sobre a matéria, desconsidera a carta e não faz relevar a denúncia.

Sem razão, pois o contraente – ora Réu – fez tudo o que lhe era exigido para dar corpo à pretendida denúncia, sendo que, a Autora não recebeu a carta e ignorou o aviso para a ir levantar, originando a sua devolução[11].

Ou seja, a 12 de Abril de 2020, o contrato – independentemente da sua nulidade – estava validamente denunciado com o envio da carta na forma e prazo estipulados, ao que acrescia a comportamento da destinatária, tudo na consideração do preceituado pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 224.º do Código Civil[12]: a Autora não recebeu a carta e não a foi levantar e, portanto, só de si se pode queixar[13] (não sendo, em face disto, de exigir qualquer outro comportamento a quem enviou a carta de acordo com o clausulado).

 

Neste contexto, a venda do imóvel vem a ocorrer num momento em que o contrato já não tinha, sob qualquer ponto de vista, susceptibilidade de originar consequências jurídicas para qualquer dos intervenientes no contrato de mediação imobiliária em causa nestes autos.

 

Restaria verificar se a Autora (que, até à denúncia, acabou por fazer o trabalho que lhe competia, ainda que sem sucesso[14] e que nada teve que ver com a concretizada venda) poderia ter direito ao pagamento de despesas que tivesse realizado, mas, também aqui, nunca seria possível atribuir-se-lhe algum montante: o “regime em vigor, tal como todos os que o precederam, não dispõe sobre o pagamento das despesas suportadas pelo exercício da atividade de mediação.

A questão do ressarcimento das despesas da mediadora é clássica, sendo tradicional o entendimento de que correm por conta da mediadora as despesas feitas na busca de interessado.

O RJAMI acolheu esta doutrina na medida em que determina que tem de constar obrigatoriamente do contrato de mediação a identificação discriminada de eventuais serviços acessórios a prestar pela empresa mediadora, sob pena de nulidade (art. 16, n.ºs 2, f), e 733).

Os serviços acessórios, nomeadamente todos os que importem despesas para o cliente, só correrão por conta deste se assim tiver sido previsto no contrato de mediação, e com discriminação desses serviços. De contrário, não estando previstos, as despesas deles decorrentes correrão por conta e risco da mediadora”[15]. 

Uma vez que do contrato nada consta, quanto a esta matéria, essas despesas correram por conta do risco inerente à actividade comercial exercida pela Autora: como se assinala de forma cristalina no Acórdão do STJ de 03/04/2008 (Processo n.º 4498/07-Santos Bernardino[16]) esta “é uma fatalidade com que as empresas de mediação, que são comerciantes, que exercem uma actividade comercial numa economia de mercado, têm de viver, e é nesse pressuposto que a desempenham, sendo que as percentagens cobradas sobre o valor das vendas que ajudam a concretizar têm já em conta o risco normal, a álea que é inerente a essa actividade, acautelando as situações em que o contrato de mediação não proporciona a correspectiva remuneração e apenas redunda na realização de despesas estéreis e inúteis” .

 

A Autora actuou mal, quis ignorar a denúncia e veio, numa posição que raia a litigância de má fé, pretender que um contrato cuja nulidade lhe é imputável (por ser o contraente mais informado e que exerce a actividade em causa) e que se mostrava denunciado, continuasse a ter efeitos numa altura em que estes já tinham cessado, aproveitando-se do trabalho de outros[17].

 

O Réu não tinha de pagar a Factura que lhe foi enviada, a acção devia ter sido julgada improcedente e, em face do recurso interposto, dando razão ao Recorrente, será julgada improcedente.

n

Nas palavras de Eric Voegelin as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"[18].

Autora e Réu escolheram o seu caminho de actuação.

Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", não dar razão à Autora, considerando improcedentes os pedidos formulados (tendo, na linha de Paul Ricoeur, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes ; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"[19]).

 

n n

 

 

 

 

 

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a Sentença recorrida, absolvendo o Réu dos pedidos formulados.

 

Custas a cargo da Autora-Recorrida.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

***

Lisboa, 22 de Março de 2022

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Pires de Sousa

 

 

 

José Capacete



[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2]2 - Do contrato constam, obrigatoriamente, os seguintes elementos:

a) A identificação das características do bem imóvel que constitui objeto material do contrato, com especificação de todos os ónus e encargos que sobre ele recaiam;

b) A identificação do negócio visado pelo exercício de mediação;

c) As condições de remuneração da empresa, em termos fixos ou percentuais, bem como a forma de pagamento, com indicação da taxa de IVA aplicável;

d) A identificação do seguro de responsabilidade civil ou da garantia financeira ou instrumento equivalente previsto no artigo 7.º, com indicação da apólice e entidade seguradora ou, quando aplicável, do capital garantido;

e) A identificação do angariador imobiliário que, eventualmente, tenha colaborado na preparação do contrato;

f) A identificação discriminada de eventuais serviços acessórios a prestar pela empresa;

g) A referência ao regime de exclusividade, quando acordado, com especificação dos efeitos que do mesmo decorrem, quer para a empresa quer para o cliente”.

