terça-feira, 10 de maio de 2022

O ónus de provar o que leva à presunção, um skipper que abandona o barco e a barataria nos danos próprios com conduta negligente

 Processo n.º 83/19.0TNLSB.L1

Tribunal a quo

Lisboa - Tribunal Marítimo - Juízo Marítimo - Juiz 2

Recorrente

E., Lda. (Autora)

Recorrida

M. (Ré)


Sumário:
I – A impugnação da matéria de facto em sede de recurso é mais do que uma manifestação de inconformismo inconsequente exigindo, com seriedade, razoabilidade e proporcionalidade, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil:
                                       -  a indicação motivada (sintetizada nas Conclusões) dos concretos factos incorrectamente julgados – n.º 1, alínea a);
                                       - a especificação dos concretos meios probatórios presentes no processo, registados ou gravados (com a indicação das concretas passagens relevantes) – n.º 2, alíneas a) e b) – que imporiam uma decisão diferente quanto a cada um dos factos em causa, propondo uma redacção alternativa – n.º 1, alíneas b) e c).
II – A matéria factual constante de uma Sentença, idealmente, deve estar expurgada de referências aos meios de prova.
III – A presunção de veracidade dos factos constantes de relatório de mar confirmado pela autoridade marítima, estabelecida pelo n.º 7 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 384/1999, de 23 de Setembro (regime jurídico relativo à tripulação do navio) pode ser ilidida em Tribunal pela prova produzida pelas parte.
IV – O segurado tem o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito, sendo que, beneficiando de alguma presunção tem o ónus de provar os factos que a façam funcionar.
V – A presunção de fortuna de mar, que decorre do artigo 605.º do Código Comercial implica para a parte que dela quer beneficiar, a prova de que o risco previsto ou compreendido é a causa da perda, e que este risco está coberto pela apólice.
VI – Se o skipper da embarcação a abandona fora das condições fixadas na apólice, nem chega a ser necessário o recurso à presunção do artigo 605.º do Código Comercial.
VII – Nas situações de cobertura de danos próprios, o conceito de barataria a que alude o artigo 604.º, §1 do Código Comercial abarca quer actos e omissões dolosos, quer actos negligentes, desde que que a apólice o permita.

Relatório
E., Lda. intentou a presente acção de condenação, com processo comum, contra M., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 255.600, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal comercial, desde a data da citação, até efetivo e integral pagamento e ainda estornar o valor de € 474,32.

Em síntese, alega:

                              - ter adquirido, no âmbito da sua actividade de exploração náutica e marítimo- turística, uma embarcação de recreio CATAMARAN, Modelo LIPARI 41 QUATUOR EVOLUTION e respectivo equipamento, celebrando com a Ré um contrato de seguro que a teve como objecto seguro;

               - que essa embarcação naufragou durante uma viagem de Lisboa para Ponta Delgada;

               - que a Ré se recusa a indemnizar os danos, por ter insinuado que o naufrágio se deveu a actos praticados pelo skipper da embarcação;

               - que o Skipper tudo fez para evitar o naufrágio, pelo que a insinuação não corresponde à verdade e deve a Ré ser condenada a pagar o valor da embarcação e respectivos equipamentos, deduzida a franquia de € 2.400.

 

Citada a Ré veio esta Contestar, defendendo a ineptidão da Petição Inicial, aceitando a existência do contrato de seguro, e impugnando os factos alegados no que respeita ao naufrágio (entendendo que a embarcação não afundou tendo sido encontrada à deriva em Marrocos).

Mais defende a Ré que:

            - o alagamento da embarcação, tal como relatado pelo skipper, impunha que houvesse uma entrada de água muito acentuada na embarcação, o que apenas seria possível com um rombo de dimensão razoável, pelo que o skipper deveria ter sentido um forte embate, o que este nega;

               - o alagamento da embarcação teve por causa intervenção humana intencional com tal fim, nomeadamente, a abertura das válvulas do circuito de água do casco de estibordo e o desenroscar do bujão do canhão do fundo do casco de bombordo, pelo que tal exclui a possibilidade de indemnização pela seguradora;

               - a actuação do skipper sempre deveria ser considerada como barataria, pois permaneceu na embarcação durante cerca de três horas, sem nada fazer para impedir o alagamento (nomeadamente, accionando a bomba manual para escoamento da água ou tapando o rombo existente, ou fechando as válvulas);

               - o contrato de seguro se encontra endossado a favor do Banco…, SA., pelo que apenas com autorização deste, poderia a indemnização ser paga.

 

Realizada Audiência Prévia, nela:

                        - a Autora desistiu do pedido de estorno;

                        - foi proferido Despacho Saneador, fixando-se o objecto do litígio e os temas de prova.

 

Realizada a Audiência de Julgamento foi prolatada Sentença, que concluiu por julgar a acção improcedente e, consequentemente, absolver a Ré M.  do pedido formulado pela Autora, E., Lda..

 

É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Requerida, a qual apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:

I- Não deve ser dado como provado o facto 57 da forma como está redigido:

“A embarcação segura foi avistada pela aeronave da FAP P-3C Orion, na posição geográfica 38º08’N-011º33W e permanecia à tona da água, com derrabamento, sem adornamento, estável, à deriva, navegando ao sabor do vento e das correntes”.

II- Do documento n.º 16, junto com a P.I. o que resulta é que a embarcação foi avistada no dia 22 de Outubro de 2018, ou seja um dia depois do acidente.

III- Pelo que o que deveria ter ficado provado neste facto era o seguinte:

“A embarcação segura foi avistada no dia 22 de Outubro de 2018, pela aeronave da FAP P-3C Orion, na posição geográfica 38º08’N-011º33W e permanecia à tona da água, com derrabamento, sem adornamento, estável, à deriva, navegando ao sabor do vento e das correntes.”

IV- O facto n.º 58 não deve, igualmente, ser dado como provado da forma que o foi:

“A Autora não comunicou à Ré os factos referidos em 57, nunca remeteu ou deu conhecimento à Ré dos relatórios da FAP que lhe foram notificados, nem encetou qualquer iniciativa junto das autoridades oficiais”.

V- O que resulta do depoimento da testemunha JM é, apenas, que a A. nunca remeteu ou deu conhecimento à Ré dos relatórios da FAP que lhe foram notificados.

VI- O e-mail que o douto Tribunal refere na sua motivação, apenas se refere ao aparecimento da embarcação em Marrocos, nada referindo sobre os documentos emitidos pela Força Aérea Portuguesa.

VII- Pelo que, apenas se deverá dar como provado o seguinte: “A Autora não comunicou à Ré os factos referidos em 57, nunca remeteu ou deu conhecimento à Ré dos relatórios da FAP que lhe foram notificados.”

VIII- Resulta provado no facto n.º 63: “No relatório referido em 62., os peritos da N…Portugal concluíram que o alagamento teve necessariamente de se iniciar a partir de ambos os flutuadores abaixo da linha de água e tal situação apenas poderia ter ocorrido, na opinião dos peritos, através de rombo em ambos os flutuadores ou através dos sistemas de válvulas de fundo”.

IX- Ora tal facto jamais pode ser dado como provado.

X- Nem do Relatório da Navaltik, de fls. 165 a 278 nem do depoimento da testemunha JM resulta que tinha de existir um rombo em ambos os flutuadores.

XI- Do Relatório da N…  consta o seguinte: “Para o alagamento observado, em nossa opinião, apenas existem duas hipóteses de causa: Ou por via de rombo nos flutuadores ou através do sistema de válvulas de fundo.

XI- Jamais resultando daquele relatório que o alagamento apenas se pudesse iniciar a partir de ambos os flutuadores.

XII- No parágrafo imediatamente anterior daquela conclusão pode-se ler: “Os detalhes construtivos da embarcação fornecidos pelo fabricante Fountaine Pajot, em termos de compartimentação e anteparas estanques, não são muito elucidativos em termos de estanquicidade dos vários espaços que a embarcação possuiu, pelo que uma condição de alagamento quase total de um dos flutuadores depende das anteparas estanques existentes no flutuador e apenas se poderá propagar ao outro flutuador caso não exista estanquicidade no raft (estrutura central que liga os dois flutuadores)”.

XIII- O que a testemunha JM refere no seu depoimento, aliás coincidente com o seu relatório, ao minuto 01:00:07 é que: “Algures não…teria que ser no casco de bombordo a meio que era onde o Skipper dizia que estava a entrar água”.

XIV- Em momento algum, resulta do citado Relatório ou do depoimento da testemunha JM, que o alagamento teve necessariamente de se iniciar a partir de ambos os flutuadores através de rombo também em ambos os flutuadores.

XV- Pelo que este facto tem, necessariamente, de ser dado como não provado.

XVI- Resulta provado do facto 64: “Os paneiros existentes na zona das escadas do salão para o casco de bombordo assentam por volta de 50 cm acima do fundo”.

XVII- Tal facto deverá ser dado como não provado.

XVIII- Já que, o que ficou provado pelos depoimentos do Senhor Perito da Capitania do Porto de Lisboa, JS, foi a de que a distância dos paneiros era de 20 a 30 cm.

XIX- É manifestamente incompreensível, a não ser para a conclusão que o Douto Tribunal “a quo”, de uma forma parcial, chegou, que este Douto Tribunal fundamente um facto que entendeu provado com base num depoimento que não confirma tal facto e num depoimento que nem se refere a esta matéria.

XX- Encontra-se provado no facto 68 o seguinte: “Considerando o excessivo caudal de alagamento, que nem a utilização pelo skipper das bombas submersíveis eléctricas conseguiu conter, o rombo teria de ter uma superfície igual ou superior à área de um círculo de 3 cm de diâmetro.”

XXI- Tal facto deveria ter sido dado como não provado.

XXII- Na verdade o documento mencionado na fundamentação não constitui qualquer método reconhecido para cálculo de predição de alagamento de embarcações.

XXIII- Trata-se de uma comunicação à comunidade científica, que tem como base dois navios de características diferentes que nada têm a ver com a embarcação objecto dos presentes autos.

XXIV- Tal comunicação destinou-se a navios de maior porte do que a embarcação dos autos, calculadas em toneladas por segundo e grandes rombos em que se admitem aproximações com erros percentuais aceitáveis em cálculos de previsão e em assuntos em investigação.

XXV- Em rombos de 3,5 ou 4,5 de diâmetro de forma qualquer pequeno erro introduzido pelo cálculo tem influência catastrófica no resultado. Não serve, por isso, para fundamentar um processo de alagamento como é o caso dos autos.

XXVI- Daqui decorre que o método apresentado na aludida Comunicação não constitui, como se refere na motivação do douto Tribunal “a quo” “um dos métodos reconhecidos para o cálculo de predição de alagamento das embarcações” constituindo, isso sim, e como acima se referiu, uma comunicação efectuada por três investigadores à “11ª Conferência Internacional sobre a estabilidade dos navios e veículos oceânicos de Setembro de 2012”.

XXVII- No facto 73 é dado como provado o seguinte: “Na sequência do pedido de informação que a Ré dirigiu ao Capitão do Porto de Lisboa, veio este, em 14 de Janeiro de 2019, remeter à mandatária da Ré cópia do ofício n.º 1480, de 18.12.2018, e documentação ao mesmo anexa, que a DGAM tinha enviado à Autora.

XXVIII- Todavia, o que deverá ser dado como provado como resulta do documento n.º 1, junto com a contestação é o seguinte: “Na sequência do pedido de informação que a Ré dirigiu ao Capitão do Porto de Lisboa, por email datado de 11 de Janeiro de 2019 pelas 7H39M39S veio este, em 14 de Janeiro de 2019, remeter à mandatária da Ré cópia do ofício n.º 1480, de 18.12.2018, e documentação ao mesmo anexa, que a DGAM tinha enviado à Autora.”

XXIX- Resulta provado no facto 76: “No dia 07 de Fevereiro de 2019, pelas 08:30 horas (hora local), no porto militar de Casablanca, sob a supervisão do Coronel M…, da Brigada Marítima (Gendarmerie Royale), foi realizada a peritagem à embarcação em seco por parte do perito nomeado pelo Capitão do Porto de Lisboa, na presença do agente instrutor do processo de inquérito, e pelo perito nomeado pela Ré.”

XXX- Tal facto não deveria ter sido provado da forma que o foi.

XXXI- Ora não se percebe como pode o douto Tribunal dar como provado da forma como o deu, concretamente no que se refere à supervisão do coronel M… da Brigada (Gendarmerie Royale).

XXXII- Na realidade o douto Tribunal limita-se a reproduzir o artigo 84º da Contestação da Ré, o qual, aliás, nem se faz acompanhar por qualquer documento que comprove o ali alegado.

XXXIII- Todavia em nenhum dos depoimentos quer das testemunhas AMM, quer de JP e JM resulta quer a vistoria tenha sido supervisionada e, muito menos por um coronel M, da Brigada Marítima, (Gendarmerie Royale).

XXXIV- Deste modo o que deveria ter ficado provado era o seguinte facto:

“No dia 07 de Fevereiro de 2019, pelas 08:30 horas (hora local), no porto militar de Casablanca, foi realizada a peritagem à embarcação em seco por parte do perito nomeado pelo Capitão do Porto de Lisboa, na presença do agente instrutor do processo de inquérito, e pelo perito nomeado pela Ré.”

XXXV- No ponto 77 está provado o seguinte: “A embarcação mantinha a estrutura dos cascos e do túnel que os liga”.

XXXVI- Todavia e como resulta quer do Relatório elaborado pela testemunha AMM e do seu depoimento o que deveria ter sido provado era o seguinte: “A embarcação mantinha a estrutura dos cascos e do túnel que os liga, com excepção das popas dos dois cascos, desaparecidas a partir das anteparas de vante dos compartimentos dos motores.”

XXXVII- Do ponto 79 resulta provado que: “No interior do casco de bombordo, por ante-a-ré da antepara dos piques, o perito constatou que o canhão de fundo para aspiração de água do mar estava aberto para o mar, proporcionando uma entrada livre e franca de água do mar para o interior daquele casco”.

XXXVIII- Mais uma vez, o douto Tribunal faz, a reprodução do artigo 91º da Contestação apresentada pela R e que, na sua parte final, mais não é, do que uma conclusão tirada por aquela mesma Ré.

XXXIX- Conforme decorre do relatório pericial elaborado pela Testemunha AM, junto de fls. 122 a 292, mormente na sua página 24, e transcreve-se: “A peritagem foi efectuada pelo signatário na manhã do dia 7 p.p. na Base Naval de Casablanca, com a embarcação em seco”.

XL- Pelas próprias fotografias que se encontram a fls. 25 a 39 do aludido relatório pericial, constata-se que a embarcação estava a seco e não em água.

XLI- Não pode a aludida testemunha ter constatado qualquer entrada livre e franca de água do mar para o interior daquele casco, constituindo, como acima se referiu de uma conclusão tirada por esta testemunha.

XLII- Deste modo o que deveria ter sido dado como provado era apenas o seguinte: “No interior do casco de bombordo, por ante-a-ré da antepara dos piques, o perito constatou que o canhão de fundo para aspiração de água do mar estava aberto”.

XLIII- Encontra-se provado no facto 86: “Os piques das proas encontravam-se estanques e os espaços suprajacentes tinham os seus pavimentos incólumes, garantindo a estanquicidade dos piques”.

XLIV- Pese embora o ora Recorrente nada tenha a apontar ao facto provado, entende, todavia, que a motivação do douto Tribunal “quo” dá origem a interpretações incorrectas e inverdadeiras, que serviram o propósito da Sentença ora em crise, dado que a motivação nada tem a ver com o facto provado.

XLV- Por outro lado a motivação extravasa o próprio facto e até está incorrecta, quando refere que a ligação dos cascos à popa, que nunca foi vista na vistoria realizadas pelas testemunhas AMM e JM, era apenas de passagem de fios e tubos, sendo de pequena dimensão, o que é contrariado pela testemunha PF, conforme decorre do seu depoimento acima transcrito.

XLVI- Do facto 89 resulta provado o seguinte: “A maioria da reserva de flutuabilidade, no valor de 7,6 m3, encontra-se no túnel de união os dois cascos a que acresce o somatório dos pequenos piques estanques das proas de ambos os cascos.”

XLVII- Tal facto não deveria ter sido provado da forma como o foi.

XLVIII- Na verdade, e tendo em conta a própria motivação do douto Tribunal o que deveria ter ficado provado era o seguinte: “A maioria da reserva de flutuabilidade, no valor de 7,6 m3, encontra-se no túnel de união os dois cascos à proa da embarcação a que acresce o somatório dos pequenos piques estanques das proas de ambos os cascos.”

XLVIX- Isto porque como resulta da própria fundamentação este não era a única ligação entre cascos.

L- Na sua motivação, o douto Tribunal “a quo” volta a invocar que o túnel de ligação entre cascos existente à popa da embarcação era de pequena dimensão, quando, na verdade, tal túnel nunca foi visto pelas testemunhas AMM e JM. E no que respeita à testemunha PS, como acima se demonstrou, a mesma, afirmou exactamente o contrário.

LI- Resulta provado do facto 90 o seguinte: “O túnel de união dos dois cascos não alagou”.

LII- Também este facto não deveria ter sido dado como provado como o foi.

LIII- Como resulta da própria fundamentação este não era a única ligação entre cascos.

LIV- Deste modo e pelas razões expostas em XLVIX e L, o que deveria ter ficado provado era o seguinte: “O túnel de união dos dois cascos à proa da embarcação não alagou”.

LV- Do facto 91 resulta provado que: “A embarcação não adornou concluindo o perito que tal aconteceu porque o alagamento e ambos os cascos se produziu de forma independente e quase simultânea em cada um deles”.

LVI- Não se trata de qualquer facto mas de uma conclusão do perito e testemunha AMM.

LVII- Todavia tal conclusão não pode proceder.

LVIII- No seu relatório do 2019.02.28, elaborado pela testemunha AMM, no Capitulo VIII que denomina do “Análise situação factual de a embarcação não se ter afundado” procede a cálculos que claramente indica que “Tiveram estes cálculos aproximados apenas como objetivo a do facilitar a compreensão do fenómeno da manutenção da flutuação”.

LVIX- Nestes cálculos “aproximados” e efetuados “apenas como objetivo o de facilitar a compreensão do fenómeno da manutenção da flutuação” o que nos é mostrado é o Principio de Arquimedes.

LX-Demonstrando única e simplesmente” que a embarcação, após alagamento, se manteve com flutuação, ou seja, não submergiu completamente e não foi para o fundo do mar, conforme nos comprovam os 8,3 m3 encontrados para a chamada “Reserva de Flutuabilidade”, ou seja para o volume de água deslocado ou flutuação e os 7,85 m3 do peso da embarcação denominado aqui por “Deslocamento’.

