quarta-feira, 11 de maio de 2022

Ainda há excepções de ilegitimidade procedentes quando, sem se ligar ao tipo de contrato (de transporte de mercadorias por mar), o que se configura não corresponde ao que se pretende d Ré que se escolheu...

 Processo n.º 73753/20.8YIPRT.L1

Tribunal a quo

Lisboa - Tribunal Marítimo - Juízo Marítimo - Juiz 1

Recorrente

C (Autora)

Recorrida

 I., Lda. (Ré)

L, S.A. (Interveniente)

 

*

 

            Sumário:

I – O contrato de transporte de mercadorias por mar é regulado pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga e pelas disposições do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.

II – Neste contrato, sujeito a forma escrita e titulado por um documento intitulado conhecimento de embarque (BL-bill of lading), uma das partes obriga-se em relação à outra a transportar determinada mercadoria de um ponto para outro, mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete.

III -  O referido documento deve ser entregar pelo transportador ao carregador (artigo 8.º, cit. DL).

IV - O contrato de expedição ou de trânsito integra vários elementos de outros tipos contratuais, designadamente de organização, mediação, agência e prestação de serviço. Em sentido estrito, já se pode definir este contrato de expedição como um mandato pelo qual o transitário se obriga a celebrar um ou mais contratos de transporte por conta do expedidor.

V - Se a Autora intenta uma acção contra a transitária, relativamente a um contrato que tem como shipper (carregadora/expedidora), uma empresa, como consignatária, outra e como transportadora ela própria, a transitária é parte ilegítima em face da relação material controvertida configurada.

VI - Com a legitimidade enquanto pressuposto processual, pretende-se que estejam no processo as partes exactas, do lado activo e o lado passivo, os sujeitos que têm uma relação com o objecto processual definido e com ele possam ser beneficiados e prejudicados.

VII – É o alegado na Petição Inicial que determina quer o objecto do processo, quer os pressupostos processuais.

VIII - É face à forma e ao conteúdo da articulação factual com que um/a Autor/a, na Petição Inicial e de forma unilateral, delimita a relação material que tem como controvertida, que a acção fica configurada, sendo a partir desta base, que a legitimidade, enquanto pressuposto processual, é aferida.

IX – Não prevendo o CPC qualquer mecanismo de sanação para a ilegitimidade singular, tal implica a sua insanabilidade e insupribilidade, bem como a impossibilidade de convite a um qualquer aperfeiçoamento.

 

 

Relatório

C intentou contra I, Lda. procedimento de injunção (entretanto transmutado em acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum) pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia global de € 16.573,56, alegando que se dedica à actividade de transporte marítimo e que foi contratada pela Ré na qualidade de transitária, para realizar o transporte de mercadoria, por via marítima, ao cliente final desta, bem como todos os serviços e despesas que lhe estivessem associados. Mais adiantou que o serviço solicitado foi prestado, mas a Ré não liquidou as despesas de estacionamento no cais e paralisação do contentor após o transporte da mercadoria em causa, sendo responsável por tal pagamento, pois a Autora jamais teve qualquer vínculo contratual ou trocou comunicações com o cliente daquela transitária.

 

Citada a Ré veio esta apresentar Oposição, pedindo a improcedência da acção e defendendo que ajustou o contrato ajuizado, na execução do mandato que lhe foi conferido pela sua cliente, facto que sempre comunicou à Autora e que esta assimilou, tanto mais que o documento que titula o transporte dos autos é totalmente omisso relativamente a si.

Mais acrescentou que, contra as indicações que a Ré lhe deu, a Autora entregou a carga deslocada à consignatária sem cobrar as despesas que agora reclama.

A Autora, em sede de pronúncia sobre o chamamento da seguradora da Ré (por esta provocado na Oposição), retorquiu que o contrato em apreço foi celebrado entre as partes principais destes autos, tanto mais que foi a Ré quem pagou o frete devido. Por isso, e tendo em conta o disposto nos arts. 13.º e 15.º do DL n.º 255/99, de 07-07, a Ré é responsável pelo pagamento da quantia peticionada nos autos.

 

Realizada Audiência Prévia, nela foi proferida decisão que, a final, considerou parte ilegítima a Ré, absolvendo-a da instância, à luz da alegação factual e jurídica expendida no requerimento injuntivo e na resposta ao pedido de intervenção de terceiros, onde se não vislumbra em que medida é que um transitário que actuou em nome e por conta do expedidor possa ser responsabilizado pelo não cumprimento de um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias decorrente do não levantamento atempado da carga no porto de destino por banda de um sujeito (consignatário) que não foi parte no contrato de expedição, mas antes no sobredito contrato de transporte (pelo que é manifesto que a Ré não é um dos sujeitos da relação material controvertida, tal como ela configurada pela Autora, sendo, assim, parte ilegítima).

