terça-feira, 10 de maio de 2022

Uma criança, uma avó que quer a neta, uma imputação infundada de violência doméstica a um pai, e a ponderação dos riscos do sistema

Processo n.º  293/20.7T8SXL-B.L1

Tribunal a quo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Família e Menores do Seixal - Juiz 2

Recorrente
V……
Recorrido/a(s)
 M…
Ministério Público

Sumário:
I – Constituição, Convenção dos Direitos da Criança, Código Civil e Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo criam um sistema que permite adaptar as necessidades de protecção do superior interesse da criança aos concretos perigos que sobre esta incidam.
II - Os princípios da proporcionalidade e actualidade, da responsabilidade parental, da prevalência da família e da continuidade das relações psicológicas profundas, estão também presentes nas decisões a tomar quanto à guarda das crianças, no âmbito dos processos de regulação das responsabilidades parentais (de forma a que qualquer intervenção respeite o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante).
III – O sistema legal de protecção das crianças, na tomada de decisões, assume naturalmente a existência de dois riscos: o do perigo para a criança ser real e o de efectivamente se vir a verificar que o não era, sendo que, dando-se corpo inicial ao primeiro (decretando uma medida ou fixando um regime que retire a guarda a um progenitor), mas vindo a concretizar-se o segundo (por se constatar a inconsistência das imputações feitas a esse progenitor), deve haver celeridade na reposição da situação.
IV - Tendo inicialmente sido atribuída a guarda de uma criança à avó, por existir um processo crime contra o pai onde se lhe imputava a prática de crimes de violência doméstica contra o cônjuge, de abuso sexual contra a menor e de importunação, o arquivamento desse processo crime impõe uma reposição rápida da situação anterior, a não ser que outros elementos probatórios apontem para a existência de perigo que sustente a sua manutenção.
V – Só uma situação de excepção justifica que a responsabilidade parental deixe de estar a cargo de um/a progenitor/a, sendo que, cessada a situação excepcional, deve cessar a medida excepcional (que passa a ser excessiva, desproporcionada e desnecessária).

Relatório

O MINISTÉRIO PÚBLICO (em representação da menor M…) intentou ACÇÃO DE REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS, relativamente a seus pais M... e S…, requerendo a fixação de um regime provisório que colocando a menor a cargo e aos cuidados de V…. (avó materna), lhe atribua a sua representação nas questões de maior importância e nas decisões correntes do seu dia-a-dia, estabelecendo que a criança continue a residir com a avó materna e determine a limitação das saídas da criança de território nacional.

Em suma, estava em causa a circunstância de a mãe da menor ter sofrido um acidente que a incapacita, de a avó ter vindo do Brasil para ajudar, vivendo com pai e menor assumindo o papel de cuidadora, sendo certo que, cerca de 9 meses depois, a avó V… formalizou denúncia contra o pai imputando-lhe maus-tratos físicos e psicológicos contra si (também com ameaças e intimidação) e a menor, que levaram a que ambas fossem colocadas em centro de acolhimento de emergência.

 

Foi de imediato determinado que a menor só pudesse sair do país com autorização judicial e, depois de 30.06.2020 com autorização da avó materna.

Foi ouvida a avó da menor.

Foi ouvido o pai da menor.

A 18.03.2020 foi determinado que a menor só saísse do país com autorização de pai e avó ou autorização judicial e alterado o regime provisório, permitindo o contacto telefónico com o progenitor (progressivo) e um contacto presencial semanal supervisionado.

Na sequência de várias diligências e do arquivamento do processo crime que corria contra o pai da menor, o Ministério Público veio promover, a 29/10/2021, a «entrega imediata da menor ao seu progenitor, por não existirem fundamentos da permanência da mesma com a avó».

A 15/11/2011 o Tribunal a quo proferiu decisão, no sentido de fixar um novo regime provisório, assim definido:

“As responsabilidades parentais em questões de particular importância e quanto aos atos da vida corrente ficam a cargo do pai, com quem a menor residirá.

O pai deverá manter a avó V… informada dos factos mais relevantes da vida da menor.

A menor conviverá com a avó V… num dos dias do fim-de-semana desde a hora do almoço, incluindo este, até às 18:00.

A menor contatará diariamente com a avó V… por telefone e internet.

O pai deverá fomentar os convívios da menor com toda a família materna e paterna”.                                                                                    

É desta decisão que a Requerida V… apresentou Recurso lavrando as seguintes Conclusões:

A) As competências parentais do progenitor não se aferem de per si pelo arquivamento do processo crime que impende sobre o mesmo, e que não está findo.

B) As competências parentais aferem-se por meios probatórios, designadamente relatórios, que o demonstrem e que in casu não existem.

C) Tendo sido fixado um regime provisório de visitas no CAFAP entre a menor e o progenitor de Dezembro de 2020 a Março de 2021, uma vez por semana com a duração de 30 minutos, e de Março de 2021 até Outubro de 2021 estendidos aos 50 minutos, a técnica do CAFAP ouvida em juízo limitou-se a atestar como decorreram curtos tempos semanais explicando que as visitas decorriam na sua presença dentro de uma sala com recurso ao manuseamento de brinquedos que compõem o equipamento e outros levados pelo pai, o que de per si não permite aferir das competências parentais do progenitor, porquanto não permite aferir das competências necessárias para o dia-a-dia, como sejam, assegurar os cuidados básicos da menor, garantir as rotinas da criança e, em simultâneo, estabelecer uma relação com a mesma por meio de tempos lúdicos prazerosos para a menor.

D) Resultou das declarações prestadas pelo progenitor que está a trabalhar em horário repartido, entre o almoço e jantar, incluindo os fins de semana, e que não pode estar com a menor nem assegurar os seus cuidados após a saída da menor do período escolar, i.e., período noturno e fins-de-semana, dizendo ainda que os cuidados com a menina serão assegurados por terceiros caso a filha fique a residir com ele, o que é revelador de ausência não só de competências parentais, mas também de falta de noção do que implica ter uma filha a cargo.

E) Retira-se das declarações do progenitor que as condições de vida que tem hoje são muito semelhantes, senão iguais, às que tinha há 3 anos quando chamou a avó que vivia no Brasil para vir para Portugal cuidar da menor porque ele estava a trabalhar e não podia assegurar os seus cuidados, estando na altura a menor entregue aos cuidados de terceiros.

F) Daqui se infere que o Tribunal a quo retirou a menor dos cuidados da avó para colocar sobre o cuidado de terceiros que nem sabe quem são, afetando inevitavelmente o bem-estar e equilíbrio da criança.

G) A avó em momento algum atuou ilegalmente porquanto se limitou a pedir ajuda a uma organização que a recebeu e acolheu juntamente com a menor, sendo que foi essa mesma organização que apresentou denúncia ao abrigo de um dever jurídico em obediência ao disposto no arts. 242º do C.P.P. e 386º do C.P.

H) O acolhimento em casa abrigo da requerida e da menor foi efetuado de acordo com o respeito pela legislação em vigor, mormente o disposto no Decreto Regulamentar nº 2/2018, de 24 de janeiro, que estabelece as condições de organização e funcionamento das estruturas de atendimento, respostas de acolhimento e das casas de abrigo que integram a RNAVVD prevista na Lei nº 112/2009, de 16 de setembro na sua atual redação.

I) Após ter concedido à residência da menor com a avó pelo período de 3 anos, o Mmº Juiz a quo entende agora que só a mesma deve ser submetida a uma perícia, quando já estava decretada para ambos avó e progenitor - e pela qual não esperou para tomar a decisão de alteração abruta da residência da criança, fazendo perigar também por esta via o bem-estar e equilíbrio da menor.

J) No despacho de arquivamento do processo crime, também lá consta a perícia a que a avó se submeteu voluntariamente por indicação do Ministério Público e que atesta a credibilidade do seu testemunho e que o Mmº Juiz teve conhecimento e ignorou por completo.

L) A menor ficou abruta e repentinamente sem a mãe colhida por um comboio e que a colocaram em estado vegetativo - e agora o mesmo sucedeu em relação à avó, pessoa que cuidou dela nos últimos 3 anos e que é a sua figura de referência e que só passou a poder estar com a menor 1 dia na semana, durante algumas horas e sem pernoita.

M)- Sendo que a menor nunca manifestou em predisposição natural de privar mais tempo com o progenitor, tendo sido revitimizada e absolutamente ignorada na sua vontade vertida aquando da sua audição, não se dignando o Mmº Juiz a quo sequer a estabelecer um regime progressivo de adaptação ao progenitor.