LXI- De acordo com o Princípio citado, a embarcação permanece sem se afundar porque a impulsão é comprovadamente maior que o peso, como aliás já se sabia mesmo sem que tivesse sido facilitada a nossa “compreensão do fenómeno da manutenção da flutuação”.

LXII- Este cálculo é um simples cálculo de flutuação, que nos indica que a embarcação se manteve a flutuar, nada mais permitindo concluir.

LXIII- Nada indica sobre a posição que a embarcação adquiriu água, porque não é um cálculo de estabilidade em avaria de maior complexidade sempre de relevante complexidade com os dados disponíveis e que aqui não foram sequer nomeados.

LXIV- A embarcação estava semi submersa, com as proas dos flutuadores e parte do raft emersos, o que se sabe pelas fotos da Força Aérea.

LXV- Nada permite afirmar, portanto, o que é declarado de seguida no relatório em análise (Fis. 10), que é manifestamente abusivo e que passamos a transcrever “Ficamos assim capazes de afirmar que o Túnel não sofreu alagamento pois, a ter sofrido, a embarcação teria naufragado”

Ou

(...) o alagamento dos cascos se produziu de forma independente em cada um deles”.

LXVI- A embarcação mantém-se direita porque a água embarcada se distribui pelos dois flutuadores através dos chamados túneis que são espaços vazios de comunicação a vante e a ré do raft.

LXVII- Com um flutuador cheio de água e o outro vazio a embarcação virava-se por ação do peso do flutuador cheio continuando semi submersa, mas com uma área de permanência dos ocupantes de acesso e estadia problemáticos.

LXVIII- Tal comportamento está patente em inúmeros sinistros semelhantes de remarcações desta marca que se podem encontrar em notícias divulgadas na internet sem qualquer indicação de serem falsas, tais como dois que escolhemos entre vários disponíveis:

https://www.cruisersforum.com/forums/f48/44-helia-sunk-in-the-atlantic-207264.html

https://www.cruisersforum.com/forums/f48//sinking-cats-17160

LXIX- O depoimento da testemunha RM corrobora o que acima se referiu.

LXX- Deste modo, apenas deveria ter ficado provado o seguinte: “A embarcação não adornou”.

LXXI-Relativamente ao facto provado 93, o que o douto Tribunal deveria ter dado como provadas eram todas as conclusões do Relatório elaborado pelo perito da Capitania do Porto JM a fls. 69 verso a 78, e não apenas parte das mesmas.

LXXII- O que deverá resultar provado e que, aliás, foi corroborado pelo próprio Perito, conforme decorre do seu depoimento supra transcrito, são todas as conclusões constantes do ponto 5 daquele Relatório.

LXXIII- Deste modo deveria ter sido dado como provado neste ponto 93 era o seguinte: “Da Peritagem realizada pelo perito da Capitania do Porto de Lisboa consta, que:

“Decorrente da análise do estado da embarcação durante e após o acidente, dos eventos apresentados no relatório de mar e dos cenários que poderão estar na sua origem, conclui-se o seguinte:

- Existe a possibilidade de terem sido realizados danos na embarcação posteriormente ao acidente, durante o reboque e transporte para seco.

- Na altura do abandono, a embarcação manteve-se a flutuar, com acentuado caimento a ré, não apresentando adornamento significativo a qualquer dos bordos, mostrando que se encontrava alagada de forma proporcional nos dois cascos”;

- A embarcação não afundou, manteve um valor de flutuabilidade positiva, resultante de compartimentos não alagados (ex.: cabine, túnel de ligação entre cascos e pique-tanques)”;

- Não existem evidências de impacto nas obras vivas com objectos a flutuar”;

-O rombo de cerca de 80 mm de diâmetro no costado exterior da proa do casco de EB apenas provocaria a entrada de água para o interior do piquetanque de EB e não para a totalidade do casco (fotografias 3 a 7);

- Os danos observados nas fotografias 36 a 41 poderiam causar a entrada de água em simultâneo nos dois cascos, conforme o descrito na hipótese de cenário no parágrafo 4.4.3”.

- Tendo por base os eventos apresentado no Relatório de Mar em Anexo A e a avaliação do estado actual da embarcação (parágrafo 3) não é possível identificar inequivocamente a causa do acidente.

- A embarcação não reúne condições de segurança e navegabilidade para retomar a actividade a que se destina, em virtude da inexistência de integridade estrutural do casco e da inoperacionalidade dos sistemas de propulsão e governo, dos equipamentos náuticos e de manobra”.

LXXIV- Resulta provado no ponto 96, o seguinte: Do ponto 4.4.1 do seu relatório “Impacto com objecto submerso num casco e posterior alagamento ao outro casco”, correspondente à descrição do evento realizada pelo skipper, o perito da Capitania do Porto de Lisboa concluiu que o alagamento não se podia ter produzido da forma por aquele descrita no relatório de mar, não constituindo o eventual rombo no flutuador de bombordo, com posterior progressão do alagamento através do túnel para o flutuador de estibordo, a causa do evento acrescentando que: “Pelo observado na condição de flutuabilidade da embarcação nas fotografias 44 e 45, existe um acentuado caimento a ré, reduzindo a probabilidade de passagem da água por esta abertura e, consequentemente, o alagamento do casco de EB.”

LXXV- O douto Tribunal a quo, neste facto dado como provado, afirma que o perito concluiu (negrito nosso) no ponto 4.4.1 do seu relatório, que o alagamento não se podia ter produzido da forma por aquele descrita no relatório de mar, não constituindo o eventual rombo no flutuador de bombordo a causa do evento.

LXXVI- Esta conclusão é uma conclusão a que chegou apenas o douto Tribunal “a quo”.

LXXVII- Jamais o perito da Capitania do Porto de Lisboa e testemunha JM concluiu que o alagamento não se podia ter produzido da forma descrita pelo Skipper no relatório de mar, não constituindo o eventual rombo no flutuador de bombordo a causa do evento.

LXXVIII- Nem tal decorre do seu depoimento supra transcrito a propósito deste facto

LXXIX- Pelo que terá este facto de ser dado como não provado que aliás se limita a transcrever “ipsis verbis” os artigos 128º e 129º da contestação apresentada pela R.

LXXX- No ponto 99 encontra-se provado o seguinte: “Durante as três horas em que o skipper esteve na embarcação nem sequer o local de origem da entrada de água conseguiu determinar, não colocou materiais no eventual rombo do flutuador de bombordo para, assim, atrasar e conter o caudal de alagamento e não fechou as válvulas do circuito de água deste casco que se encontravam abertas, a fim de impedir a entrada de água por estes orifícios”.

LXXXI - O único facto que aqui pode ficar provado é que “O Skipper Senhor RM não conseguiu determinar o local de origem da entrada de água”.

LXXXII - Isto mesmo decorre de três documentos distintos que se encontram juntos aos autos, nomeadamente o Relatório de Mar junto com a Petição Inicial como documento nº 14, pelas inquirições daquele mesmo Skipper que constam no relatório da Navaltik a fls. 165 a 278, e das declarações prestadas por aquele mesmo Skipper perante a Polícia Marítima e que constam do relatório a fls. 78-v a 80-v.

LXXXIII - Pelo que terá este facto de ser dado como não provado, uma vez que se limita a reproduzir conclusões retiradas dos artigos 167º a 172º da contestação.

LXXXIV- Como decorre de fls. 2 do documento 24 junto pela A. ora RECORRENTE, corroborado pelos documentos juntos aos autos pela R., com a referência 135451, não contestados por nenhuma das partes, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:

“A embarcação foi encontrada a 1 de Dezembro de 2018 pelas 21H00 pela Unidade da Marinha Real, ao largo do Oceano Atlântico perto da Região de Kenitra com a posição 34º27.2N 007º0.86’W”

”A embarcação “THE XXXX” foi rebocada a 4 de Dezembro de 2018 pelas 20H45 para o porto Militar Casablanca”.

LXXXV- Tendo em conta os depoimentos supra transcritos das Testemunhas JM, AMM e PS entende a ora Recorrente que deve ser dado como provado o seguinte facto porque essencial para a boa decisão da causa: “Na embarcação existia um túnel de ligação entre os dois cascos à popa”.

LXXXVI- Deveria ter sido dado como provado o facto constante da alínea b) dos factos dados como não provados e que é o seguinte:  b) A embarcação “THE XXXX” tinha as inspecções em dia”.

LXXXVII- Mais uma vez denota-se a falta de diligência do douto Tribunal para dar este facto como não provado.

LXXXVIII- Na verdade e como resulta do Livrete da embarcação junto com o requerimento da Capitania do Porto de Lisboa, datado de 18 de Fevereiro de 2020, com a referência 135658, a embarcação foi vistoriada em 31 de Outubro de 2014 cuja validade era 30 de Outubro de 2019.

LXXXIX- Como deveriam, igualmente, ser dados como provados os factos constantes das alíneas c) a m) que mais não são do que a transcrição do Relatório de Mar elaborado pelo Skipper senhor RM.

XC- O Douto Tribunal “a quo” contradiz-se, pois se, por um lado refere, naquela sua motivação, que RM declarou que ouviu um barulho, quando estava a descansar na sala da embarcação e que se dirigiu logo ao flutuador de bombordo encontrando-o já alagado e com os paneiros a flutuar, por outro lado e para justificar a sua motivação faz coincidir o barulho com a entrada de água.

XCI- Nada resulta dos autos, nem tão pouco do depoimento do Senhor RM, acima transcrito, que o barulho coincide com a referida entrada de água. Nem se percebe bem onde o douto Tribunal “a quo” vai buscar tal coincidência.

XCII- Esta premissa errada, efectivamente era a única que poderia credibilizar quer o relatório quer o depoimento da testemunha AM.

XCIII- O que resulta dos autos é que o Skipper nunca conseguiu identificar que tipo de barulho sentiu, sendo que, nas suas várias declarações quer junto da Navaltik, quer junto da Polícia Marítima fala em possível embate.

XCIV-Ora, isto não configura qualquer evento catastrófico.

XCV- Não se entende como o douto Tribunal “a quo” pode dar como não provado o Relatório de Mar e depois fundamentar a sua decisão de absolver a Ré, com factos que constam daquele próprio Relatório de Mar.

XCVI- Desde logo, na alínea c) o douto Tribunal “a quo” considera não provado que o Skipper tenha ouvido o barulho pelas 2 horas da manhã.

XCVII- E dá como não provado igualmente, na alínea d) supra, que aquele mesmo Skipper já tenha encontrado, aquela hora, os paneiros a flutuar.

XCVIII- Se o douto Tribunal “a quo” dá tais factos como não provados, como pode depois entender o seguinte (vide pág. 37 da sentença ora em crise): “…o skipper, ainda que não tenha provocado intencionalmente o alagamento da embarcação, durante cerca de três horas ficou na embarcação sem tentar aumentar os meios de escoamento da água…”.

XCVIX- Estando comprovado documentalmente que o Skipper abandonou a embarcação por volta das 5h da manhã, como se dá como não provado que tenha ouvido o barulho pelas 2h, quando o douto Tribunal a quo funda a sua convicção na exacerbação destas mesmas três horas?

C- Se o douto tribunal a quo entende, ainda que erradamente, como se explicou, que a entrada de água foi massiva e repentina, porque não acredita que os paneiros já estivessem a flutuar?

CI- Tudo isto não só é incompreensível, mas absolutamente contraditório.

CII-O douto Tribunal “a quo” dá como não provados que o Senhor RM tenha colocado as bombas de esgoto a funcionar.

CIII- Por outro lado, dá como provado no ponto 68 da matéria de facto dada como provada que: “que nem a utilização pelo skipper das bombas submersíveis eléctricas conseguiu conter”.

CIV- Por um lado o douto Tribunal “a quo” entende que a embarcação não pode ter adornado para estibordo porque havia alagamento em ambos os cascos, como vem dar agora por não provado que passou também a haver grande quantidade de água a Estibordo?

CV- O Tribunal “a quo”, na sentença ora em crise nem sequer fundamenta a razão pela qual dá como não provadas as alíneas g), h), i) e j)

CVI- E, no que respeita à alínea k) dos factos dados como não provados, a testemunha RM, explicou devidamente ao Tribunal a quo o que entendeu por adornamento, conforme decorre do seu depoimento supra transcrito.

CVII- O depoimento do Skipper senhor RM, supratranscrito, é compatível com o estado em que se encontrava a embarcação.

CVIII- Em momento algum, o Skipper RM falou em flutuadores levantados, falou na dificuldade em subir, o que demonstra o alagamento mais acentuado à popa da embarcação.

CIX- Está provado por documentos, nomeadamente pelo Requerimento apresentado pela Capitania do Porto de Lisboa em 18 de Fevereiro de 2020, com a referência 135658, pelo qual remete o processo de averiguações, concretamente a fls. 23 e seguintes deste mesmo requerimento (Relatório Missão SAR), no ponto METEOROLOGIA (Ponto 3), o vento tinha intensidade de 10 nós e rajadas de 15 nós e ondas de direcção norte de 1,5 a 2,0 metros, o que coincide aliás com o depoimento da testemunha RM supratranscrito a propósito deste facto.

CX- E no que se refere aos factos l) e m), os mesmos encontram-se provados por documento, nomeadamente pelos ANEXOS II-J e II-F que se encontram no relatório apresentado pela R. de folhas 122 a 292 nos autos.

CXI- Deste modo deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:

c) Pelas 02H00, hora local, do dia 21 de Outubro, estando a descansar na sala da embarcação, o identificado senhor RM ouviu um barulho no flutuador de Bombordo.

d) Tendo ido verificar o que se tinha passado o identificado senhor RM, encontrou os paneiros da embarcação a flutuar.

e) De imediato o identificado senhor RM tentou encontrar a entrada de água na embarcação e esgotar a mesma através das duas bombas de fundo.

f) O que não foi conseguido tendo subido o nível da água dentro da embarcação passando a haver, também, grande quantidade de água no flutuador de Estibordo.

g) Entretanto o gerador e o motor de Bombordo pararam.

h) Em face do acima descrito o identificado senhor RM tentou rumar a Sines apenas com o motor de Estibordo para tentar salvar a embarcação.

i) Todavia e em virtude da subida do nível de água na embarcação e tendo em conta o corredor de tráfego marítimo achou não ser prudente, por uma questão de segurança, tomar tal rumo.

j) Voltando, assim, ao rumo 262º à vela e a motor, esperando que o dia nascesse para encontrar uma solução.

k) Cerca das 05H00 da manhã daquele mesmo dia 21 de Outubro, a embarcação adornou de repente e ficou numa posição muito instável.

l) E, verificando não ter condições de segurança para permanecer a bordo da embarcação o identificado senhor RM abandonou a mesma fazendo um alerta DISTRESS pelo rádio VHF principal.

m) Já no interior da balsa salva-vidas pelas 05H15, hora local, o identificado senhor RM acionou a EPIRB que, como é sabido, é um rádio baliza de localização que se usa em situações de emergência e deu o alerta de “Mayday”, sinal para alertar uma situação de emergência, por telefone satélite para o MRCC LISBOA (contactos de busca e salvamento) e para o número da sua mulher 351 917 222 503, com a sua seguinte posição: 38,12N - 011,19W.

CXII- O douto Tribunal “a quo” para fundamentar a sua decisão faz afirmações que, de modo algum, a A. ora RECORRENTE algumas vez alegou.

CXIII- Na página 34 daquela sentença pode ler-se: “A Autora alegou que a embarcação naufragou devido a causa indeterminada que provocou o rápido alagamento da embarcação….”. Ora nunca a A. ora RECORRENTE alegou em qualquer das suas peças processuais o “..rápido alagamento da embarcação…”

CXIV- O que se alega em sede de P.I. é apenas que o Skipper, estava pelas 2H00 da manhã, estando a descansar ouviu um barulho no flutuador de Bombordo.

CXV- E, tendo ido verificar encontrou os paneiros da embarcação a flutuar.

CXVI- Nada destas alegações têm a ver com o rápido alagamento da embarcação.

CXVII- Percebe-se que o douto Tribunal “a quo” pretenda invocar esta alegação nunca proferida pela A. ora RECORRENTE.

CXVIII- Porque só este alagamento rápido, que aliás a douta sentença ora em crise faz coincidir com o barulho ouvido pelo SKIPPER, e que jamais ficou provado, podia permitir ao douto Tribunal “a quo” decidir como decidiu.

CXVIX- Credibilizando o douto Tribunal “a quo” o Relatório e o depoimento da testemunha AMM.

CXX- Relatório esse elaborado no dia 7 de Fevereiro de 2019, a uma embarcação completamente destruída e desventrada, sem popas a que correspondente a cerca de 1/3 da sua estrutura, depois 108 dias após o sinistro, sendo que, durante este período de 108 dias, a mesma embarcação esteve à deriva durante 40 dias, tendo sido rebocada 3 dias após o seu aparecimento para o porto de Casablanca aí permanecendo na Royal Gendarmerie mais 65 dias até ser vistoriada.

CXXI- Não há sequer qualquer registo fotográfico da embarcação à data do seu aparecimento, isto é, em 1 de Dezembro de 2018.

CXXII- E, nesta matéria, há um erro crasso em que o douto Tribunal labora.

CXXIII- Na verdade, o que o estado da embarcação aquando da perícia apenas não pode determinar é a causa do acidente.

CXXIV- E não como é referido na página 39, que o alagamento da embarcação foi provocado intencionalmente pelo “Skipper”.

CXXV- Já que o alagamento é uma decorrência do facto que o determinou.

CXXVI- Não nos podemos esquecer que, como decorre do depoimento da testemunha AMM, a sua “vistoria” apenas teve um propósito: Foi o de arranjar uma causa para o sinistro que excluísse a responsabilidade da R. e não a de apurar a verdadeira causa provável do aludido sinistro.

CXXVII- Algo que o Perito nomeado pela Capitania do Porto de Lisboa, Autoridade imparcial e acima de qualquer suspeita que depois de formular todas as hipóteses possíveis, inclusive as que eram favoráveis à R. concluiu que: Tendo por base a sequência de eventos apresentados no relatório de mar em anexo A e a avaliação do estado actual da embarcação (negrito nosso) (parágrafo 3) não é possível identificar inequivocamente a causa do acidente”.