 

É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Requerida, a qual apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:

I – O objeto do presente recurso resume-se, exclusivamente, à questão de saber se a Recorrida é ou não parte legítima no presente processo;

II – A Recorrente intentou providência de injunção, entretanto transmutada em ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Recorrida no pagamento da quantia global de € 16.573,56 (dezasseis mil quinhentos e setenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos);

III – A Recorrente dedica-se à atividade de transporte marítimo e foi contratada pela Recorrida, na qualidade de transitária, para realizar o transporte de mercadorias, por via marítima, ao cliente final desta, bem como todos os serviços e despesas que lhe estivessem associados;

IV – O serviço contratado foi, de facto, prestado, mas a Recorrida não liquidou as despesas de estacionamento no cais e paralisação do contentor após o transporte da mercadoria em causa, apesar de ter liquidado o valor do frete;

V – Sendo, portanto, responsável por tal pagamento, pois a Recorrente nunca teve qualquer vínculo contratual ou trocou comunicações com o cliente daquela transitária;

VI – A Recorrente não teve oportunidade de juntar prova aos autos, como as faturas e os pagamentos das mesmas, bem como a troca de correspondência entre as partes, o que seria feito na audiência final de acordo com o regime deste tipo de ações declarativas de condenação;

VII – Ora, neste sentido e com o devido respeito, a decisão quanto à exceção alegada foi precoce;

Vejamos,

VIII – Para a decisão, o Tribunal a quo pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa, o que não veio a acontecer dado o momento em que foi decidida a exceção, isto é, na audiência prévia;

IX – Quer isto dizer que, além dos factos essenciais que às partes, no uso do dispositivo, cumpre alegar, poderá – oficiosamente – conferir-se relevância a factos instrumentais, quando resultem da instrução e discussão da prova, e interessem indiretamente à solução do pleito, por servirem para, através deles, demonstrar a ocorrência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da exceção;

X – Caso tivesse sido decidida a final, teria sido ainda possível ter em conta os factos essenciais à improcedência da exceção deduzida, desde que fossem complemento ou concretização de outros já alegados e resultasse da discussão da causa, nos termos do disposto no art. 5.º do CPC;

Continuando,

XI – A Recorrida alegou que ajustou o contrato ajuizado na execução do mandato que lhe foi conferido pela sua cliente, facto que, alegadamente, sempre comunicou à Recorrente e que esta teria assimilado;

XII – O contrato de expedição é abarcado pela específica atividade das empresas transitárias e é definido como o contrato mediante o qual uma parte (o transitário, aqui Recorrida) se obriga perante a outra (o expedidor, seu cliente) à prestação de certos serviços – que tanto podem ser atos materiais ou jurídicos – ligados a um contrato de transporte, e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e em representação do cliente.

XIII – No âmbito desse contrato de expedição, a aqui Recorrida transitária subcontratou, por conta do cliente, o transporte marítimo da mercadoria com a Recorrente transportadora;

XIV – O Tribunal julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual invocada pela Recorrida, tendo, consequentemente, absolvido aquela da instância;

XV – Não pode a aqui Recorrente aceitar o entendimento do Tribunal no caso em apreço;

Nestes termos,

XVI – É indiscutível que a Recorrida se dedica à atividade transitária e que foi nessa qualidade que contactou a Recorrente para com ela celebrar o contrato de transporte em causa,

XVII – A Recorrida, agindo na qualidade de transitária, celebrou com a recorrente o respetivo contrato de transporte, executando diversos trâmites e formalidades, nomeadamente a emissão do documento de transporte, apesar de ter pedido expressamente para não constar no «BL»;

XVIII – Pelo que só por manifesta má fé pode vir alegar a sua ilegitimidade no negócio em causa;

XIX – É patente que foi com a transitária que a Recorrente celebrou o contrato de transporte, porquanto inclusive se reitera que foi a Recorrida que pagou o frete devido pelo cumprimento definitivo do contrato de transporte à Recorrente;

XX – É pacífico o entendimento, na doutrina e na jurisprudência, de que nada obsta a que as empresas transitárias celebrem e executem contratos de transporte, executando-os diretamente ou com recurso a terceiros;

XXI – É o que resulta do disposto no art. 367.º do Código Comercial e no art. 13.º n.ºs 1 e 2 do DL nº 255/99, de 7 de julho;

XXII – Com efeito, decorre expressamente deste último preceito que as empresas transitárias podem celebrar contratos com terceiros em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria, estabelecendo o art. 15.º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Responsabilidade das empresas transitárias”, que estas respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso (n.º 1).

XXIII – Segundo o Acórdão do Tribunal Relação de Lisboa de 03.03.2016: “Não obsta à qualificação como contrato de transporte o facto de a parte se dedicar a atividades próprias de um transitário, se foi para além do que é a atividade típica do transitário: obrigação de celebrar um contrato de transporte com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, assumindo também a obrigação de prestar ao expedidor serviços de natureza logística e operacional que assegurem a deslocação da mercadoria”.

XXIV – Sem prescindir, não se pode negar que estamos perante um contrato a favor de terceiro, nos termos dos arts. 443.º e ss. do Código Civil.

XXV – O objeto do contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida era o de que a primeira se comprometeria a transportar e entregar a mercadoria a um cliente da Recorrida – um terceiro – sendo que o cumprimento pontual do contrato dar-se-ia apenas no momento em que esse terceiro tomasse posse da predita mercadoria.