N)- O Mmº Juiz a quo e o Ministério Público que não anteviram o perigo de fuga do progenitor, de nacionalidade brasileira, com a menor porque ele, sim, estando com um processo crime pendente desta gravidade e tendo-lhe sido atribuído este poder relativamente à menor pode bem fugir com ela para onde entender sem nunca mais se saiba nada sobre a vida desta criança, o que representa a falência total e absoluta do sistema judicial no que tange à proteção dos menores.

O)- Ao ter decidido como decidiu o Mmº Juiz a quo precipitou-se e violou frontalmente o princípio do superior interesse da criança e, bem assim, o disposto nos arts. 4º, 5º, 38º, 40º, 42º do R.G.P.T.C., art. 2004º, nº 1 do C.C., art. 5º, 8º e 12º da Convenção dos Direitos da Criança, e, bem assim, todas as orientações da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e combate da violência contra as mulheres e violência doméstica, aprovada em 11 de maio de 2011.

 

O Requerido M… apresentou Contra-Alegações nas quais concluiu que:

1. As competências parentais do Recorrido foram confirmadas pelo Relatório de Perícia Médico-Legal, ficando claramente demonstrado que o mesmo as possuiu, contrariamente à avó/Recorrente que, segundo o Relatório de Perícia Médico-Legal apresentado, também ele junto aos autos, carece de tais competências.

2. O Recorrido, enquanto pai da menor M…, sempre demonstrou ter um grande carinho e preocupação com a mesma, tentando sempre, e apesar das circunstâncias, restabelecer e fortificar a relação afetiva entre ambos.

3. Ficou demonstrado pelos Relatórios das Técnicas do CAFAP que as visitas efetuadas pelo Recorrido à menor eram prazeirosas para ambos, sendo que, apesar de se encontrarem separados, em virtude das circunstâncias vividas, verifica-se que a relação entre pai e filha não se perdeu totalmente e é harmoniosa, adequada e afectuosa.

4. O exercício de actividade profissional do Recorrido não pode, nem deve ser, motivo a inibição das suas responsabilidades Parentais, porquanto as suas competências parentais não são aferidas em função do exercício da sua profissão.

5. Não pode a profissão do Recorrido ser fundamento para atribuir a guarda da sua filha à Recorrente e avó, pois tal situação constituiria descriminação, pondo em causa todo um Estado de Direito, bem como Direitos Constitucionalmente reconhecidos.

6. O eventual recurso e apoio de terceiros para o cuidado da sua filha M…, durante o período de trabalho, sendo normal e natural em todas as famílias, apenas é sinónimo do interesse e preocupação em assegurar o bem-estar da filha.

7. O arquivamento do processo-crime de que vinha o Recorrido indiciado, tal como promovido pelo Ministério Publico e decidido pelo Meritíssimo Juiz a quo, é causa bastante e robusta para a decisão proferida de entrega imediata da menor ao seu progenitor.

 

O Ministério Público apresentou Contra-Alegações nas quais concluiu que:

1. A Recorrente V… veio interpor recurso do despacho de 15.11.2021, que alterou o regime provisório da regulação do exercício das responsabilidades parentais de …, tendo fixado que a menor passaria a residir com o pai e conviveria com a avó num dos dias do fim-de-semana, desde a hora do almoço, incluindo este, até às 18:00, e contactaria com ela por telefone e internet.

2. Considera a Recorrente V… que as competências parentais do progenitor não se aferem de per si pelo arquivamento do processo crime que impende sobre o mesmo e que não está findo, sendo que elas aferem-se por meios probatórios, designadamente relatórios, que o demonstram e que in casu não existem.

3. Também considera que o despacho recorrido viola os arts. 4°, 5°, 38°, 40° e 42°, do RGPTC, no art. 2004°, n.° 1, do C.C., nos art. 5°, 8° e 12°, da Convenção dos Direitos da Criança e, bem assim, todas as orientações da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e combate da violência contra as mulheres e violência doméstica, aprovada em 11 de Maio de 2011.

4. Ao contrario do propalado pela Recorrente V…, o despacho recorrido não nos merece qualquer reparo.

5. O despacho do Mmo. Juiz “a quo” de 15.11.2021, que alterou o regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais, atende o superior interesse da menor ….

6. Este despacho respeita o que foi decidido, aquando da prolação do despacho de arquivamento no Processo n.° 5/20.5T9SXL, pela SEIVD do Seixal-NAP, sendo que o progenitor da menor … era acusado da prática de crimes de violência doméstica e crimes contra a liberdade autodeterminação sexual contra a sua filha e a avó materna desta, ora Recorrente.

7. Face ao teor do despacho de arquivamento proferido no Processo n.° xxxxx, que correu termos na SEIVD do Seixal - NAP, o Ministério Público apresentou o seguinte requerimento aos autos: Procuradora da República junto do Juízo de Família e Menores do Seixal tendo conhecimento, após a realização da diligência designada para o dia 28.10.2021, que no Processo n.° xxxx, que correu termos na SEIVD - NAP, em que M… era arguido pela prática de crimes de natureza sexual e de violência doméstica na pessoa da sua filha …, da sua companheira e da sua “sogra” V…, foi proferido despacho de arquivamento, vem requerer a entrega imediata da menor ao seu progenitor, por não existirem fundamentos que justifiquem a permanência da mesma com a avó, após a prolação do referido despacho de arquivamento.

8. Por requerimento junto aos autos, o pai da menor … veio requerer também entrega imediata da menor a si.

9. Considerando tais requerimentos, o Mmo. Juiz a quo decidiu no dia 15.11.2021 que: “Pelo exposto, e sem necessidade de considerandos, por inexistir qualquer fundamento que justifique a manutenção da menor junto da avó, sendo que a menor foi para junto da avó por atuação ilegal por parte da mesma, e manteve-se por causa de alegações da avó que todos os elementos recolhidos nestes autos e nos de inquérito não confirmam minimamente, deverá a menor M… ser de imediato entregue ao pai.

10. Não existindo a prática de crimes, por parte do pai da menor M…, na sua pessoa ou nas pessoas da sua mãe e da sua avó, não fazia qualquer sentido que a menor continuasse à guarda e responsabilidade da Recorrente, continuando a privar o pai do exercício efectivo das responsabilidades parentais.

11. Acresce que os Relatórios elaborados pelo CAF AP relativamente às visitas realizadas entre o pai e a menor V…  foram muito benéficas para os dois intervenientes.

12. Sem esquecer que, no dia 06.12.2021 foram juntos aos autos os Relatórios das Perícias Médico-Legais–Psicologia-Relatórios Psicológicos, realizadas à Recorrente V…e ao Recorrido M…, pai da menor M….

13. De acordo com o teor dos dois Relatórios das Perícias Médico-Legais-Psicologia-Relatórios Psicológicos realizados, facilmente se constata que o Requerido M… é a pessoa mais apta a ficar responsável pela menor M… e a exercer as suas responsabilidades parentais.

14. Acrescente-se que com a decisão do dia 15.11.2021, o Mmo. Juiz a quo não afastou a Recorrente V… da vida da sua neta M…, pois que fixou um regime provisório, que também contemplou visitas entre avó e neta.

15. Bem decidiu o Tribunal “a quo” ao fixar o regime provisório da regulação do exercício das responsabilidades parentais da menor M…, nos termos em que o fez no despacho de 15.11.2021.


Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

 

A factualidade apurada na 1.ª Instância não foi colocada em causa no recurso.

 

Em causa estará, assim a verificação da adequação da fixação do regime provisório das responsabilidades parentais relativas à menor M… (voltando a colocá-la à guarda e cuidados do pai), inicialmente atribuídas à avó, na sequência do arquivamento de um processo crime em que o pai era arguido.

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.


Fundamentação de Facto

A Decisão sob recurso assentou na consideração da seguinte factualidade:

1. M…, nasceu a 25.02.2012, na República Federativa do Brasil, e é filha de S… e de M…, constando do assento de nascimento que a avó materna era V…e avô materno A....

2. Em data não concretamente apurada, mas algum tempo após o nascimento de M…, S… e M passaram a ter uma relação afetiva estável e passaram a viver juntos, durante vários anos, no Brasil e com a menor M...

3. Na conferência de 10.02.2020 V… explicou que a sua filha (S…) já tinha tido um relacionamento ocasional, do género “passatempo”, com o sr. M…, que ao mesmo tempo também tinha um relacionamento com outra pessoa e por isso ele tem 2 filhas com a mesma idade.