CXXVIII- O que é que levou o douto Tribunal “a quo” desvalorizar a conclusão constante do o Relatório do senhor Perito da Capitania do Porto de Lisboa? Aproveitando só, nos factos provados, as hipóteses formuladas neste relatório e que são coincidentes com a posição da R.?

CXXIX- O douto Tribunal esqueceu uma questão fundamental de direito para a boa decisão da causa.

CXXX- É que o senhor Capitão do Porto não confirmou o Relatório de Mar apenas e só com base de que o mesmo tinha sido apresentado no prazo de 48H00 previsto no artigo 14º do Decreto-Lei 384/99 de 23 de Setembro.

CXXXI- A confirmação do Relatório de Mar consta do artigo 15º do referido Decreto-Lei.

CXXXII- Nos termos do nº 1 do citado preceito legal, a autoridade marítima que recebe o relatório de mar deve investigar, com carácter de urgência, a veracidade dos factos relatados procedendo às inquirições que se revelem necessárias.

CXXXIII- E, nos termos do nº 2 a autoridade competente para a confirmação do Relatório de Mar deve, igualmente, recolher as informações de demais meios de prova relacionados com os factos relatados.

CXXXIV- Ainda, nos termos do nº 5, no final da investigação, a Autoridade Marítima, encerra o procedimento, lavrando conclusões, nas quais confirma ou não, fundamentadamente, os factos constantes do Relatório de Mar.

CXXXV- No caso presente, antes da confirmação do Relatório de Mar, e como consta do processo junto aos autos pela Capitania do Porto de Lisboa com a referência 070.40.06-11/18, neste caso a autoridade competente, abriu um inquérito no qual nomeou como instrutor a testemunha JPM, mandou efectuar uma vistoria à embarcação e, concordando com a informação prestada pelo Agente instrutor junto ao seu despacho concluiu, que não era possível determinar as causas para o sucedido e que como tal confirmou o Relatório de Mar, cumprindo, assim, com o disposto no artigo 15º do aludido Diploma Legal.

CXXXVI- E note-se que o Despacho do Senhor Capitão do Porto tem a data de 24 de Maio de 2019.

CXXXVII- E não a data correspondente às 48H00 após a apresentação de tal Relatório de Mar.

CXXXVIII- Não cabe na cabeça de ninguém, muito menos de uma Autoridade Marítima, confirmar um Relatório de Mar, tanto mais tratando-se de um naufrágio, confirmar um Relatório de Mar só porque o mesmo foi apresentado no prazo de 48H00.

CXXXIX- Consta da douta sentença ora recorrida que, para que haja aplicação do artigo 605º do Código Comercial, é necessário que o Segurado prove os factos constitutivos do seu direito, o que significa que ele deve demonstrar que o risco maritimo é a causa da perda e o mesmo está coberto.

CXL- Trata-se de mais um tremendo erro do douto Tribunal “a quo”.

CXLI- Como é que era possível que o Skipper conseguisse determinar a causa do acidente, quando sempre afirmou desconhecer a mesma?

CXLII- Nos termos do artigo 342º do Código Civil, efectivamente caberia à ora RECORRENTE fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito.

CXLIII- Todavia, nos termos do disposto no artigo 344º/1 do Código Civil, as regras do ónus da prova prevista nos artigos anteriores invertem-se quando haja presunção legal.

CXLIV- E, nos termos do disposto no artigo 349º do Código Civil, as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

CXLV- O facto conhecido aqui é o sinistro.

CXLVI- Ora, nos termos do artigo 605º do Código Comercial, no caso de dúvida sobre a causa da perda dos objectos segurados, leia-se embarcação, presume-se haverem perecido por fortuna de mar e o Segurador é responsável.

CXLV- É incontornável o facto de que a embarcação não desapareceu.

CXLVI- mas a sua perda foi total conforme decorre dos próprios autos.

CXLVII- Todavia não foi feita qualquer prova que permitisse determinar a causa do acidente.

CXLVIII- Não tendo sido ilidida a presunção prevista no artigo 605º do Código Comercial, resulta manifesto que a sentença ora recorrida teria de ser seguramente de condenação e não outra.

CXLIX- A douta sentença erra mais uma vez, ao absolver a R. do pedido com base na barataria.

CL- É referido na douta sentença o seguinte:” …que sempre a acção teria de improceder pois a actuação do Skipper foi de molde a “assegurar” que a embarcação segura se perderia no mar ou seja, ainda que o Skipper não tenha provocado intencionalmente o alagamento da embarcação, durante cerca de três horas ficou na embarcação sem tentar aumentar os meios de escoamento da água que continuava a entrar na embarcação conforme declarou na sua audição perante a Polícia Marítima (facto 44), sem que as válvulas de entrada de água na embarcação para fornecimento das águas á casa de banho estavam fechadas, sem conseguir encontrar um qualquer rombo que justificasse o embarque de água, pois apesar de declarar que ouviu o ruído e se deparou com o alagamento às 2h00 da manhã, apenas às 5h00 da manhã, com a embarcação já parcialmente submersa, lançou o pedido de socorro”.

CLI- Como pode, honestamente, o douto Tribunal “a quo” afirmar que o Skipper, com ou sem aspas, quis assegurar que a embarcação se perderia no mar?

CLII -Dá a sensação que o douto Tribunal a quo pretende que o Skipper quereria que a embarcação se perdesse para sempre.

CLIII- O Skipper sempre afirmou que viajava com as válvulas abertas.

CLIV- Como decorre de depoimentos de várias testemunhas, Perito da Capitania do Porto, do Senhor PS, do Senhor VF e do Senhor JM, o facto de viajar com as válvulas abertas não constituía qualquer perigo para a navegação nem causa que justificasse o sinistro.

CLV- Por outro lado, a embarcação não se perdeu, tanto que foi recuperada perto da Costa Marroquina.

CLVI- A embarcação não se perdeu porque manteve a sua reserva de flutuabilidade, nomeadamente através dos piques-estantes.

CLVII- Pergunta-se: Se o Skipper quisesse assegurar que a embarcação se perderia no mar, não seria através da danificação daqueles piques-estanques à proa?

CLVIII- Estamos a falar de um Skipper com 57 anos, que desde 2008 possui a qualificação de Patrão de Alto Mar, e que era já à data dos factos um homem muito experiente em navegação, e ainda que no seu depoimento demonstrou ter perfeito conhecimento da embarcação, que esta era o seu instrumento de trabalho.

CLIX- Acresce que a RECORRENTE da qual ele é sócio nada devia, que até tinha actualizado o seguro, diminuindo por duas vezes o valor da embarcação e do respectivo prémio.

CLX- Do facto 44 que o douto Tribunal a quo considerou provado não resulta que o Skipper nada tenha feito para salvar a embarcação, o seu principal propósito.

CLXI- Resulta daquele facto 44 que tentou alterar o rumo e regressar a Sines, apenas com o motor de estibordo, procurou descortinar o local por onde a água entrava tendo ligado as bombas elétricas e que apenas não utilizou a bomba manual uma vez que iria despender um enorme esforço físico (estando sozinho a bordo) e no seu entender não iria retirar uma quantidade significativa de água.

CLXII- O facto de não ter utilizado esta bomba manual é compreensível tal como é confirmado pela testemunha AMM a folhas 14 do seu relatório, quando refere ser irrelevante para os seus cálculos a existência de uma bomba manual por se encontrar apenas uma pessoa a bordo.

CLXIII- Faz algum sentido que alguém sozinho a duzentas milhas da costa, durante a noite, com a embarcação a alagar, nada faça para tentar salvar a mesma e a si mesmo?

CLXIV- Nenhuma testemunha referiu que o fecho das válvulas impediria fosse o que fosse.

CLXV- O Capitão do Porto de Lisboa, autoridade competente para aferir da veracidade do relatório de mar, no inquérito que ordenou, não só validou o relatório de mar como não levantou qualquer reserva quer quanto ao procedimento do Skipper para tentar resolver a situação, nem quanto ao tempo em que este o tentou.

CLXVI- Não há nenhum indício de que o skipper RM tenha, alguma vez, pretendido afundar a embarcação e estando, até, provados factos que contrariam essa intenção (como a indiscutível circunstância de a embarcação não se ter afundado) não há qualquer fundamento para se entender que ter havido qualquer situação de barataria.

CLXVII- Não houve, assim, qualquer barataria, muito menos a título de dolo.

CLXVIII- E ainda que por mera hipótese académica se pudesse conceber existir barataria negligente, o que nem se concebe, esta não excluiria a responsabilidade da R.

CLXVIX- A este respeito pronunciou-se este Douto Tribunal por Acórdão datado de 13 de Julho de 2021, no âmbito do processo 120564/17.2YIPRT.L1-7, onde se pode ler: “IV – O conceito de barataria a que alude o artigo 604º, nº 1 do CCom compreende apenas actos e omissões dolosos, e não inclui actos negligentes do capitão, da tripulação, ou do armador”.

E na fundamentação daquele referido Acórdão escreve-se:

“Finalmente, e em terceiro lugar, releva o confronto entre o art.1752.º do CCom de 1833[72] e o art. 604.º do CCom vigente (1888). Como já se referiu, o primeiro preceito delimitando os riscos marítimo cobertos pelo contrato de seguro, referia-se à “negligência ou barataria do patrão ou da equipagem”, ao passo que o art. 604.º não contém qualquer referência à negligência. Ora, em nosso entender, tal alteração revela uma intenção clara no sentido de restringir a exclusão da obrigação de segurar apenas aos atos dolosos, mantendo os atos negligentes dentro da esfera de proteção conferida pelo contrato de seguro. Urge concluir, tendo presente que, como refere MÁRIO RAPOSO[73], o direito comparado demonstra que as legislações britânica, francesa, espanhola e italiana consagram atualmente o entendimento restrito do conceito de barataria. E fazendo-o aderimos resolutamente a este entendimento, por todos os motivos acima expostos aos quais acrescentamos outro: No Direito português não temos conhecimento de qualquer outra disposição legal que seja interpretada no sentido de excluir do âmbito de cobertura de contratos de seguros de danos na modalidade de responsabilidade civil aqueles que sejam provocados por condutas negligentes. Cremos mesmo que uma tal exclusão carece de sentido, visto que a ideia subjacente aos seguros de danos que cobrem sinistros ocorridos no contexto da responsabilidade civil é justamente, permitir a reparação de danos causados por condutas negligentes. Donde, não descortinamos razão suficiente para, em pleno século XXI, e num domínio como a navegação marítima, em que a outorga de contratos de seguro se afigura crucial para a segurança desta atividade, ter por adequada a exclusão da cobertura relativamente a danos causados por condutas negligentes, quando a letra da lei não impõe tal caminho interpretativo”.

 

O Requerente apresentou Contra-Alegações, nas quais concluiu que:

            1. A reprodução das alegações de recurso nas conclusões, com meras alterações pontuais e sem qualquer esforço de síntese, equivalem à ausência de conclusões e, consequentemente, o requerimento de recurso da Apelante deve ser indeferido pelo tribunal a quo ao abrigo do n.º 1 do art.º 639º e da al. b) do n.º 2 do art.º 641º do CPC ou, não sendo proferida tal decisão, deve o recurso ser rejeitado pelo tribunal ad quem, com a mesma fundamentação;

               2. O recurso deve ser rejeitado na parte em que não foi pela Apelante observado o ónus da impugnação previsto no art.º 640º do CPC, quanto ao ponto 86 dos Factos Provados, na vertente primária (n.º 1), quanto aos pontos 63, 64, 76, 79, 90, 91, 93 e 96 dos Factos Provados, na vertente secundária (n.º 2, al. a)).

Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

               3. Na apreciação da matéria de facto, o tribunal a quo foi auxiliado por assessor técnico por si nomeado – o Sr. Eng.º PS, Eng.º Naval – nos termos do art.º 2º, n.º 3 da Lei n.º 35/86, de 4/9, na apreciação de questões de facto que implicavam o domínio de conhecimentos especiais que não possuía;

               4. O Tribunal ad quem está adstrito ao cumprimento do n.º 1 do art.º 662º do CPC que condiciona a modificabilidade da decisão recorrida a factos que imponham decisão diversa da recorrida e que sejam insusceptíveis de ser destruídos por quaisquer outras provas, o que não acontece no caso da impugnação da Apelante relativa a matéria de facto; Assim,

               5. Apesar de irrelevante para a decisão da causa, deve proceder a impugnação do ponto 57 dos Factos Provados e deve proceder parcialmente, apenas quanto à indicação da data, a impugnação que a Apelante faz do Ponto 73 dos Factos Provados;

               6. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 77 dos Factos Provados, já que, atento o teor do ponto 53 dos Factos Provados, a alteração pedida pela Apelante é redundante e não determina a alteração do sentido da decisão recorrida;

               7. Deve ser considerada improcedente a conclusão LXXXIV do recurso, porquanto os factos que a Apelante pretende ver provados já constam dos pontos 30, 69 e 70 dos Factos Provados, que não foram objecto de impugnação por parte da Apelante;

               8. Também deve ser considerada improcedente a conclusão LXXXV do recurso, porquanto tal facto não foi conhecido pelo tribunal a quo por não fazer parte dos factos em discussão e alegados pelas partes nos articulados, nem mencionado nos relatórios pelos peritos que fizeram a vistoria à embarcação, tendo o tribunal entendido não ser o mesmo relevante para a boa decisão da causa e logo não integra a decisão recorrida. Acresce que, o referido facto não pode ser considerado provado sem que seja concedida à Apelada a possibilidade de sobre o mesmo se pronunciar (art.º 3º, n.º 3 do CPC) por força do princípio do contraditório e da proibição das decisões surpresa;

               9. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 58 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Factos Provados nos pontos 19, 71 e 74; Processo de averiguações n.º 070.40.06 – 11/18, remetido pela Capitania do Porto de Lisboa, e apenso por linha aos presentes autos em 18.02.2020; e o depoimento da testemunha JPM, cuja passagem da gravação está indicada no corpo da alegação para a qual se remete;

               10. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 63 dos Factos Provados em face do Relatório de Avaria da Navaltik Portugal, Lda., a fls. 165 a 278 (v. p. 11);

               11. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 64 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Relatório elaborado por AMM, de fls. 122 a 163 (v. p. 13); depoimento das testemunhas JM e AMM, cujas passagens da gravação estão indicadas no corpo da alegação para a qual se remete;

               12. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 68 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Relatório elaborado por AMM, de fls. 122 a 163 (v. pp. 14 a 17); e Relatório elaborado por JM, de fls. 69-v a 78;

               13. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 76 dos Factos Provados em face do teor do Auto de Diligência relativo à vistoria realizada no porto militar de Casablanca junto ao processo de averiguações n.º 070.40.06 – 11/18, remetido pela Capitania do Porto de Lisboa, e apenso por linha aos presentes autos em 18.02.2020 (v. fls. 83 do referido processo);

               14. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 79 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Relatório elaborado por AMM, de fls. 122 a 163 (v. pp. 38 e 40); e o Relatório elaborado por JM, de fls. 69-v a 78 (v. p. 9);

               15. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre os pontos 89 e 90 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Relatório elaborado por AMM, perito nomeado pela Ré, de fls. 122 a 163 (pp. 10, 27 e 32 e Doc. 6 do Anexo II); Relatório elaborado por JM, de fls. 69-v a 78 (v. p. 3 e 7); Relatório de Avaria da Navaltik Portugal, Lda., a fls. 165 a 278 (v. p. 3 e 11) e fotografia constante do Anexo II-N do relatório da Navaltik;

               16. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 91 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Pontos 88, 89 e 90 dos Factos Provados; Relatório elaborado por AMM, perito nomeado pela Ré, de fls. 122 a 163 (v. pp. 7, 10, 20 e 21); e depoimento da testemunha AMM, cuja passagem da gravação está indicada no corpo da alegação para a qual se remete;

               17. Quanto à impugnação do ponto 93 dos Factos Provados, deve a mesma improceder porquanto a transcrição de um excerto do documento não invalida que se atente a todo o documento, tendo sido utilizada a expressão “além do mais” e considerando a matéria provada nos pontos 40 e 41 dos Factos Provados;

               18. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 96 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: ponto 63 dos Factos Provados; Relatório elaborado por JM, de fls. 69-v a 78 (v. p. 11 e 12); e o depoimento do próprio cuja passagem da gravação está indicada no corpo da alegação para a qual se remete;

               19. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 99 dos Factos Provados em face dos concretos meios probatórios que aqui se indicam e se desenvolvem no corpo da alegação: Relatório de mar apresentado pelo skipper da embarcação (Doc. 14 com a p.i.), no qual o skipper não refere ter realizado qualquer dessas operações; o depoimento do próprio skipper RM e de AMM, cujas passagens da gravação estão indicadas no corpo da alegação para a qual se remete;

               20. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre a al. b) dos Factos Não Provados em face do Auto de registo constante do processo de averiguações que foi remetido pela Capitania do Porto de Lisboa e que se encontra apenso aos autos (fls. 8-10), que comprova que a embarcação estava a operar na actividade marítimo-turística desde 2015, passando a estar sujeita à aplicação do DL n.º 149/2014, de 10 de Outubro, que aprovou o Regulamento das Embarcações utilizadas na Actividade Marítimo-Turística, e, consequentemente, ao seu art.º 11º, n.ºs 1 e 4, sendo que nenhum documento destas vistorias anuais obrigatórias foi apresentado pela Apelante;

               21. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre as als. c) a m) dos Factos Não Provados, uma vez que o tribunal, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não considerou o depoimento da única testemunha presencial do evento, o Sr. RM, como sendo um depoimento coerente e credível pelas razões explicadas na motivação, tendo formado a sua convicção com base na extensa prova técnica produzida e criteriosamente apreciada com o auxílio do assessor técnico do tribunal e com base nas regras da experiência. Sem embargo, à cautela, indicam-se os concretos meios probatórios que infirmam as conclusões da Apelante: Pontos 9, 13, 43, 55, 56, 57, 59, 60, 61, 65, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 85, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95 e 96 dos Factos Provados; Relatório elaborado por AMM, de fls. 122 a 163 (v. pp. 13 a 23); Relatório elaborado por JM, de fls. 69-v a 78; Relatório de Avaria da Navaltik Portugal, Lda., a fls. 165 a 278, designadamente o Anexo II-I a este relatório; e o depoimento da testemunha RM, cuja passagem da gravação está indicada no corpo da alegação para a qual se remete;

 

Da impugnação da decisão sobre a matéria de direito

               22. A douta sentença recorrida não violou as normas do art.º 15º, n.ºs 1, 2 e 5, do DL n.º 384/99, de 23/9, porquanto os factos constantes do relatório de mar não foram confirmados, incumbindo à Apelante a prova dos factos constitutivos do direito que pretende ver declarado judicialmente, nos termos do n.º 1 do art.º 342º do Cód. Civil, e da Cláusula 31ª das Condições Gerais do seguro celebrado com a Apelada, prova que não logrou fazer;

               23. O art.º 605º do Cód. Comercial não é aplicável ao caso, porquanto a embarcação não naufragou nem se perdeu em consequência do alagamento, tendo navegado até perto da costa de Marrocos onde viria a ser encontrada;

               24. O conceito de barataria, previsto no art.º 604º §1º do CCom compreende tanto a actuação dolosa do capitão como a negligente, não se justificando uma interpretação restritiva do conceito de barataria num caso de danos próprios (e não de responsabilidade civil), sendo que a actuação do skipper não pode deixar de ser considerada dolosa, conforme resulta da matéria de facto provada e corresponde à convicção do tribunal a quo;

               25. O caso sempre estaria excluído da cobertura do contrato de seguro celebrado com a Apelada por a barataria constar do elenco das cláusulas de exclusão constante da Cláusula 6ª das Condições Gerais do próprio contrato de seguro;

Da ampliação do objecto do recurso

               26. A Apelada requer, subsidiariamente, a ampliação do objecto de recurso para arguir a nulidade da sentença recorrida em virtude de não se ter pronunciado sobre a falsidade requerida pela Apelada no artigo 26º da contestação, ao abrigo da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC e do art.º 636º, n.º 2 do CPC;

               27. A Apelada vem também impugnar, ao abrigo do n.º 2 do art.º 636º do CPC, os pontos 68 e 98 dos Factos Provados, devendo ser provado apenas que:

                             68 - Considerando o excessivo caudal de alagamento, que nem as bombas submersíveis eléctricas conseguiria conter, o rombo teria de ter uma superfície igual ou superior à área de um círculo de 3 cm de diâmetro.