XXVI – Não sendo o terceiro uma parte do contrato, e não podendo a Requerente exigir a este o pagamento dos serviços em causa, o não reconhecimento da legitimidade da Recorrida na presente ação, onera a Recorrente com a obrigação do pagamento de uma despesa a que claramente não está, nem pode estar, obrigada.

XXVII – Resulta manifesto que a decisão proferida é merecedora de objetiva censura, sendo imperioso que seja revogada, julgando-se procedente o presente recurso, doutra forma não se fará rigorosa aplicação da lei e haverá fundado motivo para se afirmar não ter sido feita rigorosa.

 

A Ré-Recorrida apresentou Contra-Alegações, nas quais concluiu que:

 A - O único lapso da douta sentença recorrida, estando em causa uma ilegitimidade substancial ou substantiva, é que devia ter concluído pela absolvição do pedido e não da instância.

B – Não há qualquer dúvida, e a própria recorrente aceita, que a recorrida interveio no negócio como empresa transitária.

C - A própria recorrente reconhece, também, que a recorrida interveio em nome de terceiro, o seu cliente/expedidor.

D - É manifesto que a Ré não é um dos sujeitos da relação material controvertida, tal como ela configurada pela Autora, sendo, assim, parte ilegítima.

E - O contrato de transporte marítimo é formal, titulado por um conhecimento de embarque (no comércio marítimo denominado Bill of Lading – BL)

F - No caso concreto esse documento formal (BL) existe, foi junto como doc. nº 2 da contestação, foi emitido pela recorrente como transportadora que nele identificou as restantes partes contratantes: a “Q, S.A.” como carregadora/expedidora (“shipper”) e a “G” como consignatária.

G – Trata-se de documento particular cuja autoria está reconhecida porque, em devido tempo a recorrente não o impugnou, nem invocou a sua falsidade e “(…) faz prova plena quanto às declarações atribuídas do seu autor (…)” – Artº 376º nº 1 do Código Civil - não admitindo prova testemunhal em contrário – artº 383º nºs 1 e 2 do Código Civil.

H – Dela não consta a recorrida que, consequentemente, não é parte no contrato de transporte em questão nos autos.

I - Para defender o direito à indemnização reclamada, a recorrente invoca o estipulado no artº 15º do DL 255/99 de 07 de Julho, que estabelece a responsabilidade das empresas transitárias “(…) perante o seu cliente (…).”, qualidade que a recorrente não tem.

J - A recorrida não interveio no negócio como gestora de negócio da expedidora, nem nada foi alegado nesse sentido.

K – A recorrida não celebrou qualquer contrato com a consignatária da mercadoria, que, aliás, nem sequer conhece, pelo que, se esta não levantou a mercadoria que lhe era destinada, nenhuma responsabilidade pode àquela ser assacada.

L – E, também por esta razão, não existe qualquer contrato a favor de terceiro celebrado entre a recorrente e a recorrida.

TERMOS EM QUE, Deve ser proferido douto Acórdão que, recusando provimento ao recurso apresentado, confirme a decisão recorrida, como parece ser de JUSTIÇA

 

A Interveniente veio também apresentar Contra-Alegações, nas quais concluiu que o Recurso deve improceder, considerando que a Recorrente, em sede de alegações de recurso, omite o que já afirmou e se deu como assente, no sentido de saber que a Ré agiu sempre por conta do seu cliente e nunca em nome próprio, pelo que pretende agora “emendar a mão”, por forma a colocar em crise os fundamentos da exceção de ilegitimidade, os quais não logrou contraditar em sede própria para o efeito (não podendo o Tribunal de recurso colocar em crise tal valoração, pois nesta lide, apenas poderá ser alterada a matéria de facto quando a decisão incorra num erro ostensivo na apreciação da prova, ignorando ou afrontando diretamente as mais elementares regras da experiência comum).

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará apenas verificar se o Tribunal a quo decidiu de forma correcta que a Ré é parte ilegítima na presente acção, em face da forma como se mostra configurada a acção, na Petição Inicial.

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

Fundamentação de Facto

A factualidade a considerar é a que decorre do Relatório.

 

Fundamentação de Direito – Da Ilegitimidade da Ré

O Tribunal a quo absolveu a Ré da Instância, considerando-a parte ilegítima, com base no seguinte processo de raciocínio:

1 – o critério aferidor da legitimidade processual é o do interesse relevante (artigo 30.º do CPC), sendo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor»;

 2 – a verdadeira relação jurídica substantiva tal como ela efectivamente se constituiu ou formou não releva, como critério fixador da legitimidade;

3 - réu e o autor serão partes legítimas se forem sujeitos da relação material tal como a apresentou o demandante no seu articulado inicial;

4 – in casu, do pedido e causa de pedir vertidos no requerimento injuntivo, constata-se que a Autora estriba a demanda no facto de ter efectuado um contrato de transporte marítimo de mercadorias a pedido da Ré, em benefício do cliente final desta, mais destacando que esta (Ré) actuou na qualidade de transitária e que lhe cabe pagar as despesas de estacionamento no cais e paralisação do contentor, atento o disposto nos arts. 13.º e 15.º do DL n.º 255/99 (e o facto de a Autora jamais ter trocado qualquer comunicação com o cliente da Ré);