4. V… tinha um mau relacionamento com o progenitor M…no Brasil, tendo havido discussões e participações da avó contra o pai no Brasil, sendo que numa das vezes a avó V… foi a casa da mulher com quem o pai vivia dizendo que a sua filha S… estava grávida e pedir-lhe explicações tendo havido uma discussão entre ambos, sendo algum tempo mais tarde o progenitor passou a viver com S… e com a menor M…, deixando a mulher com quem vivia na altura da gravidez de S….

5. Na conferência de 10.02.2020 V… explicou a sua filha (S…) veio para Portugal em 2018. M…veio primeiro e depois ela veio.

6. M…veio para Portugal, em data não concretamente apurada, mas que será por volta de 2017 e S… veio alguns meses mais tarde para Portugal com M…, em 2108, continuando a todos a viver juntos como aconteceu nos anos anteriores no Brasil

7. Ouvida a 10.02.2020 V… refere que não queria que S…, a sua filha, viesse para Portugal, pois «sabia que M… tinha cá uma amante».

8. Ouvida a 10.02.2020 V…, que vivia no Brasil, refere que M… ia com a filha M… para junto da amante, enquanto a filha S… trabalhava, e dizia à «M… para descer as escadas para ele poder dar beijinhos a amante, mas a V… via tudo».

9. A 04.03.2019 S…foi colhida por um comboio, ficando internada até aos dias de hoje e gravemente incapacitada, dependendo totalmente de terceiros para a sua sobrevivência e atividades do dia a dia. Não verbaliza, não se movimenta de forma autónoma. Cumpre ordens simples.

10. M… pediu dinheiro emprestado à entidade patronal para pagar a passagem aérea de V…, a qual veio do Brasil para Portugal a 24 de março, ficando a viver com M…, na casa deste e com M., sendo M… quem assegurava as despesas.

11. Em Portugal, M… e V… tinham um mau relacionamento e praticamente não se falavam dentro de casa.

12. Ouvido a 2020 02 26 M… refere sobre «o episódio em que S… ficou grávida, quem foi a sua casa foi a Sra. V…, apresentou queixa na esquadra de São Mateus (Brasil), porque a mãe da S…, V…, foi na sua porta, gritando que ele era um vagabundo e nega a acusação de (V…) que foi com o facão atrás delas. Quem dizia que ele não era o pai da M… era a D. V…, nunca bateu na esposa nem à menina no Brasil e cá em Portugal. Jamais faria isso. Nega ainda que tivesse deixado a filha sozinha para estar com uma amante (como o acusa V…). Trabalha numa churrasqueira em Lisboa. Devido ao acidente perguntou à família se alguém podia vir ajudar e pagou a passagem para a dona V…para vir cuidar da filha. É mentira o que foi dito quanto ao que teria acontecido junto da médica, nomeadamente de que tinha posto os dedos nas pálpebras e a médica pode comprovar isso; na clínica a esposa tinha falta de higiene, teve duas reuniões com o director e fez duas queixas. Não tirou fotos das partes íntimas, tirou fotos da fralda da esposa porque estava cheia de fezes e medo que ficasse com uma infeção.»

Após o acidente, como «estava a gastar muito com combustível a visitar a esposa em Setúbal, então pediu um empréstimo com o patrão e amigos, para comprar uma mota e ficar mais barato e comprar as viagens para a sogra. Estava a trabalha na churrasqueira e como motorista na AutoEuropa para pagar o empréstimo e teve de ficar uma ou duas semanas a trabalhar quase 24 horas por dia. Quando veio a sua sogra deu o seu quarto a ela e sua filha e dormia na sala, a sua sogra está no seu quarto desde que veio com televisão e internet. Reconhece que foi muito ausente para a sua filha porque tinha que trabalhar muito, mas confiou na sua sogra para ficar com a filha. No dia que descobriu tudo foi dito pela escola que a M… não fazia os trabalhos de casa, a professora disse que a encontrou a chorar, e perguntou porque não fazia os trabalhos de casa ela dizia que ia à igreja com a avó. Nunca deixou de ver a sua esposa e assinou os papéis para ser o acompanhante da sua esposa. Na esquadra da Torre da Marinha fez queixa e foi à escola e pediu ao coordenador, ligaram-lhe um Dr. R… um investigador, falou com a GNR e CPCJ, nunca desistiu de procurar a sua filha. Ontem a filha fez anos, não conseguiu contactar a sua filha, mas a filha do Brasil conseguiu falar com a M…».

Não vê a filha desde o dia que a sogra desapareceu com a filha, tentou o contacto telefónico, mas não conseguiu, quase há dois meses. Nunca deixou a sua família passar fome, nunca faltou comida na sua casa. Todos os inícios de mês, dava 50/100 euros à sogra para se precisasse, no entanto a sogra podia usar a roupa da sua esposa. Até o seu cartão de crédito tinha.

13. Ouvida a 10.02.2020 V… referiu que M… a chama de “vó” e de “mãe”.

14. A 02.01.2020 foi registada a entrada de uma participação criminal que a UMAR apresentou junto do MP denunciando o que lhe foi relatado por V…e pedindo a aplicação de medidas de coação para o progenitor M… por factos que descreve na denúncia que integravam, segundo a denunciante, a prática de um crime de violência doméstica, um crime de violação, um crime de abuso sexual de crianças e um crime de violação na forma tentada.

15. Tal denúncia deu origem ao inquérito n.º xxxxx.

16. A 2020 02 11, dos CRC de pai, mãe e avó V… nada constava.

17. Ouvida a 10.02.2020 V… refere ter ido para a casa abrigo da UMAR a 22.01.2020, sendo que o pai apresentou participação na PSP às 12:20 de 24.01.2020 referindo que a 22.01.2020, pelas 17:00 deixou de saber da filha M…, após a avó V…a ter ido buscar à escola desconhecendo totalmente onde se encontra a filha M….

18. Ouvida a 10.02.2020 V…referiu que M… não queria que S…fosse transferida do Hospital Garcia de Orta HGO para a Liga de Amigos do HDO, cuidados continuados, pois enquanto estivesse no HGO M…não teria de pagar nada e «assim podia ficar com o dinheiro e continuar a beber (bebidas alcoólicas)».

19. Por despacho de 06.02.2020 fixou-se o seguinte regime provisório:

                             a) Até ao dia 30.06.2020, a menor só poderá sair do país com autorização judicial.

                             b) Após tal data só poderá sair do país com autorização escrita da avó materna.

20. A 18.03.2020 alterou-se o regime provisório, fixando-se entre outras matérias um regime de convívios da menor com o pai, tudo conforme despacho que se dá por reproduzido de que se transcreve o seguinte:

                             a) Atentas as declarações do progenitor, as quais contrariam o descrito pela avó, e não havendo ainda elementos seguros sobre a credibilidade de qualquer uma das versões, altera-se o regime provisório (fixado a 06.02.2020) quanto à saída do país.

               Assim sendo, ao abrigo do art. 28 RGPTC: A menor só poderá sair do país com autorização escrita da avó materna e simultaneamente do pai, podendo naturalmente sair com o pai se este tiver autorização da avó materna ou com a avó se esta tiver autorização do pai. Não havendo autorização de ambos só poderá sair do país com autorização judicial.

                             b) Não estando minimamente demonstradas as graves acusações da avó face ao pai, a verdade é que a menor, por razões cautelares, incluindo tomadas por este Tribunal, se vê privada do convívio com o pai, situação a acrescer ao trauma que já passará pelo acidente sofrido pela mãe e seu internamento. Por outro lado, foi o pai quem tomou a iniciativa e apoiou a vinda da avó, sendo que o seu discurso, a confirmar-se tudo o que alega, nomeadamente a sua preocupação por ter dois trabalhos para sustentar a família, mostra empenho e motivação para cuidar da menor.

               O Digno MP propôs que visitas semanais supervisionadas e telefonemas.

               Concorda-se com a referida proposta, pelo que como regime provisório, e logo que estejam reunidas condições de segurança por causa da pandemia de Covid-19 em curso, cuja gravidade se tem vindo a revelar de dia para dia:

               Assim sendo, ao abrigo do art. 28 RGPTC:

                             A menor deverá estar uma vez por semana, em dia a combinar entre todos, em período de tempo que deverá ser gradualmente aumentado, começando-se pelo menos por uma hora, em visitas supervisionadas por técnicos/as da Segurança Social ou em CAFAP a selecionar pela SS.

                             Além disso, o progenitor poderá contactar telefonicamente com a filha, após as actividades lectivas, começando-se por um telefonema por semana nas primeiras duas semanas. Passadas duas semanas serão dois telefonemas por semana durante um mês e depois de um mês três telefonemas por semana.

                             Na falta de combinação será:

                             À 4ª feira pelas 19:00 nas primeiras duas semanas.