                             98 - O skipper não colocou a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas.

E não provado que: O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar, com base nos concretos meios probatórios constantes da alegação para os quais, por economia, aqui se remete;

               28. A Apelada impugna também o ponto 10 dos Factos Provados por ser relevante para os fundamentos da defesa, devendo ter sido provado:

                             10 – Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores ao qual a referida embarcação estava afecta, beneficiando de incentivo financeiro não reembolsável no montante de € 143.910,52 concedido pelo Governo Regional dos Açores, com base nos concretos meios probatórios constantes da alegação para os quais, por economia, aqui se remete;

29. Por fim, para o caso de vir a ser dado provimento à conclusão LXXXV da alegação da Apelante, a Apelada considera que deveriam ter sido provados os seguintes factos:

                             - “As anteparas de vante das casas da máquina eram estanques”; e

                             - “A água não podia ter passado para o casco de estibordo pelo túnel técnico”, com base nos concretos meios probatórios constantes da alegação para os quais, por economia, aqui se remete;

30. A Apelada requer ainda, subsidiariamente, a apreciação do fundamento da defesa em que decaiu: o alagamento da embarcação foi intencionalmente provocado e tal facto determina a exclusão da cobertura da apólice com fundamento na Cláusula 6ª, n.º 2, als. k) e n) das Condições Gerais do seguro, com fundamento no n.º 1 do art.º 636º do CPC.

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará:

                                   - verificar a matéria dada como provada nos Factos 57.º, 58.º, 63.º, 64.º, 68.º, 73.º, 76.º, 77.º, 79.º, 86.º, 89.º, 90.º, 91.º, 93.º, 96.º, 99.º.

                                   - verificar a necessidade de acrescentar outros Factos à Factualidade provada (a) “A embarcação foi encontrada a 1 de Dezembro de 2018 pelas 21H00 pela Unidade da Marinha Real, ao largo do Oceano Atlântico perto da Região de Kenitra com a posição 34º27.2N 007º0.86’W”; b) ”A embarcação “THE XXXX” foi rebocada a 4 de Dezembro de 2018 pelas 20H45 para o porto Militar Casablanca”; -c) “Na embarcação existia um túnel de ligação entre os dois cascos à popa”);

                                            -  verificar a necessidade de serem considerados provados os factos constantes da alínea b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m), dos Factos não Provados.

                                   - verificar - por via da ampliação promovida pela Ré-Recorrida - a necessidade de:

                                                                             Ia- alteração da redacção do Facto 68.º (Considerando o excessivo caudal de alagamento, que nem as bombas submersíveis eléctricas conseguiria conter, o rombo teria de ter uma superfície igual ou superior à área de um círculo de 3 cm de diâmetro);

                                                                                        Ib- a alteração da redacção do Facto 98.º (O skipper não colocou a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas);

                                                                                        Ic- considerar não provado que “O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar”;

                                                                                         Id- alterar da redacção do Facto 10.º (Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores ao qual a referida embarcação estava afecta, beneficiando de incentivo financeiro não reembolsável no montante de € 143.910,52 concedido pelo Governo Regional dos Açores).

                                   - verificar se perante a factualidade apurada o Direito se mostra correctamente aplicado aos factos, nomeadamente quanto à responsabilidade pela ocorrência do sinistro e suas consequências, à face das regras da responsabilidade civil, do contrato de seguro e do direito marítimo (em concreto dos artigos 604.º e 605.º do Código Comercial);

                                   - (a título subsidiário) verificar se existe alguma nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por ter ocorrido uma ausência de pronúncia quanto a uma falsidade arguida na Contestação.

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

 

Fundamentação de Facto

O Tribunal considerou provada a seguinte factualidade:

1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras, à actividade de realização de eventos, festas e actividades culturais; gestão e exploração náutica e marítimo turística, incluindo passeios e cruzeiros; transportes de passageiros; compra e venda, representação e aluguer de embarcações com ou sem tripulação.

2 - No âmbito da sua actividade a Autora, em 22 de Setembro de 2014, adquiriu à firma “Fountaine Pajot”, pelo valor de € 284.437 uma embarcação de recreio CATAMARAN, Modelo LIPARI 41 QUATUOR EVOLUTION e respectivo equipamento.

3 - A embarcação referida em 2 encontra-se registada na Capitania do Porto de Lisboa, sob o n.º 18386LX1, com a denominação “The Xxxx”.

4 - A Autora, aquando a aquisição da embarcação, celebrou com a Ré, em Setembro de 2014 um contrato de seguro enquanto aguardava a entrega da mesma e que cobriu todos os riscos, incluindo o transporte daquela embarcação para Portugal.

5 – À data de 21 de Outubro de 2018 e relativamente à embarcação “The Xxxx” encontrava-se em vigor a apólice n.º 85/22433, na redacção que lhe foi dada pela Acta Adicional n.º 3, da qual faziam parte integrante as Condições Gerais e Especiais nela mencionadas.

6 – O valor seguro, em Outubro de 2018, era no montante de € 240.000 acrescido do montante de € 12.000 para electrónicos não especificados e do montante de € 6.000 para Velas.

7 - A referida embarcação encontrava-se equipada com todos os equipamentos e meios de salvação necessários às viagens que efectuava.

8 - O Skipper da referida embarcação, à data dos factos em discussão, era o Senhor RM, também ele sócio da Autora que, desde 2008, possui a qualificação de Patrão de Alto Mar.

9 - RM era já à data dos factos um homem muito experiente em navegação.

10 - Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores.

11 - Durante a viagem referida em 10, RM, foi resgatado por um helicóptero da Força Aérea pelas 08H00 da manhã do dia 21 de Outubro de 2018.

12 - RM, zarpou de Lisboa, doca de Alcântara, pelas 6H30 do dia 20 de Outubro de 2010, tendo feito a necessária comunicação ao Centro do Controlo de Tráfego Marítimo (Roca Control) quando estava a sair a barra do Porto de Lisboa.

13 - As condições meteorológicas eram boas e a viagem estava a decorrer de uma forma normal.

14 - Cerca das 05H00 da manhã RM fez um alerta DISTRESS pelo rádio VHF principal e abandonou a embarcação “THE XXXX”.

15 - RM baixou a embarcação auxiliar e disparou a jangada pneumática.

16 - Após o resgate de RM, pela equipa de resgate foi registado que a balsa salva vidas foi afundada e a embarcação “THE XXXX” estava quase afundada.

17 - O relatório elaborado pela Equipa de Resgate tem o seguinte teor:

“Operations (pilot) EH-101 Crew was activated at 5.00Z to depart for the rescue of 1 person on board of a lifraft of the sailing vessel “xxxx”. Take of after refuel aircraft at 05.45Z. Upon arrival liferaft and sailing vessel were located and the crew proceed with the rescue. The liferaft was sunked and the sailing vessel was already sunken. With the victim on board of the aircraft, the crew proceded to Montijo Air Force Base and landed at 8:00Z” ou seja, em português: “Operações (piloto) EH - 101 tripulação foi ativada às 5.00Z para partir para o resgate de 1 pessoa a bordo de uma embarcação salva-vidas do navio à vela “Xxxx”. Embarque após reabastecimento da aeronave às 05.45Z. Após a chegada, a balsa salva-vidas e o barco a vela foram localizados e a tripulação prosseguiu com o resgate. A balsa salva-vidas foi afundada e o veleiro estava já afundado. Com a vítima a bordo da aeronave, a tripulação seguiu para a Base Aérea do Montijo e aterrou às 8h00”.

18 - No dia 22 de Outubro de 2018 foi registado o seguinte no SAR MISSION REPORT da Força Aérea:

“at 1252z located sailing vessel The Xxxx at position 38º08’N 011º33W After confirming that de sailing vessel was sinking, contact was made to Air Rescue Coordination centre Lisbon while performing a notice to the navigation ising maritime band chanel 16 international frequency. RCC Lisbon informed that the ship belonged to a rescued person, on the day before and that ORION03 was clear to proceed with its present mission.” o que significava que tinha sido verificado que a embarcação “The Xxxx” se estava a afundar e foi feito um contacto com o Centro Coordenador de Salvamento por meios Aéreos de Lisboa enquanto se dava um aviso à navegação usando o canal marítimo 16, de frequência internacional. O referido centro Coordenador informou que a embarcação pertencia a uma pessoa resgatada no dia anterior e que o ORION03 estava liberto para prosseguir com a sua presente missão.

19 - Dos relatórios supra referidos foi dado conhecimento à Autora em 19 de Novembro de 2018, pelo ofício 013008.

20 - Em 23 de Outubro de 2018 e no estrito cumprimento da alínea f) da cláusula 28ª das Condições Gerais do Seguro, através da sua gerente, a Autora participou à Ré o sinistro, enviando, por e-mail daquela mesma data o Protesto de Mar supra identificado.

21 - Por e-mail datado de 24 de Outubro de 2018, em resposta ao supracitado e-mail a Ré respondeu à Autora, no qual informa que procederam à abertura do processo de sinistro o qual assumia o nº 85/201026.

22 - A Ré informou a Autora que tinha sido nomeada a empresa Navaltik Portugal para proceder à elaboração do relatório de peritagem ao evento e que nomeavam o senhor MB como gestor do processo.

23 - Em 29 de Outubro de 2019, RM foi ouvido pelo perito da NAVALTIK em Inquérito onde constam as respostas dadas por RM, nomeadamente, sobre os factos ocorridos.

24 - No âmbito do inquérito realizado pela NAVALTIK, aquando da sua audição, RM, à pergunta que lhe foi formulada sobre quais as manobras que foram efectuadas para salvar a embarcação na altura em que foi detectada água aberta respondeu que foi procurar a entrada de água pelo casco de bombordo, mas não a encontrou.

25 - No mesmo inquérito, instado a responder por onde entrava a água, RM respondeu que não conseguiu detectar, mas na altura era pelo casco de bombordo.

26 - E, instado a responder se foram colocadas as bombas de esgoto a funcionar respondeu que sim e, embora não soubesse as características das mesmas referiu que uma das bombas se encontrava no porão do motor e a outra a meia nau.

27 - Ainda, relativamente à pergunta que lhe foi feita sobre o porquê de ter saltado e abandonado a embarcação, RM respondeu que a água acabou por alagar também a estibordo e ficou a abicar e a desabar instável sem qualquer hipótese de governo ou segurança.

28 - Tendo-lhe sido, ainda, perguntado quanto tempo decorreu entre o momento do evento e as comunicações feitas às autoridades, RM referiu que cerca de 3H15 porquanto ficou a tentar resolver a situação e esperar pelo dia para tentar salvar a embarcação.

29 - E quando instado a responder o que achava relevante informar para justificar o evento, RM respondeu; “Não sabe o que aconteceu. Fez tudo o que estava ao seu alcance para salvar a embarcação mas não conseguiu. Chegou mesmo a voltar com rumo a Sines mas iria, ainda, criar mais problemas e ficar no corredor de tráfego”.

30 - A embarcação veio a dar à costa em Marrocos, tendo sido descoberta por uma unidade da Marine Royal na posição N34.27.2 W007.0.86 ao largo de Kenitra, Marrocos e tendo sido rebocada para o porto Militar de Casablanca.

31 - O ofício da Direcção Geral da Autoridade Marítima datado de 18 de Dezembro de 2018 foi recebido pela Autora em 16 de Janeiro de 2019.

32 - O facto referido em 30 foi comunicado pelo Ilustre Mandatário da Autora à Ré, em 17 de Janeiro de 2019.

33 - O facto referido em 30 foi comunicado pelo Ilustre Mandatário da Autora à Direcção Geral da Autoridade Marítima, conforme decorre da carta datado de 25 de Janeiro de 2019.

34 - Em 11 de Janeiro de 2019, o Ilustre Mandatário da Autora entrou em contacto com a firma Navaltik, à qual transmitiu o teor da informação referida em 30.

35 - A Navaltik informou a Ré que, por e-mail dirigido ao Ilustre Mandatário da Autora, confirmou ter sido contactado pelo Engº MG, colaborador da referida Navaltik que disse, e transcreve-se: “…que o Dr. JB lhe ligou esta manhã para lhe transmitir que a embarcação teria dado à costa em Marrocos, sem contudo esclarecer em que local exacto em que a embarcação se encontrava”.

36 - A Ré solicitou ao Ilustre Mandatário da Autora e transcreve-se: “Deste modo, agradecemos que, com urgência, confirme por escrito esta informação, bem como da identificação do local exacto em que a embarcação se encontra”.

37 - Por e-mail dirigido à Ré, o Ilustre Mandatário da Autora respondeu e transcreve-se: “Apenas lhes posso transmitir a única informação que obtive da Autoridade Marítima hoje na sequência das diligências que fiz, entidade que V. Exas. ainda nem sequer contactaram como entidade seguradora, foi a de que a embarcação se encontrava em Marrocos.

38 - Em 29 de Janeiro de 2019, o Ilustre Mandatário da Autora foi informado pelo Senhor Capitão do Porto de Lisboa de que estava prevista a deslocação de peritos da Autoridade Marítima a Marrocos/Casablanca para uma peritagem à embarcação da Autora a ser realizada a 7 de Fevereiro de 2019.

39 - Naquele referido e-mail o senhor Capitão do Porto fala, ainda, de um perito designado que terá sido um perito designado pela Ré.

40 - Conforme resulta do Relatório de Peritagem feita embarcação em 7 de Fevereiro de 2019, elaborado pelo perito da Capitania do Porto de Lisboa, nomeadamente, das conclusões constantes da sua página 12, e transcreve-se:

“Tendo por base a sequência dos eventos apresentados no relatório de mar em Anexo A e a avaliação do estado actual da embarcação (parágrafo 3) não é possível identificar inequivocamente a causa do acidente”.

41 - Resulta, ainda, daquele relatório que, e transcreve-se: “A embarcação não reúne condições de segurança e navegabilidade para retomar a actividade a que se destina, em virtude da inexistência da integridade estrutural do casco e da inoperacionalidade dos sistemas de propulsão e governo, dos equipamentos náuticos e de manobra”.

42 - Na sequência da peritagem que foi efectuada, em 18 de Março de 2019, RM, skipper da embarcação e nessa qualidade, compareceu na Polícia Marítima, Comando Local de Lisboa, para ser inquirido como testemunha.

43 - Na inquirição referida em 42, RM confirmou o que já tinha declarado no Protesto de Mar, tendo referido, ainda, que antes do início da viagem verificou todas as condições gerais da embarcação, que eram boas, e que, as condições meteorológicas e de navegabilidade eram boas, soprando o vento de 8 a 12 nós e a vaga de cerca de 2 metros, referindo, ainda, que era normal efectuar este tipo de viagem, considerando-se um navegador experiente, fazendo navegações desde 1987 e, em mar aberto, desde 2008.

44 - Relativamente ao sinistro, RM prestou as seguintes declarações:

“A viagem decorria dentro da normalidade, a uma velocidade de 5 nós/hora, com o motor de bombordo a trabalhar a 1500 rotações, motor de estibordo parado e vela genoa içada, acrescentando que, para não cair em sono profundo, tinha accionada a função “self timer” do telemóvel de 20 em 20minutos, fazendo sempre as viagens vestido, calçado e com colete de salvação envergado, referindo não existir qualquer indício de água a bordo.

Cerca das 2:00 do dia seguinte, quando estava a descanar a estibordo no salão, de cabeça para a proa, navegando a embarcação em piloto automático, rumo 262 a 268, ouviu um ruído no flutuador na alheta a bombordo.

Foi verificar do sucedido e constatou que a bombordo, já aparecia água por cima dos paneiros, pelo que, de imediato, tentou descortinar onde a água entrava, tendo ligado as bombas eléctricas de esgoto e o gerador, no entanto o nível da água foi subindo, passando a mesma para estibordo por uma área técnica, onde estão os cabos, tubos e mangueiras, situada entre os dois bordos.

Declara que possuía uma bomba manual mas não a utilizou, uma vez que iria despender um enorme esforço físico em vão e, no seu entender, não iria retirar uma quantidade significativa de água.

Entretanto o motor de bombordo parou, bem como o gerador.

Posto isto, tentou alterar o rumo e regressar para Sines, apenas com o motor de estibordo, com o intuito de salvar a embarcação, porém o nível da água no interior da mesma era cada vez maior e, como iria atravessar o corredor de tráfego marítimo, achou que não seria prudente, pelo que voltou ao rumo inicial em direcção aos Açores, à vela e a motor, e aguardou pelo nascer do dia no sentido de encontrar uma solução.

Cerca das 5.00 horas, a embarcação adornou para estibordo, ficando numa posição bastante instável, sentindo aí o verdadeiro perigo, pelo que decidiu abandoná-la, uma vez que não existia condições de segurança, realizando um pedido de ajuda-Distress, pelo rádio fixo VHF.