5 – é a própria Autora que salienta que a Ré se dedica à actividade transitária (DL n.º 255/99, de 07-07), actividade essa que consiste num labor técnico-burocrático que se traduz essencialmente na planificação, controlo, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de mercadorias (o que implica a prática de actos jurídicos ou materiais, os quais podem ocorrer antes, durante ou depois do transporte, daqui decorrendo que se desenvolve ao longo de um ciclo temporal alargado, que vai desde a preparação da deslocação da mercadoria até à entrega desta ao destinatário, integrando uma vasta gama de operações);

6 - para além de poderem praticar todos os actos necessários ou convenientes à execução da sua actividade, as empresas transitárias podem assumir em nome próprio ou em nome do cliente ou do destinatário dos bens, toda e qualquer forma legítima de defesa dos interesses correspondentes (art. 13.º, n.º 1, do DL n.º 255/99), sendo assim um intermediário comercial que actua por conta de outrem;

7 - as empresas transitárias podem ainda celebrar contratos com terceiros em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria, bem como receber em nome próprio ou por conta do seu cliente, as mercadorias que lhe são entregues pelo transportador e actuar como gestor de negócios (art. 13.º, n.º 2, do DL n.º 255/99);

8 - a legitimidade da intervenção do transitário perante terceiros, entidades públicas ou privadas, afere-se pelo título ou declaração que exiba (art. 13.º, n.º 3, do DL n.º 255/99);

 9 - quando intervenha como gestora de negócios, a empresa transitária será havida como dona dos bens ou mercadorias e responderá como tal perante terceiros (art. 13.º, n.º 4, do DL n.º 255/99);

10 - as empresas transitárias podem exercer o direito de retenção sobre mercadorias que lhes tenham sido confiadas em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos deles resultantes, salvo estipulação expressa em contrário (art. 14.º do DL n.º 255/99);

 11 - as empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso (art. 15.º, n.º 1, do DL n.º 255/99);

12 - em face deste regime legal, os serviços prestados pela Ré redundam em “plúrimas operações diversas” apresentando, por isso, uma natureza multiforme que convoca uma considerável complexidade jurídica e suscita alguma flutuação doutrinária e jurisprudencial quanto à definição do negócio jurídico que tipicamente está na sua génese (contrato de trânsito ou expedição);

13 - em sentido estrito, o contrato de expedição é um contrato de mandato – com ou sem representação – nos termos do qual o transitário se obriga a celebrar um ou mais contratos de transporte, em nome próprio ou do expedidor-mandante, mas sempre por conta deste (e este mandato pode abranger, para além deste núcleo, a prática dos actos acessórios indispensáveis à sua consecução - arts. 1159.º, n.º 2, do CC e 233.º, in fine, do CCom);

14 - se o transitário, além de agir por conta do expedidor, também actuar em nome deste com poderes delegados através do competente instrumento jurídico (procuração), estar-se-á perante um mandato representativo e a sua posição jurídica decorrerá das regras ordinárias do mandato com representação (arts. 231.º e ss. do CCom e 1157.º e ss., 1178.º, 1179.º e 258.º e ss. do CC), pelo que  o contrato de transporte celebrado com o transitário em nome do expedidor produzirá efeitos na esfera deste (caso aquele tenha actuado nos limites dos poderes que lhe foram conferidos);

15 - actuando o transitário por conta do expedidor, mas em nome próprio, há que recorrer à disciplina decorrente dos arts. 266.º e ss. do CCom (em especial, o art. 269.º do CCom) e 1180.º a 1184.º do CC (em particular, o art. 1183.º do CC). Mas mesmo quando há ausência de poderes de representação, ainda assim o mandatário é responsável perante o mandante se houver deficiência no cumprimento do mandato;

16 - o contrato de trânsito é também um contrato de prestação de serviços que poder abranger a prática quer de operações materiais (por exemplo, grupagem de mercadoria, coordenação e articulação de diferentes transportes, controlo da mercadoria, consolidação e desconsolidação da carga, embalagem, carregamento, descarregamento e estiva), quer de actos jurídicos (como seja a celebração de um contrato de depósito ou de seguro da mercadoria deslocada), ligados a um contrato de transporte;

17 - o contrato de expedição ou trânsito pode definir-se como sendo o contrato pelo qual uma parte (o transitário) se obriga perante a outra (o expedidor) a prestar-lhe certos serviços (que tanto podem ser actos materiais como jurídicos), referentes a um contrato de transporte, e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e representação do cliente;

18 - perante este enquadramento legal e a articulação factual feita pela Autora nos autos, constata-se que a Ré – no seu relacionamento com a Autora – actuou sempre em nome e por conta de outrem, na execução do mandato com representação (conforme, se infere do título de transporte junto com a oposição) que lhe foi conferido no âmbito de um contrato de expedição;