                             À 4ª e 6ª feira no mês que se segue pelas 19:00.

                             À 2ª, 4ª e 6ª, pelas 19:00 no período seguinte.

                             O pai deverá fornecer aos autos um contacto telefónico para a avó telefonar e colocar a filha a falar com o pai, de preferência por videoconferência.

 21. A 07.05.2020 o pai informa qual o número de telefone para a avó telefonar e colocar a filha em contato consigo.

22. A 07.05.2020 o pai M… veio aos autos informar que desde o dia 23 de Janeiro de 2020 que a menor está privada de estar com o progenitor, tendo sido «sonegado e esbulhado do seu direito e dever de exercício do poder paternal desde 23/01/2020, sem qualquer audição ou aviso, tendo aliás sido avisado para se abster de qualquer contacto com a filha, desconhecendo onde a mesma se encontra e com quem» e pede que seja conferido caráter urgente aos autos, uma vez que desde a fixação do regime de convívios ainda nada aconteceu.

23. A 15.05.2020 foi conferida natureza aos autos: «Não há notícia de aplicação de qualquer medida de coação e mantêm-se válidos os argumentos e razões que levaram à fixação do regime provisório. Impõe-se que o regime fixado há dois meses se concretize de facto. Ora, como requerido, e promovido, e estando cada vez mais em risco a manutenção dos vínculos afetivos pai/filha, confere-se natureza urgente aos presentes autos: art. 13 RGPTC. Insista com a SS pelo relatório pedido caso nada seja junto em duas semanas, e remeta à SS e ao pai e avó cópia deste despacho».

24. A 27.05.2020 o pai veio a Tribunal pedir para que entreguem à menor os brinquedos da mesma, conforme requerimento que se dá por reproduzido, informando que se iniciaram contactos, mas sem ser por videochamada:

               - Em execução do Douto Despacho de 13/03/2020, iniciou-se o contacto telefónico do progenitor com a menor, sem videoconferência, em 14 de Maio de 2020. Pôde o progenitor constar, neste dia, o grande sofrimento de sua filha, que só chorava, notoriamente afectada por não ver o pai nem compreender a situação em que se encontra. Independentemente de ser notório que a menor está a ser alvo de grande tensão, senão mesmo de instrumentalização, a verdade é que a menor está em grande sofrimento e infeliz. Sendo que o progenitor, perante o presente processo, está impedido de prestar apoio, consolo e tranquilidade á sua filha, mesmo porque ainda não se iniciaram as visitas previstas no Douto Despacho. As chamadas telefónicas voltaram a ocorrer nos dias 21 e 27 de Maio, ainda sem videoconferência, mas demonstrando a menor as saudades que tem da sua casa e do seu pai, e dos seus pertences, nomeadamente dos seus brinquedos. Efectivamente, a menor confidenciou e pediu a seu pai que lhe “trouxesse” alguns dos seus brinquedos e também a sua roupa de verão. O progenitor entende que estes bens da menor, nomeadamente os seus brinquedos, pela carga afectiva e emocional, são imprescindíveis ao bem-estar da filha. Por outro lado, estando tempo a aquecer, necessariamente as roupas mais leves fazem falta à menor. Estando o progenitor impedido de saber onde se encontra a menor e não se tendo sequer iniciado as visitas previstas há mais de dois meses e meio, vem o requerente rogar a Vexa se providenciar no sentido de urgentemente ser marcada a visita do progenitor que permita por um lado o contacto entre pai e filha e permita igualmente a entrega dos bens a esta.

25. A 2020 06 02 foi junto relatório da escola de M… antes de ser retirada da casa do pai, de que se destaca: «Após o acidente a avó materna passou a entregar e a recolher a M…na escola, com a autorização do pai (…). Depois do acidente da mãe o encarregado de educação passou a ser o pai. O pai/Encarrregado de Educação mostrou-se sempre interessado e preocupado com o percurso escolar da educanda.»

26. No dia 08.06.2020 aproveitando diligência de inquérito no Tribunal o pai, através da advogada do pai, fez a entrega à avó dos brinquedos e roupa da menor.

27. O pai tem uma filha no Brasil, a S…, de outra relação, com idade semelhante à da M…, sendo que ambas as filhas mantinham contato quando M… estava com o pai.

28. A 05 de Agosto de 2020 o pai recebeu um telefonema do SEF informando que V…tinha solicitado o apoio daqueles serviços para o seu repatriamento, da filha S…e da menor M….

29. A 20.07.2020 S… passou a estar internada nos cuidados continuados das residências Montepio.

30. As visitas supervisionadas da menor com o pai nas instalações da Seg. Social começaram a 10.08 (1ª visita), e foram tendo tido lugar, nomeadamente a 19.08 (2ª visita), 25.08 (3ª visita), 03.09 (4ª visita) e 09.09 (5ª visita) referindo o primeiro relatório de avaliação junto a 18.09.2020 que:

«As visitas supervisionadas decorreram com normalidade e tranquilidade, não se verificando a ocorrência de qualquer dificuldade, quer do ponto de vista da criança, a qual, revelou disponibilidade e motivação para conviver com o progenitor, quer do ponto de vista do progenitor, o qual, tem assumido uma postura colaborante e adequada. (…) Na primeira visita a M… mostrou-se bem-disposta, tendo reagido bem ao encontro com o pai.

M…assumiu uma postura adequada e carinhosa com a filha, emocionando-se durante a visita. Foi adequado na comunicação com a criança, procurando saber das suas rotinas, relembrando brincadeiras que ambos faziam por rotina, entre outros temas que partilharam. A M… fez desenhos a pedido do pai, o qual, relembrou o jeito que a menor tem para o desenho.

Não se verificou, até à presente data, qualquer necessidade de intervenção técnica durante os convívios, uma vez que a interação pai-filha tem sido espontânea e natural.

O progenitor tem oferecido brinquedos à M…, entre os quais: bonecas, jogo do uno, lápis, canetas, um diário, livros para desenhar, livros de atividades, plasticinas, legos, etc, com os quais, brincam e interagem durante o período de visita. A M… tem revelado espontaneidade, boa disposição e tranquilidade, nos convívios. Desfruta naturalmente do convívio com o pai, dando sugestões de brincadeiras, aceitando também as sugestões do pai.

A dinâmica das visitas tem sido transversal a todos os convívios já ocorridos, não se verificando oscilações no comportamento, atitude, ou motivação na relação entre pai-filha.

No início e final das visitas, pai e filha cumprimentam-se sempre, revelando sinais de afeto entre ambos.

Os intervenientes no presente processo têm sido colaborantes, e tem sido viável a marcação de uma visita por semana, conforme determinado pelo Tribunal.

Contudo, a avó materna da menor iniciou atividade profissional no início do corrente mês de setembro e a M… inicia as atividades letivas na corrente semana. As presentes alterações poderão constituir uma dificuldade acrescida para a marcação de visitas, tendo em conta a disponibilidade dos seus intervenientes».

31. No relatório de avaliação junto a 24.11.2020 sobre as visitas supervisionadas da menor com o pai nas instalações da Seg. Social continuou a relatar-se que: «A M…reage bem à presença do pai, revelando gratificação durante os períodos de convívio.

O progenitor continua a revelar uma atitude adequada e carinhosa no trato com a criança, demonstrando uma postura colaborante. Mantém uma atitude dinâmica durante os convívios, promovendo diversas brincadeiras e jogos com a M…».

Referindo ainda o relatório que as visitas iriam passar a ser acompanhadas no CAFAP MDV.

32. A 26.11.2020 foi junto relatório clínico que atesta a impossibilidade da progenitora S… se deslocar a Tribunal ou prestar quaisquer informações.

33. Do relatório de avaliação de visitas do CAFAP de 17.02.2021 destaca-se: «Durante os convívios temos observado que o progenitor tem tido uma postura adequada e demonstra interesse acerca do percurso evolutivo da filha, aderindo também com grande facilidade às muitas brincadeiras que a M… propõe, mas também fazendo propostas de atividades, que se tem verificado irem ao encontro dos gostos da filha. As atividades que realizam em conjunto têm sido bastante diversificadas, das quais destacamos a elaboração de desenhos, jogos improvisados, ler histórias, cantar, entre outras que desenvolvem com base nos presentes que o progenitor ocasionalmente oferece à M…. Tem sido observada uma dinâmica de grande interação entre pai e filha, com fluidez e boa-disposição no diálogo, existindo também frequentes manifestações de carinho do progenitor em relação à filha, que são correspondidas pela M… e também por ela iniciadas, quando por vezes se dirige ao pai para o abraçar. O progenitor por vezes recorda vivências antigas comuns, como também tem procurado que a M… mantenha presente a memória de pessoas que lhe são queridas, tendo tomado a iniciativa de numa das visitas contactar por telefone outra filha sua, S…, o que originou grande alegria na M….