…quando abandonou a embarcação, trouxe consigo o saco de abandono, que continha no seu interior toda a pirotecnia, mantas de aquecimento, binóculos, caixa de primeiros socorros, rádio portátil VHF, lanterna, espelho, navalha, pilhas, lâmpada secundária, água, trazendo ainda preso ao fato que envergava, um telefone satélite, a EPIRB, um canivete suíço, uma lanterna subaquática, água em sacos, atirando, ainda para o interior da balsa salva-vidas, mais dois coletes de salvação.

“Assim, no que concerne às válvulas de estibordo se encontrarem abertas, esclarece que navega sempre com as mesmas abertas, acrescentando não existir qualquer perigo de entrada de água. Já o facto de as mangueiras se encontrarem cortadas desconhece o que possa ter acontecido, contudo declara que se as mesmas fossem cortadas antes do início da viagem, as bombas de esgoto eléctricas teriam logo dado sinal, algo que não aconteceu.

Relativamente à tomada de fundo do casco, afirma que a mesma se encontrava efectivamente enroscada a uma peça que ligava o odómetro e a sonda, tanto mais que até ao abandono da embarcação, aqueles instrumentos ainda funcionavam julgando que tenha sido saqueado assim como os motores, gerador e restante material de valor que se encontrava a bordo”.

45 - A Autora, através do seu Ilustre Mandatário, enviou, em 14 de Março de 2019, uma carta à Direcção Geral da Autoridade Marítima, dando da mesma conhecimento à Ré, a informar que ao abrigo da Cláusula 01 das condições especiais e da cláusula 34º nº 2 alínea c) das Condições Gerais do Seguro da identificada embarcação coberto pela Apólice 85/22433, emitida pela Ré, declarava abandonar a mesma.

46 - Das condições particulares do contrato de seguro celebrado sobre a embarcação, a qual estava segura contra o risco 001 Perda Total, consta na cláusula 34ª nº 2 alínea c) o seguinte:

“2. O abandono dos objectos seguros é apenas admitido nos seguintes casos:

c) Perda total construtiva, ou seja inavegabilidade absoluta e definitiva causada por um evento seguro que torne o navio irreparável ou o custo de reparação para o repor no estado anterior ao sinistro, seja igual ou superior ao valor seguro”.

47 - Em 22 de Março de 2019, por carta registada com aviso de recepção, onde consta a data errónea de 14 de Março de 2019, a Autora, também através do seu Ilustre Mandatário, solicita à Ré que, em face do nº 3 da cláusula 34º das Condições Gerais de Seguro informe se aceita o abandono da embarcação.

48 - A questão da comunicação acerca do destino a dar à embarcação por parte da Autora tinha sido levantada pela Ré no e-mail que enviou ao Ilustre Mandatário da Autora.

49 - O Ilustre Mandatário da Autora, em nome desta, respondeu que para tomar uma decisão definitiva sobre o destino a dar à embarcação, incluindo o abandono, necessitava que a Ré informasse qual o resultado da vistoria efectuada à embarcação, tendo em conta o disposto na alínea c) do nº 2 da cláusula 34ª das Condições Gerais do seguro.

50 - A Ré respondeu à Autora, por e-mail datado de 11 de Março de 2019, dizendo, além do mais, o seguinte: “…a decisão a tomar por parte da empresa tomadora de seguro relativamente ao destino a dar à embarcação não depende do resultado da peritagem realizada à mesma.

Por este motivo, a partir do momento em que foi realizada a peritagem, a sua cliente deixou de estar condicionada quanto à decisão a tomar sobre esta matéria”.

51 - O Ilustre Mandatário da Autora, em nome desta, respondeu ao citado email da Ré dizendo, além do mais, que: “…A peritagem apenas se torna importante para a decisão já que importa aferir, para a tomada da mesma, em que estado se encontra a embarcação…”.

52 - A Ré informou a Autora que o evento ocorrido com a embarcação da mesma não estava coberto pela apólice de Seguro marítimo contratado, pois a causa do mesmo terá sido o facto de se ter verificado que, no interior do casco de bombordo o canhão de fundo para aspiração de água do mar estar aberto e que, no interior do casco de estibordo, as duas válvulas do circuito de água do mar para alimentação das casas de banho estavam abertas e as respectivas mangueiras cortadas de forma perfeita e regular e que tal causa de alagamento sempre determinaria a exclusão da cobertura de acordo com as alíneas k) e n) do nº 2 da cláusula 6ª das Condições Gerais da Apólice de Seguro.

53 - As popas dos dois cascos estavam destruídas a partir das anteparas de vante dos compartimentos dos motores.

54 - Entre a data do sinistro até que a embarcação fosse rebocada para o porto de Casablanca decorreram cerca de 40 dias.

55 - As imagens gravadas pela Força Aérea Portuguesa, aquando do resgate de RM, revelam que a embarcação se encontrava a flutuar com elevado caimento a ré e sem adornamento.

56 - O mastro e a vela encontravam-se íntegros e totalmente fora de água.

57 - A embarcação segura foi avistada pela aeronave da FAP P-3C Orion, na posição geográfica 38º08’N-011º33W e permanecia à tona da água, com derrabamento, sem adornamento, estável, à deriva, navegando ao sabor do vento e das correntes.

58 - A Autora não comunicou à Ré os factos referidos em 57, nunca remeteu ou deu conhecimento à Ré dos relatórios da FAP que lhe foram notificados, nem encetou qualquer iniciativa junto das autoridades oficiais.

59 - O alerta Distress (DSC) foi feito antes do skipper abandonar a embarcação, às 04:17 horas UTC, ou seja, às 05:17 horas (hora local).

60 - Pelas 04:26 horas UTC, ou seja, às 05:26 horas (hora local), o skipper fez uma chamada via VHF, sendo que ainda se encontrava na embarcação.

61 - O skipper accionou o EPIRB pelas 04:36 horas UTC, ou seja, pelas 05:36 horas (hora local) e apenas às 04:56 horas UTC, isto é, às 05:56 horas (hora local), o skipper fez uma chamada telefónica para o MRCC Lisboa para dar a sua posição actualizada, informando que se encontrava dentro da balsa salva-vidas com o GPS portátil, fachos, EPIRB activada e encontrava-se à escuta no canal 16.

62 - Em 11 de Dezembro de 2018, a Navaltik Portugal elabora o seu relatório de avaria n.º 18.0116 NA2, com base nos elementos disponíveis até esse momento (incluindo as declarações do skipper) que anexou ao referido relatório.

63 - No relatório referido em 62, os peritos da Navaltik Portugal concluíram que o alagamento teve necessariamente de se iniciar a partir de ambos os flutuadores abaixo da linha de água e tal situação apenas poderia ter ocorrido, na opinião dos peritos, através de rombo em ambos os flutuadores ou através dos sistemas de válvulas de fundo.

64 - Os paneiros existentes na zona das escadas do salão para o casco de bombordo assentam por volta de 50 cm acima do fundo.

65 - A categoria de concepção da embarcação segura era de tipo A - navegação oceânica, tendo capacidade para resistir a vagas com altura significativa superior a 4 m e ventos que podem exceder a força 8 na escala de Beaufort.

66 - No casco de bombordo da embarcação existiam, pelo menos, duas bombas submersíveis eléctricas, uma a meio navio e outra no compartimento do motor, cada uma com um débito de 38 l/min, perfazendo o total de 76 l/min.

67 - A embarcação tinha também uma bomba de esgoto manual de 45 l/min, totalizando uma capacidade de esgoto de 121 l/min.

68 - Considerando o excessivo caudal de alagamento, que nem a utilização pelo skipper das bombas submersíveis eléctricas conseguiu conter, o rombo teria de ter uma superfície igual ou superior à área de um círculo de 3 cm de diâmetro.

69 - A Marine Royale Marroquina encontrou a embarcação segura no dia 01 de Dezembro de 2018, abandonada e submersa, ao largo de Kenitra, na posição geográfica 34º27.2N 007º0.86W.

70 - E, por constituir perigo para a navegação, a embarcação foi rebocada para o porto militar/base naval de Casablanca, onde foi posta a seco à guarda da Brigada Marítima (Gendarmerie Royale) desse porto.

71 - No dia 14 de Dezembro de 2018, o skipper teve conhecimento de que a embarcação poderia ter aparecido em Marrocos, pelo agente instrutor do processo de inquérito - o agente JPM - nas instalações do Comando Local de Lisboa da Polícia Marítima.

72 - A Autora não comunicou o facto referido em 71 à Ré.

73 - Na sequência do pedido de informação que a Ré dirigiu ao Capitão do Porto de Lisboa, veio este, em 14 de Janeiro de 2019, remeter à mandatária da Ré cópia do ofício n.º 1480, de 18.12.2018, e documentação ao mesmo anexa, que a DGAM tinha enviado à Autora.

74 - A Autora não recebeu o ofício e os documentos porque não chegou a levantar a carta registada com aviso de recepção enviada por aquele organismo para a morada da sua sede social, conforme foi explicado pelo Capitão do Porto de Lisboa à Ilustre Mandatária da Ré.

75 - Após coordenação entre as autoridades marroquinas e a embaixada portuguesa em Rabat, a Ré nomeou o Comandante AMM para a realização de uma peritagem à embarcação, no porto militar de Casablanca, com o único propósito de determinar as causas que estiveram na origem do sinistro/alagamento.

76 - No dia 07 de Fevereiro de 2019, pelas 08:30 horas (hora local), no porto militar de Casablanca, sob a supervisão do Coronel M, da Brigada Marítima (Gendarmerie Royale), foi realizada a peritagem à embarcação em seco por parte do perito nomeado pelo Capitão do Porto de Lisboa, na presença do agente instrutor do processo de inquérito, e pelo perito nomeado pela Ré.

77 - A embarcação mantinha a estrutura dos cascos e do túnel que os liga.

78 - À excepção da popa, o perito nomeado pela Ré verificou que o casco de bombordo se encontrava estruturalmente intacto, não apresentando qualquer sinal de nele ter tocado ou roçado alguma coisa, mantendo intacta a pintura de antivegetativo.

79 - No interior do casco de bombordo, por ante-a-ré da antepara dos piques, o perito constatou que o canhão de fundo para aspiração de água do mar estava aberto para o mar, proporcionando uma entrada livre e franca de água do mar para o interior daquele casco.

80 – O referido canhão tinha 2’’ (polegadas) e estava bem “esmagado” contra o fundo, com a anilha interior bem apertada.

81 - A rosca da sua face exterior encontrava-se intacta.

82 - O canhão estava aberto após terem sido desmontados os acessórios que o tornavam estanque, nomeadamente o bojão roscado.

83 - O perito nomeado pela Ré verificou que o casco de estibordo também se encontrava estruturalmente intacto, à excepção da zona da popa.

84 - Apesar de o costado exterior do flutuador de estibordo apresentar um rombo de cerca de 8 cm de diâmetro na obra viva da amura, o perito nomeado pela Ré concluiu que esse rombo não teve qualquer influência no alagamento do casco de estibordo porque se encontra na zona de um pique tanque da proa, que é estanque e de pequeno volume, o qual, mesmo que tivesse alagado não teria tido influência negativa no valor limite da reserva de flutuabilidade, e terá sido provocado nas manobras de levar a embarcação a seco pelo aspecto ainda novo do estilhaçado do estratificado e pelo estilhaçado adjacente.

85 - No interior do casco de estibordo, o perito constatou que duas válvulas de 15mm de diâmetro do circuito de água do mar para alimentação das casas de banho estavam abertas e as respectivas mangueiras tinham sido cortadas de forma perfeita e regular com um objecto de lâmina afiada.

86 - Os piques das proas encontravam-se estanques e os espaços suprajacentes tinham os seus pavimentos incólumes, garantindo a estanquicidade dos piques.

87 - Após ter realizado a referida peritagem, em 28 de Fevereiro de 2019, o perito nomeado pela Ré produziu o relatório de análise técnica n.º 001.MP01.COAN.

88 - Nesse relatório, o perito conclui que a embarcação não se afundou após o alagamento porque a sua reserva de flutuabilidade era superior ao seu deslocamento.

89 - A maioria da reserva de flutuabilidade, no valor de 7,6 m3, encontra-se no túnel de união dos dois cascos a que acresce o somatório dos pequenos piques estanques das proas de ambos os cascos.

90 - O túnel de união dos dois cascos não alagou.

91 - A embarcação não adornou concluindo o perito que tal aconteceu porque o alagamento de ambos os cascos se produziu de forma independente e quase simultânea em cada um deles.

92 - O nível da água no interior da embarcação nunca atingiu a posição possível de entrada de água para o túnel devido ao seu caimento a ré.

93 - Da Peritagem realizada pelo perito da Capitania do Porto de Lisboa consta, além do mais, que:

- “Na altura do abandono, a embarcação manteve-se a flutuar, com acentuado caimento a ré, não apresentando adornamento significativo a qualquer dos bordos, mostrando que se encontrava alagada de forma proporcional nos dois cascos”;

- “A embarcação não afundou, manteve um valor de flutuabilidade positiva, resultante de compartimentos não alagados (ex.: cabine, túnel de ligação entre cascos e pique-tanques)”;

- “Não existem evidências de impacto nas obras vivas com objectos a flutuar”;

- “Os danos observados nas fotografias 36 a 41 poderiam causar a entrada de água em simultâneo nos dois cascos, conforme o descrito na hipótese de cenário no parágrafo 4.4.3”.

94 - Do relatório referido em 93 consta ainda que:

“4.4.3 Hipótese 3 - Alagamento originado por entrada de água por uma ou mais aspirações no fundo dos dois cascos. Relativamente a este cenário de acidente, importa referir:

- O comandante não relata qualquer evento deste tipo no relatório de mar;

- Considerando o estado final de flutuação da embarcação presente nas fotografias 44 e 45, a embarcação não apresenta adornamento para um dos bordos, indicando a presença de água nos dois cascos;

- Verificam-se aberturas para o mar nas aspirações de fundo dos dois cascos (fotografias 36 a 41), desconhecendo-se a causa para o seu estado actual;

- A entrada de água por estas aspirações de fundo, sendo de diâmetro superior a 30mm (superando a capacidade de esgoto descrita no parágrafo 4.3.2) provocaria um alagamento com uma subida rápida do nível de água, face ao débito de entrada de água ser superior ao débito de aspiração das bombas de esgoto”.

95 - O Perito da Capitania do Porto de Lisboa verificou a existência de danos nas duas tomadas de aspiração de água do mar no casco de estibordo, cujas mangueiras de aspiração aparentavam ter sido cortadas, e as válvulas encontravam-se na posição de abertas e verificou ainda que a tomada de fundo no casco de bombordo estava aberta, faltando o bujão roscado que o fecha.

96 – Do ponto 4.4.1 do seu relatório “Impacto com objecto submerso num casco e posterior alagamento ao outro casco”, correspondente à descrição do evento realizada pelo skipper, o perito da Capitania do Porto de Lisboa concluiu que o alagamento não se podia ter produzido da forma por aquele descrita no relatório de mar, não constituindo o eventual rombo no flutuador de bombordo, com posterior progressão do alagamento através do túnel para o flutuador de estibordo, a causa do evento acrescentando que: “Pelo observado na condição de flutuabilidade da embarcação nas fotografias 44 e 45, existe um acentuado caimento a ré, reduzindo a probabilidade de passagem da água por esta abertura e, consequentemente, o alagamento do casco de EB”.

97 – O skipper possuía uma quota de € 4.500 do capital social da empresa, que era de € 5.200.

98 - O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar, não tendo colocado a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas.

99 - Durante as três horas em que o skipper esteve na embarcação nem sequer o local de origem da entrada de água conseguiu determinar, não colocou materiais no eventual rombo do flutuador de bombordo para, assim, atrasar e conter o caudal de alagamento e não fechou as válvulas do circuito de água deste casco que se encontravam abertas, a fim de impedir a entrada de água por estes orifícios.

100 - Ao tempo das declarações de RM junto da Polícia Marítima, o skipper tinha já conhecimento do estado em que se encontrava a embarcação em Marrocos bem como do relatório elaborado pelo perito nomeado pelo Capitão do Porto de Lisboa, que data de 06.03.2019.

**

O Tribunal considerou Não Provados os seguintes factos com relevância para a decisão proferida:

a) Durante o ano de 2015, a Autora dotou a identificada embarcação de diverso equipamento.

b) A embarcação “THE XXXX” tinha as inspecções em dia.

c) Pelas 02H00, hora local, do dia 21 de Outubro, estando a descansar na sala da embarcação, o identificado senhor RM ouviu um barulho no flutuador de Bombordo.

d) Tendo ido verificar o que se tinha passado o identificado senhor RM, encontrou os paneiros da embarcação a flutuar.

e) De imediato o identificado senhor RM tentou encontrar a entrada de água na embarcação e esgotar a mesma através das duas bombas de fundo.

f) O que não foi conseguido tendo subido o nível da água dentro da embarcação passando a haver, também, grande quantidade de água no flutuador de Estibordo.

g) Entretanto o gerador e o motor de Bombordo pararam.

h) Em face do acima descrito o identificado senhor RM tentou rumar a Sines apenas com o motor de Estibordo para tentar salvar a embarcação.

i) Todavia e em virtude da subida do nível de água na embarcação e tendo em conta o corredor de tráfego marítimo achou não ser prudente, por uma questão de segurança, tomar tal rumo.

j) Voltando, assim, ao rumo 262º à vela e a motor, esperando que o dia nascesse para encontrar uma solução.

k) Cerca das 05H00 da manhã daquele mesmo dia 21 de Outubro, a embarcação adornou de repente e ficou numa posição muito instável.

l) E, verificando não ter condições de segurança para permanecer a bordo da embarcação o identificado senhor RM abandonou a mesma fazendo um alerta DISTRESS pelo rádio VHF principal.

m) Já no interior da balsa salva-vidas pelas 05H15, hora local, o identificado senhor RM acionou a EPIRB que, como é sabido, é um rádio baliza de localização que se usa em situações de emergência e deu o alerta de “Mayday”, sinal para alertar uma situação de emergência, por telefone satélite para o MRCC LISBOA (contactos de busca e salvamento) e para o número da sua mulher 351 917 222 503, com a sua seguinte posição: 38,12N - 011,19W.

n) A Autora apenas teve conhecimento em 16 de Janeiro de 2019, através de ofício da Direcção Geral da Autoridade Marítima datado de 18 de Dezembro de 2018 e apenas recebido pela Autora naquela referida data do facto referido em 30.

o) Em 11 de Janeiro de 2019 e fruto de diligências efectuadas junto da Capitania do Porto de Lisboa, o Ilustre Mandatário da Autora foi informado que a embarcação se encontraria em Marrocos.