19 - a Ré contratou a Autora na execução do mandato – ou seja, por conta e em nome da expedidora – para celebrar o contrato de transporte marítimo alegadamente incumprido, bem sabendo a Demandante da qualidade em que intervinha a Demandada;

20 - a Autora não é beneficiária da tutela conferida pelo art. 15.º do DL n.º 255/99, já que a norma em apreço protege apenas o cliente do transitário, melhor dizendo, a contraparte deste num contrato de expedição ou trânsito;

21 - Acresce que a Autora não alegou qualquer facto demonstrativo da actuação da Ré a título de gestão de negócios e conducente à sua responsabilização (nos termos do art. 13.º do DL n.º 255/99), sustentando mesmo o contrário ao referir que a Ré agiu na execução das determinações que lhe foram dadas pelo seu cliente;

 22 - a situação dos autos consiste num transitário que actuou em nome e por conta do expedidor, pretendendo-se que possa ser responsabilizado pelo não cumprimento de um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias decorrente do não levantamento atempado da carga no porto de destino por banda de um sujeito (consignatário) que não foi parte no contrato de expedição, mas antes no sobredito contrato de transporte;

23 – daí ser manifesto que a Ré não é um dos sujeitos da relação material controvertida, tal como ela vem configurada pela Autora, sendo, assim, parte ilegítima.

 

Perante este raciocínio e consequente decisão, a Recorrente entende que o Tribunal não encarou de forma adequada o que dos autos resulta.

Vejamos se com razão.

O excurso feito pelo Tribunal a quo sobre a regulamentação do tipo de contratos que estão em equação no processo é de uma clareza cristalina.

Como o é a forma como a Autora configura a acção (inicialmente procedimento de injunção) e, posteriormente, deduz o incidente de intervenção da seguradora.

Se, no primeiro momento, as facilidades trazidas pelo processo de injunção com os riscos que comportam se a relação contratual não vier bem descrita, podiam “justificar” um menor cuidado na descrição dos factos, convém não esquecer – como o Tribunal a quo assinala com pertinência – que na resposta ao pedido de intervenção de terceiros, a Autora volta a destacar que a Ré fez a mediação entre o expedidor, destinatário e o transportador.

A versão apresentada pela Autora - e que, aliás, resulta comprovada pelo BL, aponta no sentido descrito desvendado pela decisão recorrida:  o contrato que deu origem ao litígio descrito, não foi celebrado com a Ré…

 

Mas o que não se mostra minimamente justificado é que a Autora “dispare para todos os lados” (cada um deles incompatível com o outro), como se tudo fosse uma e a mesma coisa (contrato em nome e por conta de terceiro, gestão de negócios, contrato a favor de terceiro…).

 

Vejamos e assentemos alguns pressupostos:

            I - os contratos de transporte de mercadorias por mar são regulados pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga[2] e, subsidiariamente, pelas disposições do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro;

            II - o contrato de transporte de mercadorias por mar[3] é

                                   II1- aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria de um ponto para outro diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete (assim estando definido pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro)[4];

                                   II2- um contrato sujeito a forma escrita, titulado por um escrito particular, denominado conhecimento de embarque ou conhecimento de carga (Bill of Lading ou, simplesmente, BL), documento este que o transportador deve entregar ao carregador (artigo 8.º, cit. DL);

                                   II3- o transportador actua, tanto por si, como através de outras pessoas, caso em que mantém a sua qualidade original e assume a qualidade de expedidor para com a empresa com quem depois ajustou o transporte (cfr., artigo 367.º do Código Comercial e 1.º do Decreto-Lei n.º 352/86)[5];

            III - por seu turno, o contrato de expedição ou de trânsito[6] “constitui uma figura mista, na medida em que integra vários elementos distintos, designadamente de organização, mediação, agência e prestação de serviço. Em sentido estrito, já se pode definir este contrato de expedição como um mandato pelo qual o transitário se obriga a celebrar um ou mais contratos de transporte por conta do expedidor”[7];

            IV - nas suas intervenções processuais[8], a Autora descreve a relação contratual nos exactos termos avançados pelo Tribunal a quo (ou seja, afirmando que a Ré, no seu relacionamento consigo, actuou sempre em nome e por conta de outrem[9], na execução do mandato com representação que lhe foi conferido no âmbito de um contrato de expedição[10]);

            V - no BL respeitante ao contrato de transporte marítimo em causa nos autos (emitido pela Autora/Recorrente enquanto transportadora), a Ré nele não consta, estando aí, sim, identificados[11]:

                        V1 - como shipper (carregadora/expedidora), a “Q, SA.”;

                       V2 - como consignatária, a “G”;

                       V3 - como transportadora, a ora Autora C;

            VI - a Autora assume saber e ter consciência da qualidade em que a Ré lhe surgia nesta relação contratual (em nome de terceiro, o seu cliente/expedidor).

 

Com isto assente, não há a mínima e razoável dúvida de que, tal como configurada foi a acção, não foi com a Ré que a Autora celebrou o contrato de transporte, mas sim que foi através da Ré que tal ocorreu.