Observa-se grande recetividade da M… quanto ao convívio com o progenitor e interesse no desenvolvimento de atividades lúdicas conjuntamente, contudo, por vezes imediatamente após os convívios a M… transmite à técnica do CAFAP que esses momentos não tiveram interesse de todo. Da polaridade destas atitudes, poderá inferir-se a presença de dificuldades da M… em fazer coexistir o afeto que sente pela avó e pelo progenitor.

Em atendimento, a avó transmitiu-nos a sua preocupação quanto aos contactos da neta com o progenitor devido ao historial comportamental generalizado do progenitor caracterizado por imprevisibilidade e agressividade e, principalmente, dado o teor das acusações que sobre ele recaem. Apesar de referir que o progenitor já teve atitudes mais violentas especificamente para consigo e também para com a filha e a neta, a avó ainda reconhece a importância da figura paterna no desenvolvimento da M…. No que diz respeito a objetivos futuros, V…diz ser sua pretensão regressar ao Brasil, onde considera ter uma rede familiar apoiante e que constituirá também um recurso na prestação adequada de cuidados à filha e à neta.

Pensamos também que, na sequência dos mais recentes acontecimentos da sua vida, com enfoque nos processos que decorrem em ambiente judicial e no acidente da filha, V…possa estar naturalmente a sentir-se mais fragilizada e com dificuldades na gestão emocional, recomendando-se para tal que possa beneficiar de acompanhamento individual, regular e continuado em consulta de Psicologia.

As visitas supervisionadas entre pai e filha têm decorrido com normalidade e não se evidenciam dificuldades de contacto em qualquer dos elementos, porém, atendendo aos processos que decorrem em paralelo e acerca dos quais não existe ainda decisão, o CAFAP propõe a manutenção das visitas, estando previstas as próximas para os dias 1, 15 e 29 de Março e 12 e 26 de Abril de 2021.

34. Relatório social junto a 07 10 2021: de acordo com as informações recolhidas no âmbito da presente solicitação, apurou-se junto do CAFAP, que os convívios supervisionados a decorrer entre a M… e o seu progenitor têm decorrido e evoluído de forma favorável.

Do contexto de observação da relação entre a criança e o pai, durante os convívios, resulta que a M… tem demonstrado gratificação e disponibilidade para estar e conviver com o pai e este tem revelado uma postura colaborante e adequada na forma como se relaciona com a filha.

Tem sido observável desde aquela data (fevereiro 2021) e até à presente data, grande recetividade da M… quanto ao convívio com o progenitor, contudo, por vezes, após os convívios a criança transmite à Técnica do CAFAP desinteresse pelos momentos que está com o pai.

A atitude da M… poderá inferir a sua eventual dificuldade para coexistir o afeto que sente pela avó materna e pelo pai.

M… avalia os convívios com a filha como gratificantes, considerando que ambos estabelecem entre si uma relação afetiva próxima.

Contudo, verbaliza desgaste e descontentamento pela situação familiar vivenciada, sentindo-se injustamente privado de exercer o seu papel parental, responsabilizando a avó materna.

Apesar de reconhecer que os convívios têm corrido bem, refere que mantém a intenção em assumir as responsabilidades parentais da criança salientando que a M… não tem necessidade de viver afastada do pai.

35. A 26.10.2021 aditou-se ao regime provisório: O pai poderá contactar telefonicamente com a filha quatro vezes por semana, sendo que um desses contactos telefónicos deverá ocorrer no fim de semana, no período compreendido entre as 19H00 e as 21H00, devendo a avó materna indicar o número de telefone para o efeito, e preferencialmente com possibilidade de videochamada por Whatsapp.

36. Dá-se por reproduzido o teor das atas de 08 e 28 de Outubro destacando-se o despacho proferido: Reputamos de anormal e sem sentido que o pai esteja completamente alienado de vivência do dia-a-dia da filha e não lhe sejam fornecidas informações sobre os aspectos mais relevantes da vida da menor, sendo que isso também contribui para que até os convívios sejam mais pobres, uma vez que o pai desconhece totalmente o que se passa no dia-a-dia da filha, e como tal, essas matérias não serão objeto de interação.

Assim deverá a avó em 15 dias remeter ao pai todos os elementos relevantes de saúde de que dispõe, nomeadamente as vacinas que a menor tem e a informação sobre se estão em dia, se a mesma tem sido seguida em pediatra, ou em médico de família, se é acompanhada em alguma consulta ou terapia, devendo ainda informar em concreto sobre as questões oftalmológicas que o pai revelou preocupação, nomeadamente se a menor usa óculos de correção, qual a graduação dos mesmos, e com que periocidade tem sido observada em oftalmologia.

Deverá ainda informar no último ano de algum período de doença que a menor tenha tido superior a três dias e que tenha tido algum diagnóstico, igualmente sobre questões dentárias/odontológicas deverá fazer um resumo de tal acompanhamento da menor e do estado da mesma. Quanto à escola deverá o pai ser informado das avaliações escolares, da assiduidade da pontualidade e de quais as matérias que a menor tem estado a dar e vai dar até ao final do primeiro trimestre. A avó deverá juntar aos autos uma cópia do que remeteu ao pai.

Atento o adiantado da hora dão-se 5 dias para as partes querendo se pronunciar, desde já se alterando para duas horas o regime de convívios por não haver justificação para se manter um período tão limitado, sendo que o arrastamento dos autos a aguardar quer as perícias quer o resultado do processo do inquérito estão a colocar em crise o reatamento e aprofundamento dos vínculos da menor com o progenitor podendo tornar-se uma situação irreversível.

Além disso, desde já, solicite ao CAFAP que além do alargamento para duas horas todas as semanas esclareça da viabilidade de no primeiro e terceiro sábado de cada mês a menor começar a passar uma tarde, com o progenitor nas imediações do CAFAP e sem a supervisão intensiva do CAFAP. Após a pronúncia das partes, caso entendam pronunciar-se em 5 dias, sendo certo que ao longo dos autos tem vindo a pronunciar-se de forma exuberante sobre a entrega da menor ao pai em termos imediatos, como o defendo o pai ou mantendo as limitações que o tribunal entendeu cautelarmente aplicar e que têm vigorado desde há muito, como defende a avó, poderá ainda ser revista esta decisão provisória.

37. O inquérito nº xxxxxx foi arquivado por despacho de 11.09.2021, destacando-se de tal despacho: Mais se apurou nas investigações que o denunciado e aqui arguido M…, vendo-se incapaz de lidar com a tragédia que se abateu sobre o seu núcleo familiar, buscou auxílio junto da sogra (V…), providenciando, no final do mês de março de 2019, pela sua vinda para Portugal.

A V… passou a coabitar com o ora arguido e com a neta, ocupando-se desta, no dia-a-dia, e do acompanhamento da sua filha S…, que passou a visitar amiúde, no Hospital Garcia de Orta e nas restantes unidades clínicas onde recebeu cuidados.

Entretanto, a degradação da relação entre genro e sogra, levou a que esta, desesperada, procurasse auxílio junto de terceiros. Encontrou apoio e resposta junto da UMAR, organização que se arrogou da denúncia que está na génese dos autos. Admitiu que nunca viu qualquer comportamento abusivo para com a sua neta, receando, contudo, que algo possa ocorrer quando aquela fica a sós com o pai.

No final deste depoimento a Sra. V…referiu que o M…nunca a agrediu, mas que no passado, em circunstâncias não apuradas, lhe havia dirigido ameaças.

Recolheram-se os testemunhos de:

1. I…, Enfermeira na UCCI LAHGO, no depoimento de fls. 79, que aqui sumariamos, e que disse que nunca viu, por parte do denunciado, qualquer ato ou comportamento agressivo, menos próprio ou abusivo, de natureza sexual, para com a utente, para com a mãe desta, V…, ou para com a M…;

2. A fls. 85, F…, em suma, declarou que após chegar a Portugal, pelo período de um mês e oito dias, foi acolhida, com o seu companheiro, na residência do M…, no Casal do Marco, onde também habitava a S… e a M…; enquanto ali permaneceu não testemunhou ou soube de eventuais conflitos entre o casal e nunca viu o M… a agredir ou a filha;

3. MM, a fls. 88 e ss., declarou, entre outros aspetos, que travou conhecimento com o M… quando este trabalhava no setor da restauração, no Seixal; à data, este ainda não teria a companhia da esposa e da filha, que permaneciam no Brasil; mais tarde, foi o próprio que lhe solicitou que tomasse conta da menor; a S… trabalhava no período noturno, motivo que a levava a deixar a filha sob os seus cuidados, pouco depois das 17H00.