[3] “O incumprimento do disposto nos n.ºs 1, 2 e 4 do presente artigo determina a nulidade do contrato, não podendo esta, contudo, ser invocada pela empresa de mediação”.

[4] Miguel Côrte-Real-Maria Mendes da Cunha, A Actividade de Mediação Imobiliária-Anotações e Comentários ao DL n.º 77/99, de 16.3 e à Legislação Complementar, Vida Económica, 2000, página 84.

[5] Ob. loc. cit..

[6] Ob. loc. cit..

[7] Fernando Baptista de Oliveira, Direito dos Contratos - O Contrato de Mediação Imobiliária na Prática Judicial: uma abordagem jurisprudencial, [em linha], Colecção Formação Contínua, e-book CEJ, 2016, páginas 31-33, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=WMq8QjyVVKE%3d&portalid=30 [consultado a 16/03/2022].

[8]“1 - A remuneração da empresa é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação ou, se tiver sido celebrado contrato-promessa e no contrato de mediação imobiliária estiver prevista uma remuneração à empresa nessa fase, é a mesma devida logo que tal celebração ocorra.

2 - É igualmente devida à empresa a remuneração acordada nos casos em que o negócio visado no contrato de mediação tenha sido celebrado em regime de exclusividade e não se concretize por causa imputável ao cliente proprietário ou arrendatário trespassante do bem imóvel.

3 - Quando o cliente for um potencial comprador ou arrendatário, a empresa, desde que tal resulte expressamente do respetivo contrato de mediação imobiliária, pode cobrar quantias a título de adiantamento por conta da remuneração acordada, devendo as mesmas ser devolvidas ao cliente caso o negócio não se concretize.

4 - O direito da empresa à remuneração cujo pagamento caiba ao cliente proprietário de imóvel objeto de contrato de mediação não é afastado pelo exercício de direito legal de preferência sobre o dito imóvel.

5 - O disposto nos números anteriores aplica-se apenas a contratos sujeitos à lei portuguesa”.

[9] Higina Castelo, Contratos de mediação imobiliária: simples e com exclusividade, [em linha], Revista de Direito Comercial, 2020, página 1415, disponível em https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5f022e6c04cf460c9abc7f88/1593978480039/2020-26+-+1401-1462.pdf [consultado a 15/03/2022].

[10] “(…) renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, caso não fosse denunciado por qualquer das partes através de carta registada com aviso de recepção ou outro meio equivalente, com a antecedência mínima de dez dias em relação ao seu termo”.

[11] É o que decorre dos Factos Q e R, conjugados com a carta com aviso de recepção em causa e a informação dos CTT: a 20/02/2020, a carta não foi entregue por ausência do destinatário; a 21/02/2020 fica disponível para levantamento no Posto dos CTT …: a 04/03 é devolvida ao remetente por não ter sido reclamada.

[12]   “Artigo 224.º (Eficácia da declaração negocial)

1. A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada.

2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.

3. A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é ineficaz” (carregado e sublinhado nossos).

[13] “Não o fazendo, como não o fez, tem de considerar-se, em conformidade com o disposto no artigo 224.º, n.º 2, do CC, que só por sua culpa não recebeu a carta em questão, em função do que se tem de considerar como eficaz a declaração que lhe foi dirigida por parte do requerente com vista a operar a” denúncia do contrato (RC 16/09/2014, Processo n.º 53/14.4TBACN.C1-Arlindo Oliveira). Na mesma linha, vd. RG 11/02/2021, Processo n.º 4161/19.7T8VCT.G1-Raquel Baptista Tavares).

[14] Factos E), F) e G) - a Autora publicitou e realizou visitas ao imóvel e diligenciou pela emissão do seu certificado energético.

[15] Higina Castelo, Contratos…, cit., páginas 1426-1427.

[16] Citado no já referido Acórdão do STJ de 29/04/2021 (Processo n.º 5722/18.7T8LSB.L1.S1-Cura Mariano).

[17] Uma vez que não resulta dos factos apurados que o/a comprador tivesse sido por si “angariado”.

[18] Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.

[19] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169 ; cfr., também, com interesse, François Ost, A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19-24.

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