**


Apreciação da Matéria de Facto

O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

Neste momento processual releva ainda o artigo 662.º do Código de Processo Civil, que começa por afirmar que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”[2].

Como, aliás, assinala o Conselheiro Tomé Gomes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/09/2017 (Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1) é “hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.

 

Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[3], nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:

                        1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);

                        2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).

 

Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[4], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[5], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[6].

 

Verificadas as Alegações e Conclusões da Autora-Recorrente esta diverge:

            i)- quanto à redacção do

                             I - Facto 57.º;

                             II - Facto 58.º;

                             III - Facto 63.º;

                             IV – Facto 64.º;

                             V - Facto 68.º;

                             VI - Facto 73.º;

                             VII - Facto 76.º;

                             VIII - Facto 77.º;

                             IX - Facto 79.º;

                             X - Facto 86.º;

                             XI - Facto 89.º;

                             XII - Facto 90.º;

                             XIII - Facto 91.º;

                             XIV - Facto 93.º;

                             XV - Facto 96.º;

                             XVI - Facto 99.º.

            ii)- quanto à necessidade de acrescentar outros Factos à Factualidade provada:

                                            -a) “A embarcação foi encontrada a 1 de Dezembro de 2018 pelas 21H00 pela Unidade da Marinha Real, ao largo do Oceano Atlântico perto da Região de Kenitra com a posição 34º27.2N 007º0.86’W”;

                                            -b) ”A embarcação “THE XXXX” foi rebocada a 4 de Dezembro de 2018 pelas 20H45 para o porto Militar Casablanca”;

                                            -c) “Na embarcação existia um túnel de ligação entre os dois cascos à popa”;

            iii)- quanto à necessidade e serem considerados provados os factos constantes da alínea b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m).

 

Por sua vez, a Ré-Recorrida pretende, em sede de ampliação:

                             Ia-  a alteração da redacção do Facto 68.º (Considerando o excessivo caudal de alagamento, que nem as bombas submersíveis eléctricas conseguiria conter, o rombo teria de ter uma superfície igual ou superior à área de um círculo de 3 cm de diâmetro);

                             Ib- a alteração da redacção do Facto 98.º (O skipper não colocou a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas);

                             Ic- que seja considerado não provado que “O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar”;

                             Id- a alteração da redacção do Facto 10.º (Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores ao qual a referida embarcação estava afecta, beneficiando de incentivo financeiro não reembolsável no montante de € 143.910,52 concedido pelo Governo Regional dos Açores).

 

Vejamos, um a um, os Factos em causa.

            i)- I – Redacção do Facto 57.º

Na Sentença, o Tribunal a quo refere o seguinte quanto a este Facto: “O facto sob o n.º 57 foi considerado provado tendo em conta o teor do documento 16 junto com a petição inicial, de fls. 48, correspondente a uma fotografia da embarcação no dia em causa”.

A Apelante pretende que seja incluída a data em que o avistamento foi feito.

A Recorrida concorda.

 

Embora nada contrarie o Facto em causa, para ficar mais completo e em face da posição da Recorrida, determina-se que o Facto 57.º passe a ter a seguinte redacção:

57 - A embarcação segura foi avistada, no dia 22 de Outubro de 2018, pela aeronave da FAP P-3C Orion, na posição geográfica 38º08’N-011º33W e permanecia à tona da água, com derrabamento, sem adornamento, estável, à deriva, navegando ao sabor do vento e das correntes.

 

            i)- II – Redacção do Facto 58.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “Os factos sob os números 58 e 72 foi considerado provado tendo em conta o depoimento da testemunha JMB, funcionário da Ré, que confirmou que tais documentos não tinham sido comunicados à Ré, o que já tinha explicado no seu email de 11 de Janeiro de 2019, junto com a contestação a fls. 116-v”.

A Apelante pretende que seja retirada a expressão “nem encetou qualquer iniciativa junto das autoridades oficiais”, uma vez que isso não resulta do depoimento da testemunha JMB (que apenas refere aos relatórios da FAP) e o e-mail (que não se refere aos documentos da FAP).

 

A Recorrida, de forma particularmente minuciosa, contraria a pretensão, entendendo que em face do que já consta dos Factos 71.º e 74.º (que não foram  impugnados).

Em concreto, a apelada assinala: “No dia 14 de Dezembro de 2018, o skipper teve conhecimento de que a embarcação poderia ter aparecido em Marrocos, pelo agente instrutor do processo de inquérito – o agente JPM – nas instalações do Comando Local de Lisboa da Polícia Marítima;

- e após o skipper ter tomado conhecimento do aparecimento da embarcação em Marrocos, a Apelante não levantou a carta registada com aviso de recepção contendo o ofício da DGAM com a comunicação oficial desse facto: Facto Provado no ponto 74 (não impugnado): A Autora não recebeu o ofício e os documentos porque não chegou a levantar a carta registada com aviso de recepção enviada por aquele organismo para a morada da sua sede social, conforme foi explicado pelo Capitão do Porto de Lisboa à Ilustre Mandatária da Ré;

- Processo de averiguações n.º 070.40.06 – 11/18, remetido pela Capitania do Porto de Lisboa, e apenso por linha aos presentes autos em 18.02.2020, designadamente o email remetido em 27 de Novembro de 2018, pelo agente instrutor deste processo, o Agente JPM, ao gabinete do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas a solicitar o relatório de missão SAR relativo ao acidente com a embarcação (fls. 21 a 33 do referido processo);

- Depoimento da testemunha JPM, agente instrutor do processo de averiguações, que declara ter contactado o Sr. RM, skipper da embarcação e sócio maioritário da Apelante, no sentido de informar da deslocação a Marrocos dos peritos e dele próprio para realização da vistoria à embarcação no porto militar de Casablanca para o caso de aquele estar interessado em acompanhá-los, mas que este não se mostrou interessado em acompanhar (acta da audiência de julgamento de 21.05.2021, passagem da gravação: de 00:14:00 a 00:14:15 – com início às 11:11:42 e termo às 11:38:31 horas).

Por autoridades oficiais deve entender-se, não só os órgãos locais da Autoridade Marítima Nacional, ou seja, a Capitania do Porto de Lisboa e o Comando Local de Lisboa da Polícia Marítima que instruiu o processo de averiguações aberto na sequência do evento, e que se encontra apenso aos presentes autos, como também as autoridades marroquinas, directamente ou através do consulado Português em Marrocos.

Ora, resulta dos elementos que integram o processo de averiguações acima identificados que a Autora e o seu sócio maioritário (ponto 97 dos Factos Provados) e skipper da embarcação (ponto 8 dos Factos Provados) – RM - nunca encetaram qualquer iniciativa relativamente à embarcação junto das autoridades oficiais nacionais e estrangeiras nem antes nem após terem sido notificados dos relatórios da Força Aérea, acompanhados das fotografias captadas na altura.

Com efeito, a A. foi notificada desses relatórios em 19.11.2018 (ponto 19 dos Factos Provados), mas nunca os divulgou ou tomou qualquer iniciativa após ter tido conhecimento dos mesmos, nomeadamente divulgando a última posição da embarcação no sentido de a mesma poder ser encontrada e recuperada. Tanto mais que, em 27.11.2018 (após os relatórios serem já do conhecimento da Apelante), é o agente instrutor a solicitar o relatório da missão SAR levada a cabo pela Força Aérea em 21.10.2018 (no desconhecimento do relatório relativo ao avistamento de 22.10.2018), tendo obtido resposta da Força Aérea apenas a 19.12.2018, através do ofício n.º 014138, o qual dá conhecimento do avistamento da embarcação no dia seguinte ao evento, em 22.10.2018, facto que era do conhecimento da Apelante há um mês e que esta nunca divulgou nem solicitou que fosse tomada qualquer diligência para recuperar a embarcação.

Mais, na altura em que o agente instrutor do processo – Agente JPM - recebeu este ofício da Força Aérea já sabia que a embarcação tinha sido encontrada ao largo da costa marroquina e, por isso, já tinha comunicado esse facto ao skipper da embarcação e sócio maioritário da Apelante, em 14.12.2018, sem que, mais uma vez, qualquer iniciativa tivesse sido tomada por parte desta, nomeadamente nunca solicitou informações sobre a localização e estado da embarcação nem que se fizesse uma vistoria à embarcação em Marrocos, pelo contrário, quando essa vistoria lhe foi comunicada pelo agente instrutor do processo, a Apelante nunca demonstrou interesse em acompanhar os peritos nessa vistoria, assim como nunca se propôs ir a Marrocos inteirar-se do estado da embarcação ou zelar pela sua segurança ou contactar as autoridades marroquinas para obter explicações quanto ao estado em que a embarcação se encontrava.

O skipper da embarcação e sócio maioritário da Apelante bem sabia o estado em que a embarcação se encontrava quando a abandonou no dia 21.10.2018, nomeadamente que a mesma não tinha naufragado, e em 19.11.2018 ficou a saber em que posição geográfica a mesma tinha sido avistada pela Força Aérea, e em 14.12.2018 até ficou a saber onde é que a embarcação se encontrava em Marrocos.

Não obstante, a Apelante não tomou qualquer iniciativa relativamente ao salvamento, recuperação e guarda da embarcação junto das diversas autoridades nacionais e estrangeiras nem antes nem após ter recebido os relatórios da Força Aérea. Pelo contrário, nada disse e procurou furtar-se a receber a notificação que lhe foi enviada pela DGAM bem sabendo, por já lhe ter sido dito pelo agente instrutor do processo em 14.12.2018, que se tratava da comunicação oficial de que a embarcação tinha sido encontrada ao largo de Marrocos, demonstrando um profundo desinteresse pela sorte da mesma após a ter abandonado no dia 21.10.2018, o que não é compatível com a atitude de um proprietário zeloso e interessado. Nada há, portanto, a alterar na decisão que recaiu sobre este ponto da matéria de facto que, assim, se deve manter.

 

Sem necessidade de mais acrescento, o conjunto desta prova indicada (e por nós verificada), não permite apreciação distinta daquela que resulta expressa no Facto ora impugnado, pelo que não merece censura a decisão do Tribunal recorrido quanto a ele.

 

            i)- III – Redacção do Facto 63.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “Os factos sob os números 62 e 63 foram considerados provados tendo em conta o relatório da Navaltik e anexos junto ao relatório elaborado pela testemunha AMM, perito nomeado pela Ré, de fls. 165 a 278 conjugado com o depoimento da testemunha JM, autor do referido relatório, que depôs de forma clara, segura e coerente, explicando o momento da emissão do seu relatório e a informação que dispunha à data, convencendo o Tribunal de que falava a verdade e sendo, por isso, acreditado”.

A Apelante entende que do Relatório da Navaltik não pode tirar-se a conclusão que o Tribunal retira, o mesmo sucedendo com o depoimento da testemunha Marreiros Gonçalves.

A Apelada, por seu turno, entende que o Relatório da Navaltik é elucidativo e nada há a alterar.

 

Verificados os depoimentos das testemunhas e o texto do Relatório da Navaltik, torna-se claro o porquê da decisão do Tribunal.

De facto, considerando o teor do Relatório em causa, para o qual o Facto reporta directamente (independentemente da técnica menos adequada, de misturar meios de prova com factos), o que consta escrito é o que resulta do que daquele consta, sendo expressiva e inelutável a referência plural aos flutuadores (sendo-que se se pretendesse fazer alguma restrição, facilmente teria sido feita, nomeadamente, para admitir uma qualquer tese de rombo de apenas um dos flutuadores).

Os testemunhos referidos, por outro lado, não vão além do que escrito ficou, pelo que não há fundamento para qualquer alteração.

 

            i)- IV – Redacção do Facto 64.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “O facto sob o n.º 64 foi considerado demonstrado tendo em conta os depoimentos das testemunhas JM, perito da Capitania do Porto de Lisboa e PS, ex-funcionário de uma empresa representante da vendedora da embarcação, que explicou a constituição da embarcação. Os dois depoimentos em causa foram claros e seguros, convencendo o Tribunal da veracidade do facto em causa”.

A Apelante pretende que em vez de 50 cm deviam constar “de 20 a 30cm”, uma vez que é isso que diz a testemunha JM e a outra testemunha referida nem sequer fala do assunto.

A Apelada, por seu turno, refere que quer em face do Relatório elaborado por AMM, quer do seu depoimento, o Facto está correctamente decidido.

 

A Apelante tem razão num aspecto: a testemunha PS não fala, como parece decorrer do exposto na motivação do Tribunal, deste assunto (o que, no conjunto da complexa apreciação factual dos autos corresponderá a um lapso relevável, que não merece as considerações menos próprias que sobre ele se produzem nas alegações).

Apenas isso.

De facto, ouvida a prova produzida, concatenada com a prova documental junta, o Tribunal decidiu bem.

É certo que a testemunha JCS não é conclusiva no seu depoimento (e por isso não terá sido considerada, embora devesse ter-lhe sido feita referência), mas – efectivamente – não fez (assumidamente) qualquer medição, ao contrário da também testemunha AMM (que produziu o Relatório junto a fls. 122 a 163, em cuja página 13 do relatório -fls. 134- fala em 50cm). Esta última testemunha que fez uma vistoria à embarcação em Marrocos referiu no seu depoimento (a 25/06/2021) – expressamente – ter medido a altura dos paneiros ao fundo do casco da embarcação na zona das escadas do salão para o casco de bombordo aquando da vistoria.

Tudo ponderado, não se vê como o depoimento inconclusivo da testemunha JCS (com a também inconclusiva transcrição feita pela Apelante) pudesse alterar a percepção que decorre do depoimento objectivo, consistente, sólido e de enorme credibilidade da AMM.

Assim, nada se altera quanto a este aspecto.

 

            i)- V – Redacção do Facto 68.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “O facto sob o n.º 68 foi considerado provado tendo em conta o relatório junto em 18 de Setembro de 2019, de fls. 122 a 163, elaborado por AMM, perito nomeado pela Ré, que no seu depoimento explicou os cálculos efectuados no seu relatório, explicando que para a entrada de água ser suficiente para vencer as bombas de esgoto elétricas, conforme relatado por RM, apenas seria possível com um rombo com diâmetro de 3 cm. Os cálculos por si efectuados estão conformes com um dos métodos reconhecidos para cálculo de predição de alagamento de embarcações (neste sentido veja-se o artigo “Flooding Prediction Onboard a Damaged Ship” de Pekka Ruponen, Markku Larmela e Petri Pennanen, disponível em https://www.researchgate.net/publication/268445288_Flooding_Prediction_Onboard_a_Damaged_Ship), sendo por isso considerado credível pelo Tribunal e acreditado”.

A Apelante entende que este Facto devia ser considerado não provado, uma vez que o artigo a que se refere a fundamentação é uma mera apresentação efectuada por três investigadores sobre um estudo que efectuaram de dois casos concretos, relativos a dois navios uma pequena embarcação de ataque rápido (ponto 4.1) e um grande navio de passageiros (ponto 4.2), que nada têm que ver com o dos autos e não lhe pode servir de referência.

A Apelada, por seu turno, entende que nada há a alterar em face da prova produzida (Relatórios de AMM e JM, que apontam para o valor indicado), sendo certo que só agora a Recorrente coloca a fórmula em causa.

 

Também aqui não assiste razão à Apelante.

De facto, o que consta no Facto é bem fundamentado pelo Tribunal e encaixa na perfeição, quer nos Relatórios existentes nos autos, quer nos depoimentos das testemunhas indicadas.

Ou seja, e ao contrário do que a Apelante faz crer, o Tribunal não vai buscar uma obscura fórmula, encontrada num não menos obscuro site, pelo contrário, usa um estudo conhecido e respeitado para confirmar dois relatórios que vão no mesmo sentido e dois depoimentos testemunhais que explicaram de forma convincente o processo de chegada à conclusão final. O essencial, não passa pelo estudo em causa. O essencial passa pela prova efectivamente produzida.

Curiosamente, ambos os Relatórios chegam a conclusões muito próximas:

                       - o de fls. 122 a 163 (a fls. 136-138) – elaborado para a Ré por um perito que também prestou depoimento – faz os cálculos explicando que o rombo teria de ter uma superfície superior à área de um círculo de 3,5cm de diâmetro, (v. pp. 14 a 17 desse relatório);

                       - o de fls. 69 verso a 78 (a fls. 74 e verso) – elaborado pelo Perito da Capitania do Porto de Lisboa que também prestou depoimento – quando descreve a capacidade de esgoto da embarcação e sublinha que a capacidade instalada “permite esgotar um caudal de água de entrada por um orifício de diâmetro aproximado até cerca de 30mm4. Qualquer entrada de água por um orifício de diâmetro superior, seria um alagamento rápido e incontrolável com os meios de esgoto existentes” (é o que consta a fls. 74 verso).

Ou seja, ambos concluem por assumir que só um rombo com um diâmetro superior a 30 milímetros originaria o alagamento.

E de forma clara e explicada.

A alegação da Apelante carece totalmente de fundamento e não resiste à verificação da prova produzida, pelo que nada há a alterar, quanto ao pretendido pela Apelante.

*

Em sede de ampliação (I a)), por seu turno, a Apelada pretende alterar o tempo do verbo constante deste facto, passando de “conseguiu conter”, para “conseguiria conter”, uma vez que o skipper assumiu não as ter accionado porque estavam em modo automático.

Não tem razão a Apelada.

De facto, independentemente da menor credibilidade do depoimento desta testemunha e de ter assumido não ter ligado as bombas, o certo é que assume que estavam ligadas em modo automático e que faziam barulho, pelo que não há razão para entender que não estavam a funcionar.

Assim, a alteração tem-se como desnecessária e inócua, pelo que se indefere o pretendido.

 

            i)- VI – Redacção do Facto 73.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “O facto sob o n.º 73 foi considerado provado tendo em conta o teor do documento junto a fls. 118-v, correspondente ao email de 14 de Janeiro de 2019.

A Apelante entende que a data de 14/01/2019 deveria constar do facto.

A Apelada concorda com a alteração.

 

A data em causa não foi colocada no Facto, embora o pudesse ter sido, sem que o que quer que seja ficasse substancialmente alterado.

Considerando o exposto (a própria fundamentação do Tribunal e a posição da Apelada), determina-se que o Facto 73.º passe a ter a seguinte redacção:

73 - Na sequência do pedido de informação que a Ré dirigiu ao Capitão do Porto de Lisboa, por e-mail datado de 11 de Janeiro de 2019, pelas 7h39m39s veio este, em 14 de Janeiro de 2019, remeter à mandatária da Ré, cópia do ofício n.º 1480, de 18.12.2018, e documentação ao mesmo anexa, que a DGAM tinha enviado à Autora.