Esta, que trabalhava em Lisboa, saia do trabalho pelas 01H00 ou 01H30; era o progenitor que após a sua atividade laboral, depois das 22H00, se dirigia à habitação da depoente a fim de recolher a menor; foi neste contexto que conviveu com os elementos desta família, tendo cuidado da menor, por pouco mais de um ano nunca testemunhou qualquer ato agressivo, físico ou verbal, por parte do M… para com a S… ou para com a sogra; também nunca o viu a agredir a M…; por sua vez a menina criança pouco ou nada dizia sobre o que vivenciava em casa, na companhia dos progenitores; a M… nunca revelou à ama ou aos seus familiares, que tenha sido objeto de agressões físicas ou abusos de natureza sexual, por parte do pai; relativamente ao período pós acidente disse que visitou a S… com regularidade no período em que esta esteve nos Cuidados Intensivos do HGO, o que chegou a fazer na companhia do M… e nunca viu, no âmbito destas visitas, qualquer comportamento impróprio por parte do M… para com a S….

4. A enfermeira D…, em exercício de funções na UCCI LAHGO, na inquirição de fls. 94, em síntese, declarou que está ao corrente da matéria aqui participada porquanto tal lhe foi sendo transmitido pela V…; referiu que não observou comportamentos abusivos, de índole sexual, física ou verbal, por parte de denunciado, para com nenhuma das ofendidas; nunca viu ou soube de qualquer prática sexual por parte do M…, nas instalações da UCCI; nunca detetou, no corpo da S… ou na roupa da cama, qualquer indício de tais práticas; recordou que o M… tratava a companheira com carinho e afeto, quando se despedia dava-lhe um beijo no rosto.

5. V…, reinquirida a fls. 104 a 109, clarificou que não falava com o genro, quando ainda se encontravam no Brasil, (…) Mais declarou a ofendida que nunca testemunhou qualquer comportamento abusivo, de natureza sexual, por parte do M… para com a própria filha e esta também nunca lhe relatou qualquer abuso sexual por parte do pai;

7. Em complemento da prova testemunhal reunida nos autos, estabeleceram-se conversações informais com alguns dos vizinhos do arguido, residentes no mesmo imóvel, na ---------------, no Casal do Marco, cujo resultado consta, em detalhe, no Auto de Diligência de fls. 145. As pessoas abordadas e que mostraram disponibilidade para falar com esta Polícia, mostraram desconhecer, em concreto, o ambiente doméstico do casal em causa.

Não relataram conflitos ou outros eventos conotados com o crime de Violência Doméstica.

(...) O arguido, no dia 24/01/2020, junto da PSP-Esquadra do Seixal, participou o desaparecimento da filha, M…. Nas informações vertidas na Ficha de Avaliação de Risco elaborada pelo aludido OPC, a fls. 124, consta a indicação de que o próprio prestou, de que a avó da menor lhe comunicara que se iria vingar, em virtude de o culpabilizar pelo acidente que a filha sofreu, bem como por trazê-la do Brasil para Portugal (consultar cópia da “Participação” e expediente de fls. (…) 116 a 131).

Na verdade, analisada criticamente toda a prova recolhida, temos que nenhuma das testemunhas corroborou as suspeitas/imputações de que o arguido maltratasse física e psicologicamente a companheira. Nem mesmo os vizinhos, residentes no mesmo imóvel, ou os amigos que lá residiram com eles, ou aquelas pessoas que com eles conviviam muito próximo como a própria ama da filha do casal. Apenas se pode aceitar que existiriam suspeitas de que o arguido tivesse relacionamentos amorosos paralelos, mas tal não é passível de responsabilização criminal.

Até, como supra de sumariou, nunca ninguém se apercebeu de nada que pudesse ser suspeito da prática de crime de violência doméstica, sendo certo que nos nossos dias a população em geral já está muito desperta para tal flagelo, pelo que seria simples de fazer suscitar o alarme.

Mesmo depois do acidente, os enfermeiros foram convictos em negar alguma vez ter presenciado o arguido a ser incorrecto para a companheira. Pelo contrário, mostrava-se preocupado, atencioso, carinhoso no modo como se despedia e buscava para ela os melhores cuidados (pese embora nem sempre pelas melhores vias ou meios). E foi na busca desses melhores cuidados que surgiram as fotos controversas.

Também aqui, os elementos probatórios recolhidos apontam para uma total falta de intenção de enxovalhar, humilhar ou abusar da condição da companheira. A intenção clara e única, reconhecida por todos, era a de tentar comprovar que a companheira não estava a ser cuidada como deveria. E foi sempre com essa intenção com que as fotos foram apresentadas e foi sempre e só com esse desígnio que a sua utilização foi mencionada. Repare-se no pormenor de que a vulva da companheira não está visível nas fotos, por ter sido propositadamente protegida/ocultada da câmara. A intenção não era documentar os genitais, era comprovar que a fralda não estava limpa e aqui reside uma diferença enorme que não pode ser escamoteada e interpretada de forma perversa.

Ora, se esta é a intenção e se os indícios apontam todos neste sentido, então, também por aqui não se recolhem elementos probatórios que apontem para o cometimento de crime.

Assim, concatenando todos os elementos probatórios recolhidos e extraindo deles o seu verdadeiro significado, temos que concluir não terem sido recolhidos indícios suficientes que sustentem a imputação do crime de violência doméstica ao arguido.

Resultava também da denuncia suspeitas de que a menor M…pudesse ter sido alvo de abusos sexuais por parte do pai, ao aqui arguido. Não eram esses abusos concretizados, apenas se referindo que, certo dia, a menina teria vestígios de sangue nas cuecas, tendo a avó sido alertada pelas Educadoras que a seguiam na Escola.

Também aqui, e desde logo, tais dúvidas se dissiparam, com todos os intervenientes - e a própria avó! - a referir não acreditar que tal tivesse ocorrido, podendo tal corrimento ser proveniente de infecção.

Todos os intervenientes negaram ter conhecimento, ter presenciado, ter escutado, ter algum dia suspeitado que tal pudesse ter acontecido, não se tendo recolhido qualquer indicio probatório da ocorrência de tais factos.

A M…negou que alguma vez o pai a tivesse sujeitado a alguma prática sexual.

Assim, não foram recolhidos indícios que imputem algum tipo de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da menor.

 

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Fundamentação de Direito

Com lucidez, o Tribunal a quo assinala que este processo assenta essencialmente em duas versões:

                        - “de um lado a versão apresentada por V…, que imputa vários factos com relevância criminal ao companheiro da filha e pai da neta e toda a sua movimentação para afastar a neta e a filha do mesmo, levando-os de volta para o Brasil;

                              - do outro lado” o pai da menor, “elemento surpreendido pela atuação da denunciante, pessoa a quem pagou a viagem para que o viesse auxiliar num momento difícil e que agora se vê privado não só da companheira, como também da filha, para além de lhe atribuírem a prática de vários crimes de gravidade considerável e estigma social relevante”.

 

A decisão sob recurso assentou no seguinte processo de raciocínio:

1. Da ilegal atuação da avó e da falência do sistema de proteção de menores que não foi devidamente (ou sequer) acionado e da falta de supervisão e acompanhamento do funcionamento do sistema de proteção de menores

I - A avó V…levou a menor M…de casa do pai, sem qualquer aviso ou decisão judicial ou suporte jurídico e, alegando factos de elevada gravidade, sem qualquer evidência factual, além das suas palavras, levou a que o Tribunal – cautelarmente – desse guarida e proteção jurisdicional à sua actuação.

II - Mesmo uma decisão da CPCJ, sem o consentimento de quem tem a guarda, que nem precisa de levar à retirada de um filho aos pais (mas se tal acontecer, por maioria de razão) tem de ser confirmada pelo Tribunal em 48 horas.

III - Nos termos do art. 92, n. 1 da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro (Procedimentos judiciais urgentes): O tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas as situações referidas no artigo anterior, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35.º ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.

IV - A avó, se tinha conhecimento de alguma situação que colocasse a menor em perigo deveria ter denunciado tais situações à CPCJ, à polícia, à SS, ao Tribunal, ao MP e, se a polícia ou a CPCJ entendessem que era de retirar de imediato a criança, o MP vinha a Tribunal pedir para em 48 horas tal decisão ser confirmada.