A Autora defende nas suas Alegações que, em face do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 255/99[12], a Ré sempre seria responsável. Mas sem razão, pois lavra num claro equívoco, uma vez que essa norma apenas protege o/a cliente do transitário (a contraparte do transitário num contrato de expedição ou trânsito) - ou seja, a cliente da ora Ré - e não o transportador (Autora).

 

O outro argumento agora usado pela Autora passa por defender que a Ré celebrou consigo um contrato a favor de terceiro: com isso salvaria a sua legitimidade, só que a Autora - ao dizê-lo – contradiz a sua alegação inicial no sentido de a Ré ter celebrado um contrato em nome de terceiro

Não se trata de mera semântica, trata-se de respeitar o alegado e o Direito a ele inerente.

De facto, o que se trata nestes autos é de um contrato celebrado com uma empresa que nesta acção não foi demandada (sendo nela, por isso, um “terceiro”).

 

Aliás, diga-se, esta tese da Autora prima pela incoerência uma vez que não só alegou e articulou nos termos já referidos, como em momento algum afirmou que o terceiro destinatário da mercadoria (terceiro a favor de quem o contrato teria sido feito) era cliente da Recorrida (e esse terceiro – a “G” – não é parte do contrato).

 

Nesta base, a conclusão que o Tribunal a quo tira, no sentido de que não se “vislumbra em que medida é que um transitário que actuou em nome e por conta do expedidor pode ser responsabilizado pelo não cumprimento de um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias decorrente do não levantamento atempado da carga no porto de destino por banda de um sujeito (consignatário) que não foi parte no contrato de expedição, mas antes no sobredito contrato de transporte” é uma conclusão acertada.

**

Colocada está assim, a questão da legitimidade das partes, importando começar por verificar o texto da lei para - em conformidade - decidir (e se definir) se estão no processo - para usar uma expressão de Henckel - "como Autor e como Réu as partes exactas"[13], o que é o mesmo que dizer, ou verificar, se "o autor e o réu são os sujeitos que podem discutir a procedência da acção"[14]: a “legitimidade processual destina-se a assegurar que estão em juízo, como autor e como réu, sujeitos que têm uma relação com esse objecto. Noutros termos: a legitimidade processual define quem pode exercer e contra quem pode ser exercido o direito de acção"[15].

Assim, um/a Autor/a "só tem legitimidade, só é parte legítima, quando propondo a acção tem um benefício se a vir julgada procedente" e "um réu só tem legitimidade, só é parte legítima, quando sendo contra ele proposta uma acção tem um prejuízo se a vir julgada procedente"[16], tudo isto verificado em face do que é alegado no inicial articulado.

Estamos no âmbito da legitimidade passiva, pelo que se dirá que tem legitimidade como Réu, quem – juridicamente – tenha interesse directo em demandar e em contradizer, interesse esse que se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção e pelo prejuízo directo que dela advenha: é o critério que a lei processual civil fornece, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 30.º[17] do Código de Processo Civil.

Por outro lado, o n.º 3 do mesmo normativo, sublinha que, a não ser que haja lei em contrário, serão titulares de interesse relevante para aferição de legitimidade, os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo/a Autor/a[18].

“Assim, hoje, a legitimidade processual é analisada segundo os seguintes vetores:

                             - o autor é parte legitima quando tem interesse direto em demandar;

                             - o réu é parte legitima quando tem interesse direto em contradizer;

                             - o autor e o réu têm interesse direto na causa quando são sujeitos da relação material controvertida tal como ela é configurada pelo autor”[19].

 

Neste contexto, tem de se ter como assente que é face à forma e ao conteúdo da articulação factual com que um/a Autor/a, na Petição Inicial e de forma unilateral[20], delimita a relação material que tem como controvertida, que a acção fica configurada[21], sendo a partir desta base[22], que a legitimidade, enquanto pressuposto processual, será aferida[23].

Esta é a responsabilidade de um/a Autor/a quando recorre a Tribunal.

E, se falha, só de si se pode queixar.

 

Em concreto, está em causa a verificação de um pressuposto processual essencial, que constitui uma excepção dilatória (artigos 576.º, n.º 2[24], 577.º, alínea e), do Código de Processo Civil), a qual é, diga-se, de conhecimento oficioso (artigo 578.º[25]) e que, como tal, tem como consequência a absolvição do réu da instância[26] (artigo 278.º, n.º 1, alínea d) [27]).

Foi essa a decisão do Tribunal a quo, tem essa de ser também a decisão deste Tribunal, à face de tudo o que atrás já ficou dito: a Ré não é parte legítima nesta acção, tal qual a Autora configurou a relação material controvertida (se actuou em nome e por conta do seu cliente, o contrato foi celebrado com o cliente).

 

Tudo visto e ponderado, in casu, e uma vez que nos movemos no âmbito da ilegitimidade singular, para a qual “a lei não prevê nenhum mecanismo de sanação”[28], quando ela ocorre, tal implica a sua insanabilidade[29] ou insupribilidade[30] e mesmo a impossibilidade de convite a um qualquer aperfeiçoamento[31], pelo que só podemos concluir que o Tribunal a quo decidiu de forma correcta, prolatando uma decisão clara, criteriosa, justificada e com uma fundamentação a merecer os maiores encómios.