 

            i)- VII – Redacção do Facto 76.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “O facto sob o n.º 76 foi considerado provado tendo em conta os depoimentos das testemunhas AMM, JPM e JM, os quais estavam presentes na realização da perícia em causa, em Marrocos, os quais foram concordantes e coerentes entre si e de per si, sendo, por isso, acreditados”.

 

A apelante entende que a referência à supervisão do Coronel M da Brigada (Gendarmerie Royale) deveria ser eliminada por não corresponder a qualquer prova constante dos autos.

A apelada discorda e remete para a prova documental apensa.

 

Trata-se de uma questão relativamente irrelevante, porque não afecta a essência do Facto mas, de facto, a Apelante não tem razão e é ela própria que não verificou com o devido cuidado a documentação dos autos.

 

Embora o Tribunal não lhe tenha feito referência, o “Auto de Diligência” elaborado[7] a 07/11/2019 - no âmbito do Processo de Averiguações n.º 070.40.06 – 11/18, da Polícia Marítima-Comando Local de Lisboa e remetido pela Capitania do Porto de Lisboa (que se mostra apenso aos presentes autos) - refere expressamente que, nessa data, instrutor do processo, perito da Capitania do Porto de Lisboa e perito da ora Ré, se deslocaram à Base Naval da Marinha Real Marroquina, em Casablanca para identificar e inspeccionar a embarcação THE XXXX e que “sob a supervisão do Coronel M, representante da Gendarmerie Royale, acedemos às instalações da Base Naval, onde se apurou que a embarcação THE XXXX  se encontrava naquele local.

Neste contexto, não se vislumbra qualquer fundamento válido para alterar a redacção deste Facto.

 

            i)- VIII – Redacção do Facto 77.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: Os factos sob os números 77 a 85, 87, 88 e 91 foram considerados provados com base no teor do relatório elaborado pela testemunha AMM, perito nomeado pela Ré e junto de fls. 122 a 292, que foi corroborado por si, no depoimento prestado em julgamento, explicando a sua observação da embarcação recuperada e a avaliação que fez dos danos, sendo claro e coerente nas suas explicações e sendo, por isso, acreditado”.

A Apelante pretende que seja acrescentado ao Facto, a frase “com excepção das popas dos dois cascos, desaparecidas a partir das anteparas de vante dos compartimentos dos motores”.

A apelada, por seu turno, entende que a pretensão é redundante, em face do que consta já do Facto 53.º.

 

A manifesta vontade de desvalorizar a Sentença sob recurso, leva a Recorrente a não ler a factualidade apurada de forma concatenada.

De facto, o que consta como provado no Facto 53.º (“As popas dos dois cascos estavam destruídas a partir das anteparas de vante dos compartimentos dos motores”) já diz aquilo que pretende aqui acrescentar, o que torna desnecessário, redundante e inútil a alteração pretendida, que, assim, também se indefere.

 

            i)- IX – Redacção do Facto 79.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da forma referida no item anterior.

A Apelante entende que deve ser eliminada a frase “proporcionando uma entrada livre e franca de água do mar para o interior daquele casco”, uma vez que isso corresponde apenas a uma conclusão da Ré, sendo que do Relatório e fotografias juntas, se vê que a embarcação foi peritada quando estava em seco e não em água.

A Apelada discorda e entende que se deve manter o Facto como está, em face do teor dos Relatórios dos Peritos AMM e JCS.

 

É evidente a falta de razão da Recorrente.

O trecho que se pretende eliminar é a sequência factual lógica do resto do texto do facto, sendo pouco menos que absurda a alegação de que o facto de a embarcação ter sido peritada em seco afecte esta percepção.

A abertura está lá, em seco ou na água e, se há abertura, há – necessariamente – entrada de água… se estiver na água.

Ambos os Relatórios são concludentes nesse sentido (o canhão de fundo estava “aberto para o mar”, a abertura permitia “uma entrada livre e franca da água do mar, capaz de alagar o casco de BB”, “Sem a colocação do bujão, permitiria a entrada livre de água do mar”) e as fotografias são expressivas.

Nada há assim a alterar ao texto do Facto impugnado.

 

            i)- X – “Redacção” do Facto 86.º

A Apelante refere que “embora o ora Recorrente nada tenha a apontar ao facto provado, entende, todavia, que a motivação do douto Tribunal “quo” dá origem a interpretações incorrectas e inverdadeiras, que serviram o propósito da Sentença ora em crise”.

Ou seja, apenas se discorda da fundamentação e não do Facto apurado que, deste modo, se não mostra impugnado, nada havendo – em conformidade – a alterar.

 

            i)- XI – Redacção do Facto 89.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: Os factos sob os números 86, 89 e 90 foram considerados provados tendo em conta os depoimentos das testemunhas AMM e JM, ambos peritos que observaram a embarcação e explicaram a sua estrutura, esclarecendo-se que o túnel referido no facto sob o n.º 90 respeita ao túnel de ligação à proa da embarcação, pois a ligação entre cascos existente à popa da embarcação era apenas para passagem de fios e tubos, sendo de pequena dimensão. Tais depoimentos foram ainda confirmados pelo depoimento da testemunha PS, que foi claro ao afirmar que tais piques estanques, enquanto intactos, impedem o afundamento da embarcação. O seu depoimento revelou conhecimento directo e foi espontâneo, corroborando os demais depoimentos e sendo, por isso acreditado”.

O Facto provado refere “A maioria da reserva de flutuabilidade, no valor de 7,6 m3, encontra-se no túnel de união dos dois cascos a que acresce o somatório dos pequenos piques estanques das proas de ambos os cascos”.

A Apelante entende que deveria ser intercalado entre “união dos dois cascos” e “a que acresce”, as palavras “à proa da embarcação”, uma vez que havia duas ligações entre os cascos.

A Apelada, por seu turno, entende que nada há a alterar.

 

Verificados os Relatórios juntos aos autos e respectivas fotografias (conjugadamente com os depoimentos das testemunhas), cremos também nada haver a alterar de essencial.

De facto, começa por ser evidente que a ligação em causa nem sequer se situa exactamente à proa, mas algo recuado, sensivelmente ao seu centro, pelo que o que se pretende acrescentar só iria criar confusão.

Há, efectivamente, do que resultou da prova produzida em audiência, há duas ligações entre os cascos:

                       - o túnel de união, túnel central, ou estrutura central que liga os dois flutuadores, que é visível quer na planta da embarcação junta a fls. 287, 288 e 289, quer nas fotografias de fls. 72[8] verso, 148[9], 153[10] e 230;

                       - e uma pequena abertura à popa para passagem de cabos e tubos (e que justificou a referência que lhe é feita na motivação, mas que irreleva para o essencial do processo).

O que consta do Facto, reporta-se - de forma evidente - ao referido túnel central, sendo a referida “pequena abertura”, inócua, por nem a própria Autora, proprietária e conhecedora da embarcação, da sua existência ter pretendido tirar qualquer efeito ou conclusão (ainda que meramente indiciada).

Se tal abertura tivesse alguma relevância ela haveria de ter sido referida, explicitada e concretizada, para permitir que a parte contrária sobre tal se pudesse pronunciar.

Ora, nem isso ocorreu, nem a sua relevância ultrapassou a barreira do interesse para o processo e a compreensão da factualidade apurada. O Tribunal não trabalha com indícios especulativos, mas com factos.

Utilizar o recurso para, agora, especular com esta “pequena abertura” é que, de facto, não faz sentido.

Assim, nada há a alterar.

 

            i)- XII – Redacção do Facto 90.º

Aqui a pretensão da Apelante é similar à do item anterior em termos de alteração da redacção dada pelo Tribunal a quo.

E a resposta, aqui, é também a mesma: acrescentar “à proa da embarcação” ao que consta do Facto 90.º seria causar confusão, porque não há qualquer dúvida sobre o túnel que está em causa (e que não se situa propriamente à proa).

Nada a alterar, portanto.

 

            i)- XIII – Redacção do Facto 91.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “considerado provado com base no teor do relatório elaborado pela testemunha AMM, perito nomeado pela Ré e junto de fls. 122 a 292, que foi corroborado por si, no depoimento prestado em julgamento, explicando a sua observação da embarcação recuperada e a avaliação que fez dos danos, sendo claro e coerente nas suas explicações e sendo, por isso, acreditado”.

A Apelante pretende que apenas fique a constar do Facto que “A embarcação não adornou”, uma vez que o “concluindo o perito que tal aconteceu porque o alagamento e ambos os cascos se produziu de forma independente e quase simultânea em cada um deles”, corresponde apenas à conclusão do perito.

A Apelada defende a manutenção do Facto.

 

A Apelante tem razão quanto à circunstância de a técnica de resposta utilizada ser menos adequada: de facto e conforme bem salienta Tomé Gomes o “teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento, sendo de banir dizeres como provado apenas que ‘a testemunha... viu o réu a entrar na casa do autor’ ou, no caso em se discuta a origem de um incêndio, provado apenas que ‘os bombeiros verificaram não existir no local sinais do foco de incêndio’.

Estas referências aos meios de prova, quando muito, podem constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.  

Nessa linha, o que se requer é que o julgador assuma uma posição clara sobre o julgamento de facto, decidindo o que deve decidir, sem evasivas. Por exemplo, se o que está em causa é apurar a origem de um incêndio, o que o juiz tem de ajuizar é se o facto para tal alegado está ou não provado, sendo que a verificação pelos bombeiros de não existir sinais do foco de incêndio é apenas um dos meios de prova nesse sentido. Igualmente, se o que está em discussão é indagar sobre a vontade real, expressa ou tácita, manifestada num contrato escrito, o que tem de ser decidido é se está ou não provada a alegada vontade real, pelo que, muitas vezes, o dar como provado apenas o que consta do documento se traduz numa forma evasiva de julgar aquela questão”[11].

Nesta base e considerando o teor da própria fundamentação, bem assim como o material probatório a que se reporta, importa sim alterar a redacção do Facto, de forma a que – sem evasivas – se assuma o que da prova produzida efectivamente resultou, ou seja, que “A embarcação não adornou porque o alagamento em ambos os cascos se produziu de forma independente e quase simultânea em cada um deles”.

A Apelante não concorda com esta conclusão discordando do Relatório elaborado pela também testemunha AMM e apelando ao depoimento da testemunha RM.

Sem razão, cremos, por um lado porque o referido por esta última testemunha nada altera e nada contribui para a conclusão contrária e, por outro, porque já temos como assentes os Factos 88.º, 89.º e 90.º (que abarcam ausência de adornamento e cálculo da reserva de flutuabilidade da embarcação) e consta dos autos o Relatório elaborado por AMM (fls. 122 a 163 – posteriormente completado com um seu depoimento na audiência de 25/06/2021 exaustivo, sempre sereno, consistente e assertivo e de enorme credibilidade como já se disse) é particularmente completo, claro e compreensível, onde se conclui que “a embarcação não tem banda (adornamento), e, tal só é possível, porque o alagamento dos cascos se produziu de forma independente em cada um deles”  e que “o alagamento do casco de EB foi obrigatoriamente independente do alagamento do casco de BB uma vez que, para o casco de EB alagar, por transferência de água do casco de BB tal iniciar-se-ia através do Túnel que liga os dois cascos sendo que, neste caso, só depois do túnel alagado é que a água transbordaria para o casco de EB, já que a embarcação teria de estar adornada a bombordo e, a ser assim a embarcação ter-se-ia afundado por perda da Reserva de Flutuabilidade, o que é um facto não ter acontecido”.

De tudo resulta que qualquer defesa no sentido de que a água do mar tivesse entrado pelo casco de bombordo e passasse para o de estibordo, estaria condenada ao naufrágio, porque a ocorrência dessa circunstância levaria – precisamente – ao naufrágio da embarcação (que não ocorreu).

Neste contexto, determina-se a alteração da redacção do Facto 91.º, em termos de dele passar a constar:

91 - A embarcação não adornou porque o alagamento em ambos os cascos se produziu de forma independente e quase simultânea em cada um deles.

 

            i)- XIV – Redacção do Facto 93.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “Os factos sob os números 93, 94, 95 e 96 foram considerados provados tendo em conta o teor do relatório de perícia por si elaborado e junto como documento 30 com a petição inicial, de fls. 69-v a 78, o qual foi corroborado pelo depoimento da testemunha JM, autor do referido relatório”.

A Apelante pretende que não constem do Facto apenas conclusões da Peritagem em causa.

Valem aqui as mesmas considerações já expressas no item anterior.

A técnica utilizada não é a melhor, mas compreende-se a opção do Tribunal na escolha destas conclusões, por corresponderem ao que considera provado, sendo certo ainda que nos Factos 40.º e 41.º já constam algumas das obtidas nessa Peritagem.

Ou seja, o Tribunal, sem enveredar por especulações deixou aqui o seu entendimento quanto a esta matéria, assumindo estas conclusões como suas, face à conjugação que fez da prova produzida.

Por isso, acrescentar no Facto que “Existe a possibilidade de terem sido realizados danos na embarcação posteriormente ao acidente, durante o reboque e transporte para seco”, não faria qualquer sentido, por ser apenas especulativo e inconsistente.

É matéria que - efectivamente - se não provou, pelo que, tudo o que no processo resultou apurado consta nos Factos que constam da Sentença.

Neste aspecto, nada a alterar, portanto.

 

Do mesmo modo, pedir para acrescentar “Tendo por base os eventos apresentado no Relatório de Mar em Anexo A e a avaliação do estado actual da embarcação (parágrafo 3) não é possível identificar inequivocamente (negrito nosso) a causa do acidente”, revela apenas uma menor atenção ao conjunto da Factualidade apurada, pois isso já consta do Facto 40.º.

Do mesmo modo que o Facto 41.º já diz que “Resulta, ainda, daquele relatório que, e transcreve-se: “A embarcação não reúne condições de segurança e navegabilidade para retomar a actividade a que se destina, em virtude da inexistência da integridade estrutural do casco e da inoperacionalidade dos sistemas de propulsão e governo, dos equipamentos náuticos e de manobra”.

Não há, assim, nada a acrescentar ao Facto 93.º do pretendido pela Apelante, alterando sim a sua redacção em conformidade com o exposto, passando a dizer:

93 – i) Na altura do abandono, a embarcação manteve-se a flutuar, com acentuado caimento a ré, não apresentando adornamento significativo a qualquer dos bordos, mostrando que se encontrava alagada de forma proporcional nos dois cascos;

            ii) A embarcação não afundou, manteve um valor de flutuabilidade positiva, resultante de compartimentos não alagados (ex.: cabine, túnel de ligação entre cascos e pique-tanques);

            iii) Não existem evidências de impacto nas obras vivas com objectos a flutuar;

            iv) Os danos observados nas fotografias 36 a 41 poderiam causar a entrada de água em simultâneo nos dois cascos, conforme o descrito na hipótese de cenário no parágrafo 4.4.3 do Relatório de Peritagem de fls. 69-75.

 

            i)- XV – Redacção do Facto 96.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da forma referida no item que antecede.

A Apelante entende que a conclusão é do Tribunal e não do Perito, pelo que o Facto tem de ser dado como Não Provado.

A Apelada entende que nada há a alterar.

Considerando o já exposto e a técnica utilizada na redacção deste Facto, importa dar alguma razão à Apelante e seguir a mesma linha do decidido quanto a Factos anteriores.

Para começar, há que fugir a “factos especulativos” e conclusivos, mas principalmente, há que verificar o que é que factualmente decorre da prova produzida.

Assim, considerando ainda o que se mostra apurado no Facto 63.º, da redacção deste facto o que pode manter-se é a sua parte final, que pode ser assumida sem dificuldade em face dos Relatórios e dos depoimentos das testemunhas inquiridas (nomeadamente a testemunha JM), respeitando, aliás, a leitura correcta e adequada feita pelo Tribunal a quo. Ou seja, “A embarcação, pelo observado nas fotografias 44 e 45 (juntas a fls. 74 e tiradas a 20/10/2018), denotava uma condição de flutuabilidade com um acentuado caimento a ré, reduzindo a probabilidade de passagem da água pela abertura visível na fotografia 30 (junta a fls. 72 verso) e, consequentemente, o alagamento do casco de EB”.

É o que se determina, passando o Facto 96.º a ter a seguinte redacção:

96 - A embarcação, pelo observado nas fotografias 44 e 45 (juntas a fls. 74 e tiradas a 20/10/2018), denotava uma condição de flutuabilidade com um acentuado caimento a ré, reduzindo a probabilidade de passagem da água pela abertura visível na fotografia 30 (junta a fls. 72 verso) e, consequentemente, o alagamento do casco de EB.

 

            i)- XVI – Redacção do Facto 99.º

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma: “tendo em conta o depoimento da testemunha RM, skipper da embarcação, que apesar das várias insistências para explicar o que foi por si feito nas três horas que medeiam entre o descobrir o alagamento e o abandonar do navio, referiu que procurou, sem encontrar, o ponto de entrada da água na embarcação e como não o encontrou, esperou pela luz do dia para procurar uma  solução, não tendo fechado as entradas de água ou feito qualquer outro acto concreto para impedir o alagamento da embarcação, o que foi acreditado pelo Tribunal, tendo em conta o avançar do alagamento da embarcação e o seu parcial afundamento”.

A pretensão da Apelante é algo confusa pois começa por dizer que “o único facto que aqui pode ficar provado é que o Skipper Senhor RM não conseguiu determinar o local de origem da entrada de água”, concluindo depois que, “por não se tratar de qualquer facto, deve ser dado como não provado”.

A Apelada, por seu turno, defende a manutenção da redacção.