V - A avó desapareceu com a criança que estava legalmente a cargo apenas do pai (por inequívoca incapacidade da mãe) e a criança, a M…, na prática, com a ilegal e não justificada atuação da avó materna, ficou meses sem qualquer contato com o pai, sendo que este nos primeiros dias nem fazia ideia onde estava a menor nem o que lhe tinha acontecido, o que, num Estado de Direito, é inconcebível.

VI - Não é aceitável que se crie uma situação de facto consumado e assim se solicite a intervenção do Tribunal o qual, perante as graves imputações que a avó fazia ao pai, e perante a ausência de funcionamento de todo o sistema de proteção de crianças, que não foi acionado devidamente, se viu forçado a atuar cautelarmente, com extrema prudência, arriscando colocar em causa, como aconteceu, os vínculos próprios da filiação, sendo que tudo nasce de atuação ilegal da avó, violando frontalmente o regime de guarda, residência e responsabilidades parentais, violando princípios e direitos constitucionalmente garantidos e que estão na base de um Estado de Direito desenvolvido, e, em concreto, o art. 36, n. 6 da Constituição;

VII - Um caso como este tem de ser revisto e analisado, pois, à partida, o que aconteceu não podia ter acontecido e algo falhou ou não funcionou;

VIII - A criança M… tem neste momento apenas dois cuidadores possíveis em meio natural de vida: o pai ou a avó materna.

IX - A actuação da avó materna foi ilegal e a mesma tem verbalizado que a sua vontade é levar a menor e a filha S… para o Brasil, já o tendo tentado fazer;

X – Enquanto consigo, a avó afastou a menor do pai não cuidando sequer que o pai soubesse pormenores mínimos do dia-a-dia da filha.

XI – Dos dados constantes dos autos, nada justifica que a menor tenha sido retirada ao pai: a escola considerava o pai presente e interessado, as técnicas da SS e do CAFAP testemunharam o seu empenho em manter os laços filiais com a filha, e, não obstante todos os obstáculos judiciais que lhe foram colocados para cautelarmente se proteger a menor de supostos perigos constantemente agitados pela avó, conseguiu manter uma enorme resiliência, paciência, serenidade que poucos conseguiriam ter, mesmo sendo vítima de algo que consideraria uma grande injustiça, o pai colaborou com o processo e com as instituições, que intervieram, o pai foi quem sempre veio aos autos manifestar preocupação pela menor (sendo muito sintomático que a menor tenha desabafado com o pai a falta dos seus brinquedos e que tenha sido o pai que ativa e proativamente tudo tenha feito para que fizessem chegar à menor, ao fim de meses de retirada da casa, as coisas dela e as roupas para ao Verão).

- O foco do pai foi sempre o bem-estar e desenvolvimento da filha nas suas intervenções, contrastando com a avó (que não manifestou qualquer preocupação pelos brinquedos da neta) e que foca regularmente o seu discurso no pai, na atuação do pai, nos perigos presentes e futuros do pai.

- Dos autos resulta que mesmo neste contexto difícil e de animosidade por parte da Avó, o pai tem demonstrado conseguir lidar com a situação e demonstrado competências parentais.

- Foi o pai quem, pensando essencialmente na menor, que, apesar de não ter tido boas experiências no passado com a avó, tomou a iniciativa de contactar a família materna, pedir ajuda, endividar-se para pagar o voo da avó e para a acolher em sua casa e para a sustentar.

- E esta atuação do pai veio a ser correspondida pela avó com denúncias de factos socialmente muito condenáveis e censuráveis, denúncias que só surgem ao fim de muitos meses de convivência e com uma atuação ilegal e abrupta de retirada da filha ao pai, privando de forma irremediável e não reparável a M… do convívio com o pai com quem sempre tinha vivido por mais de um ano e meio

- Por inexistir qualquer fundamento que justifique a manutenção da menor junto da avó, sendo que a menor foi para junto da avó por atuação ilegal por parte da mesma, e manteve-se por causa de alegações da avó que todos os elementos recolhidos nestes autos e nos de inquérito não confirmam minimamente, deverá a menor M…ser de imediato entregue ao pai.

*

Compreendendo-se embora as considerações feitas pelo Tribunal a quo quanto ao sistema de protecção de menores ter ou não funcionado correctamente nos presentes autos, nesta sede caber-nos-á - no essencial – verificar a correcção do regime provisório fixado.

 

Como ponto de partida, a Constituição da República Portuguesa define o enquadramento essencial:

            - no artigo 69.º n.ºs 1 e 2, quando afirma que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, em particular contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições, cabendo ao Estado, em especial, assegurar proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal;

            - no artigo 36.º, n.ºs 5 e 6 quando estipula que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e não podem destes ser separados, salvo quando não cumpram os deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.

Sempre convocada para a apreciação deste tipo de matérias (até por ter um estatuto supra-legal), a Convenção Sobre os Direitos da Criança[2] impõe que os Estados tomem medidas de protecção das crianças contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, quer se encontrem sob a guarda dos pais ou de qualquer outra pessoa a quem tenham sido confiadas (artigo 19.º, n.º 1), admitindo que as crianças apenas sejam separadas de seus pais se essa separação se mostrar necessária “no interesse superior da criança” (como, por exemplo, no caso de os “pais maltratarem ou negligenciarem a criança” - artigo 9.º, n.º 1).

 

Por outro lado, os artigos 1877.º e 1878.º do Código Civil assumem que incumbe aos pais, no interesse dos filhos, velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação até à respetiva maioridade ou emancipação.

E é o mesmo Código que no artigo 1918.º prevê que quando “a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontre em perigo e não seja caso de inibição do exercício das responsabilidades parentais das responsabilidades parentais, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 1915.º, decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência”[3].

A Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo-LPCJP (Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro), que tem como “objeto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem estar e desenvolvimento integral” (artigo 1.º), indica na alínea d) do n.º 2) – como exemplo – que se considera que a criança está em perigo quando “está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectam gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional”.

As medidas de promoção e protecção das crianças e jovens – sublinhe-se – têm como escopo o afastamento do perigo em que elas se encontram e o proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral (artigos 34.º, alíneas a) e b), da LPCJP), devendo a intervenção e aplicação de qualquer medida obedecer:

                        - aos princípios enumerados no artigo 4.º desta Lei (nomeadamente e desde logo, como decorre da sua alínea a), o do interesse superior da criança: “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”);

                        - aos princípios da proporcionalidade e actualidade[4], da responsabilidade parental[5], da prevalência da família[6] e da continuidade das relações psicológicas profundas[7] (ou seja, a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante).

Partindo deste quadro (em que Constituição, Convenção dos Direitos da Criança, Código Civil e Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo criam um sistema que permite adaptar as necessidades de protecção do superior interesse da criança aos concretos perigos que sobre esta incidam), a situação patente nos autos, revela-se algo inusitada, sem prejuízo de ter seguido trâmites judiciais que foram garantindo a legalidade do processo e das intervenções ocorridas.

Assim, perante um momento inicial em que – efectivamente – a Recorrente V… assumiu uma conduta que tem de se considerar estar à margem da lei por ter actuado numa postura de “quero, posso e mando”, desaparecendo com a criança e retirando-a ao pai (a partir de 23/01/2020), sem intervenção de qualquer das entidades que o poderia fazer, o certo é que essa conduta foi ratificada e chancelada pelo Tribunal, logo de seguida, em face da opção do Ministério Público de intentar a presente acção de regulação das responsabilidades parentais (a 04/02/2020), propondo um regime provisório (que colocava a M… a cargo e aos cuidados da avó, conferindo-lhe a sua representação  nas questões de particular importância e nas decisões correntes do seu dia a dia), sendo que, a 18/03/2020, se fixou um regime provisório que permitia um encontro semanal presencial pai-filha, supervisionado, e contactos telefónicos.

Compreende-se e justificava-se – face ao que estava alegado - a precaução, a cautela e a necessidade de protecção da M… perante esses riscos, motivos justificadores de uma situação excepcional que estava a ser vivida, numa envolvência de perigo subjacente à sua proximidade junto do pai (a ser verdade o imputado).

Naquela situação, o resultado final a ser obtido, haveria sempre de ser o de criar para a M… um espaço de protecção.

Isso foi feito e foi logrado, pelo que, nesse aspecto, não pode dizer-se que o sistema tenha falhado.

O problema é que o risco que se pretende proteger tem um outro lado e uma outra consequência, que passa por assumir outro risco: o de não ser verdade o que estava a ser aventado e de o tal perigo ser inexistente.

O risco deste tipo de actuação é assumido pelo sistema e tem de ser comportável, por ser a única forma de, no respeito pelas regras do contraditório e das consequências nefastas que qualquer decisão neste âmbito assume, garantir que risco pior se não concretize.