Em conformidade, a decisão sob recurso, será confirmada in totum.

 

* *

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação, confirmando a Sentença recorrida.

 

Custas a cargo da Recorrente.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

***

Lisboa, 26 de Abril de 2022

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Pires de Sousa

 

 

 

José Capacete



[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2] Assinada em Bruxelas em 25/08/1924 e à qual Portugal aderiu por Carta de 05/12/1931, publicada no Diário do Governo, I Série, de 2 de Junho de 1932, tendo sido tornada direito interno através do Decreto Lei n.º 37.748, de 01 de Fevereiro de 1950.

[3] Assim, STJ 26/09/2008 (Processo n.º 08A2433-Sebastião Póvoas), 20/04/2006 (Processo n.º 06B628-Oliveira Barros) e 20/03/2003 (Processo n.º 03A3624-Ponce de Leão). Também, RL 19/10/2017 (Processo n.º 79/12.2TNLSB.L1-2-Ondina Alves) e RL 03/03/2016 (Processo n.º 293-07.2TNLSB.L1-6-Regina Almeida).

[4] De forma mais completa, “o contrato de transporte é um negócio jurídico representativo de uma prestação de serviços por meio do qual o transportador compromete-se a deslocar, de forma organizada e mediante o controle da atividade, pessoas ou mercadorias de um lugar para outro, em favor de outrem (passageiro ou expedidor) ou de terceiros (destinatário), mediante uma vantagem econômica” - Alessandro Meliso Rodrigues, O contrato de transporte marítimo de mercadorias e o regime especial exonerativo e limitativo da responsabilidade civil do transportador no ordenamento jurídico português, in Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 1 (2015), n.º 1, páginas 265-381(270), disponível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2015/1/2015_01_0265_0381.pdf [consultado a 13/04/2022].

[5] Assim, STJ 26/09/2008 (Processo n.º 08A2433, cit.).

[6] Que releva para a compreensão do papel da Ré.

[7] Menezes Cordeiro, Introdução ao direito dos transportes, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 68, vol. I, 2008, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2008/ano-68-vol-i/doutrina/antonio-menezes-cordeiro-introducao-ao-direito-dos-transportes/ [consultado a 12/04/2022].

[8] Como é visível:

                   - nos artigos 3.º e 7.º do Requerimento de Injunção;

                   - nos artigos 7.º e 9.º do articulado que se seguiu à Oposição.

[9] Mesmo nas suas Alegações de recurso, e apesar do que defende a final, mantém um discurso dúbio e mesmo contraditório, como se vislumbra quer:

                                                           - do artigo 11.º (onde define o contrato de expedição, referindo que é “o contrato mediante o qual uma parte (o transitário, aqui Recorrida) se obriga perante a outra (o expedidor, seu Cliente) à prestação de certos serviços - que tanto podem ser actos materiais ou jurídicos - ligados a um contrato de transporte, e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e representação do cliente”, reconhecendo, assim, que a Recorrida interveio em nome do seu cliente/expedidor, um terceiro, portanto);

                                                           - quer do artigo 12.º (onde recorre a uma figura jurídica distinta – a subcontratação – mas confirmando que a ora Recorrida, enquanto transitária, actuou “por conta do seu cliente”);

                                                           - quer do artigo 17.º, quando assume que não põe em causa que a Recorrida se dedica à actividade transitária e que foi nessa qualidade que contactou com a recorrente para com ela celebrar o contrato de transporte em causa (o que, conjugadamente, com o resto do exposto, sabendo que o foi por conta de terceiro, nos leva à mesma conclusão).

[10] O que, aliás, decorre directamente do título de transporte junto com a Oposição, documento que todos aceitam como válido.

[11] Nos termos do artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil, este documento tem a autoria reconhecida e não tendo sido posta em causa a sua veracidade (não foi impugnado nem foi invocada a sua falsidade) “faz prova plena quanto às declarações atribuídas do seu autor” (ou seja, à ora Autora…).

[12] Que, sob a epígrafe “Responsabilidade das empresas transitárias”, dispõe no seu n.º 1 que estas respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso.

[13] Antunes Varela-Sampaio e Nora-José Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, Coimbra Editora, página 129.

[14] Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, LEX, 1995, página 45.

[15] João de Castro Mendes-Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, CIDP-AAFDL, 2022, página 335.

Já em 1979 o mesmo Miguel Teixeira de Sousa escrevia que a legitimidade, é "uma qualidade da parte definível pela titularidade de um conteúdo referido a um certo pedido(...). É a titularidade de duma posição subjectiva para um certo objecto processual inicial" (Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, Separata do BMJ 292, 1979), continuando - em 1995 - a descrevê-la como "a susceptibilidade de ser parte numa acção aferida em função da relação dessa parte com o objecto daquela acção", sendo, portanto "relativa a uma determinada acção e a um determinado objecto" (Miguel Teixeira de Sousa, As partes..., loc. cit.; vd., também, Rui Pinto, Problemas de Legitimidade Processual, in Aspectos do Novo Processo Civil, LEX, 1997, páginas 157 a 193).