E o risco pior é sempre o de expor a criança a uma situação de violência.

Mas o outro risco está sempre presente e é precisamente o que se veio a concretizar, ou seja, o de as imputações não serem consistentes e as medidas tomadas - ex post - se terem revelado excessivas e desnecessárias[8].

Se o fossem tudo teria corrido “bem”.

Não o sendo, a normalidade possível teria de ser rapidamente restabelecida como, de forma assertiva, o Tribunal a quo de imediato determinou.

A criança tem de ser protegida de quem lhe quer fazer mal, de quem lhe faça mal, e esse fazer mal tanto podem ser condutas como as que eram imputadas ao pai, como as que agora parecem poder ser imputadas à avó (acusar o pai de condutas infamantes para poder ficar com a neta a seu cargo e levá-la consigo para o Brasil).

Mas é fácil dizer isto neste momento.

No ponto inicial do processo, com os dados que existiam, o resultado dificilmente poderia ser distinto.

A situação decretada inicialmente é claramente excepcional e só motivos excepcionais a justificavam.

Desaparecendo os motivos excepcionais, tem de desaparecer a medida excepcional.

Os acima referidos princípios da proporcionalidade e actualidade, da responsabilidade parental, da prevalência da família, e da continuidade das relações psicológicas profundas, têm aqui – também – plena aplicação: o regime provisório determinado deixou de ser proporcionado, deixou de ter actualidade, deixou de respeitar o conceito de parentalidade e de vinculação ao progenitor, deixou de garantir o essencial da continuidade de relações psicológicas profundas (com o pai). 

O arquivamento do processo crime onde constavam as imputações ao pai (independentemente de ter sido requerida a abertura de instrução), retira premência aos perigos que estavam subjacentes e remete para a subsistência do que tem de ser… normal: que um/a filho/a esteja com (e a cargo de) um/a progenitor, sob a sua responsabilidade parental.

De facto, a prova recolhida, apreciada e ponderada pelo Ministério Público justificou a prolação de um fundamentado Despacho de Arquivamento, que concluiu pela sua inconsistência.

Mas o arquivamento, só por si, até poderia não ser decisivo para o destino dos presentes autos, se outros dados, indícios, provas, elementos de apreciação recolhidos, permitissem concluir, ou de forma distinta, ou no sentido da existência de perigos para a vivência parental da M…com o pai.

E não é assim, bem pelo contrário, pois todas as indicações da escola (pai presente e interessado), pelas técnicas da Segurança Social e do CAFAP (que confirmam o empenho do pai em manter os laços filiais com a filha, mesmo perante os obstáculos que este processo lhe colocou, sempre preocupado com o desenvolvimento e bem-estar da M…), da própria interacção que – a sós – pai e filha foram tendo.

 

Aliás, o Tribunal a quo assinala, com acerto, que tudo isto ocorreu mesmo perante uma situação de “enorme animosidade da avó para com o pai e clima que é criado à volta do pai”, sendo “surpreendente tudo o que as técnicas da SS e do CAFAP relatam relativamente ao decurso das visitas e interação com o pai, sendo notório que o pai tem enorme jeito e competências parentais para, num quadro tão adverso, lidar com a situação de supostos perigos constantemente agitados”, conseguindo “manter uma enorme resiliência, paciência, serenidade que poucos conseguiriam ter, mesmo sendo vítima de algo que consideraria uma grande injustiça”, e colaborando sempre “com o processo e com as instituições que intervieram, o pai foi quem sempre veio aos autos manifestar preocupação pela menor, sendo muito sintomático que a menor tenha desabafado com o pai a falta dos seus brinquedos e que tenha sido o pai que ativa e proativamente tudo tenha feito para que fizessem chegar à menor, ao fim de meses de retirada da casa, as coisas dela e as roupas para ao verão”.

 

Neste ponto, sublinha-se que a Requerida parece usar um raciocínio invertido, não só pretendendo brandir a Convenção de Istambul (como se esta fosse uma arma de arremesso ou um fim em si mesmo e não um instrumento de protecção perante factos comprovados ou indiciados), como procurando defender que é ela que tem melhores condições para ter a menor consigo e não pai (esquecendo que o pai é a primeira linha das responsabilidades parentais e essa primeira linha volta a estar activa, se desaparecerem as razões que - excepcionalmente - a desactivaram).

 

O pai acabou por passar por uma provação que encarou de uma forma louvável, encarando a “injustiça” cometida duma forma positiva e lutando por ultrapassá-la e por voltar a ter consigo a sua filha.

O pai é um homem trabalhador (e os seus horários não são minimamente incompatíveis com – ou obstativos à - a sua parentalidade, ou à vivência da sua parentalidade) e que tem demonstrado ser responsável e preocupado com o bem-estar e desenvolvimento da filha, sendo evidentes as suas competências parentais (que, de facto, nada têm que ver com o arquivamento do processo crime, mas sim com o que tem demonstrado em termos de acompanhamento, preocupação e proactividade), inexistindo motivos prementes, próximos, efectivos e consistentes que apontem para a existência de um qualquer perigo que justifique que a filha não esteja consigo e sob a sua responsabilidade parental (que sempre tem sabido assumir, mesmo quando – com custos por si assumidos – pagou a viagem da avó para Portugal, para que esta o ajudasse a enfrentar a situação decorrente da incapacidade da mãe da M…).

Era bom que a Recorrente assumisse, para felicidade da M…, uma postura distinta e menos vitimizadora desta última (pois o seu comportamento tem prejudicado o seu normal desenvolvimento e originado uma desnecessária desestabilização e um inútil sofrimento[9]), assumindo um papel de auxílio e complemento ao que é necessário para a melhor formação da criança : “ao Direito não interessa a relação ente avós e netos meramente numa ótica e pacificação, de resolução de hipotéticos conflitos entre os pais e os avós do menor. Nesses conflitos e à margem eles, o Direito reconhece, por vezes, aos avós um papel complementar, quando não de substituição, dos progenitores, o que se afigura particularmente patente no campo da adopção e da protecção de crianças e jovens”[10].

A avó poderá gostar muito da neta e a neta da avó, mas a avó, por muito próxima que dela se sinta não é a proprietária da sua vida, disponibilidade ou sentimentos, nem eles são susceptíveis de se sobrepor à parentalidade paterna (da qual nada há de concreto e palpável que seja colocado em causa).

Refira-se ainda, que a Recorrente também assinala um putativo receio de fuga do pai com a filha que não teria sido acautelado pelo Tribunal, mas sem qualquer razão ou fundamento. Mais uma vez a Recorrente inverte as prioridades como se fosse à sua volta que tudo girasse, como se fosse o seu interesse e não o da criança que tivesse de ser protegido: o pai tem a guarda da criança, tem um emprego estável, tem um processo crime arquivado pelo Ministério Público, fugiria de quê e para quê?

Por outro lado, o interesse na continuidade do relacionamento avó-neta foi também devidamente salvaguardado na decisão sob recurso e de forma que temos como adequada.

Tudo ponderado, em face dos dados constantes dos autos, a decisão sob recurso, mostra-se correcta e muito bem fundamentada, sendo mesmo a necessária para repor alguma normalidade à vida, estabilidade e desenvolvimento saudável da criança, cujo interesse superior se mostra, assim, salvaguardo.

Assim saibam progenitor e avó entender-se.

A bem da M….

A decisão, será, evidentemente, confirmada.

 

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

Lisboa, 22 de Março de 2022

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Sousa

 

 

 

José Capacete

·       

 

 

 



[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2] Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/1989, assinada por Portugal em 26/01/1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro.

[3] Sendo que, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo-LPCJP (Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro), estabelece no n.º 1 do seu artigo 3.º, que “A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”.

Por seu turno, o n.º 2, exemplifica com várias situações em que se considera que a criança está em perigo, designadamente quando:

“a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;

b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;

c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;

d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;

e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;

f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;

g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.

h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional”.

[4] “A intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade” – alínea e).

[5] “A intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem” – alínea f).

[6] “Na promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adopção ou outra forma de integração familiar estável” - alínea h).

[7] A “intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante” – alínea g).

[8] Não cabendo aqui elucubrar sobre as formas (ou a necessidade) de responsabilização e ressarcimento de e perante quem tenha “encenado” este drama (sem aspas) vivenciado pela M….

[9] O seu boicote ao regime provisório inicial foi deplorável, impedindo o pai de contactar telefonicamente com a filha.

[10] Jorge Duarte Pinheiro, A relação entre avós e netos, in Estudos de Direito da Família e das Crianças, AAFDL, 2015, páginas 255-282 (282).

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