[16] Fernando Ferreira Pinto, Lições de Direito Processual Civil, ELCLA, 1997, página 126)

[17] Artigo 30.º (Conceito de legitimidade)

       1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

       2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

       3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

[18] E foi no entendimento deste conceito (de relação material controvertida) que, durante longos anos, se digladiaram duas correntes, moldadas fundamentalmente, nas posições de ilustres processualistas como Barbosa de Magalhães e José Alberto dos Reis, sendo que, agora - com a redacção dada ao n.º 3, do artigo 30.º do Código de Processo Civil (que foi introduzida no anterior regime processual civil, pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) - o legislador tomou uma clara opção pela posição do primeiro: refere-se no Preâmbulo do citado Decreto-Lei, que se partiu "de uma formulação da legitimidade semelhante à adoptada no DL 224/82 e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto dos Reis".

Para este último, eram legítimas as partes quando, pressupondo-se a existência da relação jurídica controvertida, elas sejam suas titulares, ou seja, quando os sujeitos da relação controvertida - admitindo a sua existência - sejam as pessoas a que a relação diz respeito.

Para Barbosa de Magalhães, por seu turno, eram legítimos os sujeitos da pretensa relação material controvertida, tal como o Autor a configurava, a desenhava.

[19] Joana Lopes Pereira, Legitimidade Civil – uma abordagem atualista, [em linha], Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Junho de 2018, página 35, disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37646/1/ulfd137612_tese.pdf [consultado a 13/04/2022].

[20] RP 18/09/2017 (Processo n.º 5968/16.2T8VNG.P1-Ana Paula Amorim): em face do artigo 30.º do CPC, para efeitos de aferir da legitimidade, interessa apenas a relação jurídica controvertida com a configuração subjetiva que o autor (unilateralmente) lhe dá.

[21] Só com este entendimento aliás, se consegue colocar a legitimidade no mesmo plano dos restantes pressupostos processuais, apreciando-a tal como a estes, à luz da relação controvertida tal como os autores a apresentam (até porque são os autores que determinam o objecto do processo - assim, João de Castro Mendes, Direito Processual Civil Declarativo, II, AAFDL, 1987, página 291).

[22] RP 20/09/2018 (Processo n.º 3756/12.4TBGMR.G2-Eugénia Cunha): a legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial e é nestes termos que tem que ser apreciada.

[23] No "nosso ordenamento jurídico-processual(...) este pressuposto processual tem de ser averiguado em face das afirmações concludentes do autor, atendendo-se à configuração subjectiva dada pelo autor à situação material controvertida" (Maria José Oliveira Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, Studia Iuridica n.º 15, Coimbra Editora, 1996, página 192).

[24] Artigo 576.º (Exceções dilatórias e perentórias – Noção)

       1 - As exceções são dilatórias ou perentórias.

       2 - As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.

       3 - As exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.

[25] Artigo 578.º (Conhecimento das exceções dilatórias)

       O tribunal deve conhecer oficiosamente das exceções dilatórias, salvo da incompetência absoluta decorrente da violação de pacto privativo de jurisdição ou da preterição de tribunal arbitral voluntário e da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 104.º.

[26] A “legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória” dá “lugar à absolvição do Réu da instância” (RL 19/02/2015 - Processo n.º 143148/13.OYIPRT.L1 -2-Ezagüy Martins).

[27] Artigo 278.º (Casos de absolvição da instância)

       1 - O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:

              a) Quando julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal;

              b) Quando anule todo o processo;

              c) Quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária ou que, sendo incapaz, não está devidamente representada ou autorizada;

              d) Quando considere ilegítima alguma das partes;

              e) Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória.

       2 - Cessa o disposto no número anterior quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada.

       3 - As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.

[28] João de Castro Mendes-Miguel Teixeira de Sousa, Manual…, cit., página 340.

[29] António Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 64.

Também, Lebre de Freitas-Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado - Volume 2.º Artigos 362.º a 626.º, 4.ª Edição, Almedina, 2019, página 581.

[30] “A ilegitimidade singular é insuprível, pois, mesmo que intervenha a verdadeira parte, não pode deixar de se absolver da instância a parte que nada tem a ver com a relação material controvertida” - RG 10/09/2020 (Processo n.º 559/20.2T8GMR.G1-Rosália Cunha). Também, RC 06/12/2011 (Processo n.º 1223/10.0TBTMR.C1-Carlos Querido: o “mecanismo de sanação previsto no n.º 2 in fine do artigo 265.º do[do anterior]CPC, aplicado à ausência do pressuposto processual da legitimidade, só é viável nas situações de preterição de litisconsórcio necessário, sendo inviável nas situações de ilegitimidade singular”).

[31] “O suprimento de excepções dilatórias, a determinar pelo juiz nos termos dos artigos 6.º, n.º 2 e 590.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, apenas é possível em relação aos pressupostos processuais susceptíveis de sanação” - RE 07/12/2017 (Processo n.º 4035/15.0T8LLE-A.E2-Mário Coelho).

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