 

Neste ponto tem total razão a Apelada, sendo de concordar com a sua minuciosa apreciação, que afasta por completo a versão apresentada pela Autora:

            - ao sublinhar o que já consta apurado no Facto 85.º (“No interior do casco de estibordo, o perito constatou que duas válvulas de 15mm de diâmetro do circuito de água do mar para alimentação das casas de banho estavam abertas…”);

            - ao relembrar que no Relatório de Mar apresentado pelo skipper da embarcação (e junto a fls. 45 verso), o próprio RM assume não ter realizado qualquer dessas operações e o depoimento deste na audiência de 20/05/2021 (ao afirmar que viajava com as válvulas do circuito de água de qualquer dos cascos sempre abertas) e que, mesmo com o alagamento da embarcação a produzir-se, não fechou as referidas válvulas que, assim, permaneceram abertas;

            - ao chamar à colação o testemunho de AMM (perito nomeado pela Ré, que produziu um testemunho de imensa credibilidade, saber e assertividade esclarecedora[12]), que na audiência de 25/06/2021, explicou o que havia a fazer para controlar a progressão do alagamento: um navegador em solitário, ao detectar um alagamento, o que devia ter feito era procurar rapidamente a sua origem (sendo difícil de crer que a não tivesse encontrado pois se trataria de um turbilhão visível e está em causa um espaço pequeno, exíguo, com uma parte susceptível de alagamento pequena) e, a partir daí, tentar limitar a avaria com os meios que tivesse disponíveis (por exemplo, um pedaço de madeira com trapo para estancar) e verificar a capacidade de esgoto, sendo que, em 15 minutos tudo estaria feito, não fazendo sentido que alguém ficasse 3 horas à espera, pois se não conseguisse fazer o estancamento, de imediato, haveria de pedir ajuda externa).

Assim, nada há a alterar à redacção do Facto.

 

            ii)- quanto à necessidade de acrescentar outros Factos à Factualidade provada:

                             -a) “A embarcação foi encontrada a 1 de Dezembro de 2018 pelas 21H00 pela Unidade da Marinha Real, ao largo do Oceano Atlântico perto da Região de Kenitra com a posição 34º27.2N 007º0.86’W”);

                             -b) ”A embarcação “THE XXXX” foi rebocada a 4 de Dezembro de 2018 pelas 20H45 para o porto Militar Casablanca”);

                             -c) “Na embarcação existia um túnel de ligação entre os dois cascos à popa”;

 

Em face do que consta provado nos Factos 30.º, 69.º, 70.º e 89.º (no âmbito de cuja impugnação se apreciou já a questão desta pequena abertura), não há que acrescentar mais nada à Factualidade Assente, por inútil e irrelevante.

 

            iii)- quanto à necessidade e serem considerados provados os factos constantes da alínea b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m), dos Factos não provados

O Tribunal fundamentou a decisão nos seguintes termos: “Assim e mais concretamente, quanto ao facto sob a alínea a), respeitante ao equipamento adicionado à embarcação, o mesmo foi considerado não provado porquanto apesar das facturas juntas aos autos como documentos 3 a 8 com a petição inicial, de fls. 14-v a 17, tal facto foi impugnado pela Ré e nenhuma prova foi feita que demonstrasse que tal equipamento foi adicionado concretamente à embarcação em discussão nos autos.

O facto sob a alínea b) foi considerado não provado por ter sido impugnado pela Ré e não ter sido junta aos autos prova documental da realização das inspecções devidas.

Os factos sob as alíneas c), a m) foram considerados não provados porquanto o depoimento da testemunha RM quanto à descrição dos acontecimentos que levaram ao alagamento da embarcação não se afiguraram ao Tribunal coerentes ou credíveis, pelas razões que se passam a expor.

RM declarou que ouviu um barulho, quando estava a descansar na sala da embarcação e que se dirigiu logo ao flutuador de bombordo encontrando-o já alagado e com os paneiros a flutuar. Ora, para tal ocorrer, marcando o barulho o início de alagamento, tal implicaria uma entrada repentina e maciça de água no flutuador, o que, conforme explicou a testemunha AMM, teria que ser um rombo bastante grande, que permitisse o embarque de milhares de litros de água em poucos segundos, coerente com um evento catastrófico. Mais explicou a testemunha que para vencer o débito das bombas eléctricas, o rombo teria de ser igual ou superior a um diâmetro de 3cm. Ora, um rombo de 3 cm no casco, impunha um forte embate na embarcação que não poderia produzir apenas um barulho, mas também algum tipo de estremecimento na embarcação. Caso as condições meteorológicas fossem adversas, com chuva, vento e forte ondulação, poderia o skipper ter dificuldade em distinguir o estremecimento da pancada com o movimento da embarcação devido a forte ondulação ou aos ventos, mas no caso dos autos, as condições meteorológicas eram favoráveis e o mar estava calmo, pelo que não é credível a ausência de percepção de um embate capaz de provocar um rombo de, pelo menos, 3 cm de diâmetro na embarcação, para vencer o débito das bombas ou o outro rombo, necessariamente maior, que permitisse o embarque de milhares de litros de água em poucos segundos. A testemunha também não foi capaz de explicar de forma convincente ao Tribunal o porque de esperar por três horas, quando não conseguiu encontrar a origem do alagamento e se tornou evidente que as bombas de escoamento da água da embarcação não impediam o progredir do alagamento.

Sendo o alagamento da embarcação devido a uma qualquer “avaria/acontecimento”, no interior do flutuador, a explicação da espera pela luz do dia, quando o flutuador estava iluminado, não tem qualquer lógica ou coerência. Quanto ao adornamento repentino da embarcação, tal não é compatível com o estado da embarcação aquando do resgate e registado no vídeo realizado pela Força Aérea Portuguesa, pois o adornamento apenas se poderia explicar pelo alagamento de apenas um flutuador e que, como o peso da água se afundasse, levantando o outro flutuador.

Mas se tal ocorreu, como voltaria a embarcação à posição horizontal e com o afundamento da popa do flutuador “levantado”, sem uma força exterior que “empurrasse” o flutuador até este atingir um nível que permitisse a entrada de água no mesmo? A resposta lógica é que tal não é possível. Ora, mais uma vez, não havendo chuva, vento ou forte ondulação que forçasse entrada de água no flutuador levantado no adornamento alegado, a embarcação tendo adornado, permaneceria nesta posição. Como se referiu, a embarcação foi avistada simetricamente afundada à ré, ou seja, teriam ambos os flutuadores de estar simetricamente alagados, o que impediria o adornamento da embarcação. Em suma, o relato da dinâmica dos acontecimentos pela testemunha RM não é coerente ou lógica com o estado da embarcação verificado no vídeo da Força Aérea Portuguesa aquando do seu resgate, sendo este um dado objectivo e concreto que o Tribunal não pode ignorar e a partir do qual tem de proceder à análise da demais informação carreada aos autos, o que torna o depoimento da referida testemunha, no seu todo, quanto à dinâmica dos factos insusceptível de ser acreditado, não o tendo sido, efectivamente.

O facto sob a alínea n) não foi considerado provado porquanto em contradição com o facto provado sob o n.º 71 e pelas exactas razões em que aquele foi acreditado. Ou seja, em momento anterior, a testemunha JPM já tinha informado RM que a embarcação tinha sido encontrada. RM, no seu depoimento, disse que naquela data, o agente da polícia marítima não lhe tinha dado a certeza de ser a embarcação da Autora, mas nas suas declarações na polícia marítima faz a distinção de que apenas em Janeiro de 2019 foi oficialmente informado de tal facto, o que faz crer que, em momento anterior, ainda que não oficialmente, já sabia de tal facto.

O facto sob a alínea o) não foi considerado provado por não se ter feito prova quanto ao mesmo.

Os demais factos constantes na petição inicial e na contestação foram considerados conclusivos ou irrelevantes (a existência de notícias sobre o evento em discussão nos autos), razão pela qual não foram levados à matéria de facto provada ou não provada.

O depoimento da testemunha ADM, engenheiro com formação em mecânica e construção naval, não foi relevante para prova de nenhum facto alegado, pois não observou a embarcação ou estudou a mesma, não revelando conhecimento directo dos factos para poder emitir um parecer sobre o que teria ocorrido que justificasse o alagamento da embarcação, limitando-se a partir do pressuposto que o relato feito pelo skipper da embarcação correspondia ao ocorrido e desvalorizando todos os factos que pusessem em caso tal relato, o que põe em causa a sua objectividade e logo a sua credibilidade”.

 

Começando pela questão das inspecções da embarcação (alínea b), nada há a alterar, uma vez que se criou no processo mais do que uma dúvida séria quanto à utilização marítimo-turística do “The Xxxx”: a Ré comprovou (documentos de fls. 343, 344, 346, 347-348 destes autos e fls. 10, do apenso que constitui o Processo de Averiguações n.º 070.40.06 – 11/18, da Polícia Marítima-Comando Local de Lisboa e remetido pela Capitania do Porto de Lisboa), que a embarcação tem averbado o “exercício da actividade marítimo-turística, em exclusividade, na zona exclusiva dos Açores”, o que a faz ficar abrangida por um diferente regime legal  (Decreto-Lei n.º 149/2014, de 10 de Outubro, que aprovou o Regulamento das Embarcações utilizadas na Actividade Marítimo-Turística), que obriga a vistorias anuais - artigo 11.º, n.ºs 1 e 4 – sendo que nenhum documento destas vistorias anuais obrigatórias foi apresentado pela Apelante.

Tratando-se de matéria cuja prova caberia à Autora, a conclusão foi a assumida pelo Tribunal a quo: Não Provado.

*

Quanto aos restantes factos não provados, a Apelada sublinha que “Inexiste qualquer inconsistência no raciocínio realizado pelo tribunal a quo na apreciação da prova produzida, conforme se demonstra abaixo”.

A Apelante, por outro lado - basicamente - assenta a sua discordância no que consta do “Relatório de Mar” e da testemunha RM (skipper da embarcação e sócio maioritário da Autora) e procura encontrar contradições ou imprecisões no decidido.

Sem qualquer razão, sublinhe-se.

No que respeita ao porquê do decidido a fundamentação do Tribunal é exemplar em termos de compreensibilidade do raciocínio, de desmontagem da tese apresentada pelo skipper, e de acerto.

*

Neste ponto, vale a pena, a este propósito, começar por assinalar que a factualidade apurada nos Factos 9.º, 13.º, 43.º, 55.º, 56.º, 57.º, 59.º, 60.º, 61.º, 65.º, 77.º, 78.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 83.º, 85.º, 88.º, 89.º, 90.º, 91.º, 92.º, 93.º, 94.º, 95.º e 96.º contradiz a versão apresentada pela Autora, o que – logo à partida – impediria que os factos não provados passassem a provados.

Por outro lado, a simples audição do depoimento da testemunha AMM deixa a versão sustentada pela testemunha RM completamente descredibilizada e insustentável (como decorre do que já acima se disse, quanto à detectabilidade do alagamento e forma de lhe reagir; mas também do “barulho” que teria de ser anormal e não um simples…barulho; e do que explicou no sentido de a água não poder ter passado para o flutuador de estibordo, porque caso contrário a embarcação perdia reserva de flutuabilidade e afundava, o que não aconteceu; e do esclarecimento de que o skipper não podia ter navegado rumo a Sines, na direcção Sudeste, e retornado ao rumo 262º porque, nesse caso, não podia estar na posição em que se encontrava quando emitiu o DISTRESS, cerca das 05:00 horas, posição que foi fornecida pelo AIS da embarcação, mas teria de estar mais a Sul e só seria possível encontrar-se na posição em que se encontrava se não tivesse navegado;  e da conclusão pela impossibilidade de não poder haver adornamento repentino às 05:00 e de que o alagamento estabilizava a embarcação e vez de a tornar instável).

Mais, o seu Relatório (junto a fls. 122 a 163) analisa o Relatório de Mar e as declarações que o dito RM prestou à Navaltik, demonstrando a sua falta de sustentabilidade e razoabilidade.

E a isto acresce que mesmo o Relatório elaborado pelo perito da Capitania do Porto de Lisboa (fls. 69-v a 78), não confirma a versão do skipper.

Por outro lado, o próprio RM produz afirmações em audiência que se viram contra si próprio, nomeadamente quando aceita que quando deixou a embarcação esta se encontrava como mostram as imagens registadas pela Força Aérea aquando do resgate

 

Sublinhe-se que apesar de a versão apresentada pelo skipper não ter lógica nem sustentação, isso não obsta a que se aceite que a embarcação tenha alagado e que nela ele tenha permanecido várias horas antes de a abandonar (pese embora a estranheza que tal possa provocar).

Por outro lado, concorda-se com a Apelada quando sustenta que:

                       - “como a própria motivação da decisão explica, considerando o nível de alagamento declarado pelo skipper, tal implicava que tivesse havido um rombo no casco da embarcação que produzisse outro tipo de efeito que não um mero barulho”;

                       - “o tribunal nunca entendeu que a entrada de água na embarcação tivesse sido massiva e repentina, tendo-se limitado a apreciar o declarado pelo skipper para aferir da credibilidade do seu depoimento e concluiu que nenhuma credibilidade havia no mesmo, e assim considerou não provada a matéria da al. d) dos Factos Não Provados”;

                       - “a al. e) dos Factos Não Provados não se reporta, como pretende Apelante, apenas às bombas de esgoto da embarcação e o ponto 68 dos Factos Provados não refere que o skipper colocou as bombas de esgoto a funcionar, mas apenas que as bombas foram utilizadas pelo skipper, o que é diferente”;

                       - “no que toca às als. f), g), h), i) e j) dos Factos Não Provados, o tribunal limitou-se a negar a versão da Apelante quanto às circunstâncias do evento e à navegação rumo a Sines, já que as posições da embarcação obtidas através do sinal do AIS que a embarcação tinha a bordo revelam que de dia 20.10.2018 para dia 21.10.2018 a embarcação manteve o rumo que levava para os Açores, não demonstrando qualquer desvio a esse rumo ou tentativa de rumar ao porto de Sines. Como refere o relatório elaborado por AMM, considerando uma velocidade média de 5,3 nós entre as duas posições fornecidas pelo AIS: “a embarcação estaria numa posição estimada (uma vez que não é fornecida a posição à hora do Evento) muito próxima da posição do pedido de socorro efectuado às 0417 UTC (0517HLocal) e subsequente abandono” (p. 21 e 22)”;

                       - “independentemente do que o skipper entenda por adornamento, e não pareceu que o seu entendimento seja diferente dos demais mortais, a verdade é que confirmou que a embarcação se encontrava no estado registado pela Força Aérea a fls. 280 quando a abandonou, ou seja, a embarcação não adornou, não podendo ser considerada provada a matéria constante da al. k) dos Factos Não Provados. Portanto, o relatado pelo skipper não tem qualquer semelhança nem é compatível com o estado em que a embarcação se encontrava, sendo certo que, conforme está provado, as condições de tempo e mar eram boas”;

                       - “quanto aos factos constantes das als. l) e m), o tribunal a quo deu apenas como provados os factos constantes dos pontos 59 e 61 da douta decisão recorrida, factos que a Apelante não impugnou no seu recurso”.

 

Nesta base, tem-se como insustentável a pretensão da Apelante, indeferindo-se totalmente no que concerne à matéria de facto não provada.

*

Por fim e quanto à matéria de ampliação:

            Ib- a pretendida alteração da redacção do Facto 98.º (de O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar, não tendo colocado a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas”, para “O skipper não colocou a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas), corresponde à posição assumida pelo próprio skipper em sede de audiência, pelo que se defere a pretensão da Apelada, passando este Facto a ter a seguinte redacção:

98 - O skipper não colocou a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas.

 

               Ic- em sequência e pela mesma razão e fundamento, determina-se que seja acrescentado aos Factos não Provados um Facto p), com a seguinte redacção:

“O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar”.

 

               Id- a alteração da redacção do Facto 10.º (“Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores ao qual a referida embarcação estava afecta”), de forma a acrescentar-se-lhe “beneficiando de incentivo financeiro não reembolsável no montante de € 143.910,52 concedido pelo Governo Regional dos Açores”, para corresponder à prova documental que foi produzida (documentos de fls. documentos de fls. 343, 344, 346, 347-348 destes autos). Neste sentido e embora não tenha particular relevância para a decisão da causa, defere-se a pretensão deduzida, passando o Facto 10.º a ter a seguinte redacção:

10 - Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores, beneficiando de incentivo financeiro não reembolsável no montante de € 143.910,52 concedido pelo Governo Regional dos Açores.

 

**

Em face de tudo o exposto e em síntese, a matéria de facto terá de ser alterada nos seguintes termos:

                       I - Altera-se a redacção do Facto 10.º dos Factos Provados, o qual passa a dizer o seguinte:

10 - Foi programada uma viagem, com a embarcação, de Lisboa para Ponta Delgada, nos Açores para a vistoria anual a ser realizada pela DGRM e para as necessárias inspecções no âmbito de um projecto de desenvolvimento turístico dos Açores, beneficiando de incentivo financeiro não reembolsável no montante de € 143.910,52 concedido pelo Governo Regional dos Açores.

 

                       II - Altera-se a redacção do Facto 57.º dos Factos Provados, o qual passa a dizer o seguinte:

57 - A embarcação segura foi avistada, no dia 22 de Outubro de 2018, pela aeronave da FAP P-3C Orion, na posição geográfica 38º08’N-011º33W e permanecia à tona da água, com derrabamento, sem adornamento, estável, à deriva, navegando ao sabor do vento e das correntes.

 

                       III - Altera-se a redacção do Facto 73.º dos Factos Provados, o qual passa a dizer o seguinte:

73 - Na sequência do pedido de informação que a Ré dirigiu ao Capitão do Porto de Lisboa, por e-mail datado de 11 de Janeiro de 2019, pelas 7h39m39s veio este, em 14 de Janeiro de 2019, remeter à mandatária da Ré, cópia do ofício n.º 1480, de 18.12.2018, e documentação ao mesmo anexa, que a DGAM tinha enviado à Autora”.

 

                       IV - Altera-se a redacção do Facto 91.º dos Factos Provados, o qual passa a dizer o seguinte:

91 - A embarcação não adornou porque o alagamento em ambos os cascos se produziu de forma independente e quase simultânea em cada um deles.

 

                       V - Altera-se a redacção do Facto 93.º dos Factos Provados, o qual passa a dizer o seguinte:

93 – i) Na altura do abandono, a embarcação manteve-se a flutuar, com acentuado caimento a ré, não apresentando adornamento significativo a qualquer dos bordos, mostrando que se encontrava alagada de forma proporcional nos dois cascos;

            ii) A embarcação não afundou, manteve um valor de flutuabilidade positiva, resultante de compartimentos não alagados (ex.: cabine, túnel de ligação entre cascos e pique-tanques);

            iii) Não existem evidências de impacto nas obras vivas com objectos a flutuar;

            iv) Os danos observados nas fotografias 36 a 41 poderiam causar a entrada de água em simultâneo nos dois cascos, conforme o descrito na hipótese de cenário no parágrafo 4.4.3 do Relatório de Peritagem de fls. 69-75.

 

                       VI - Altera-se a redacção do Facto 98.º dos Factos Provados, o qual passa a dizer o seguinte:

98 - O skipper não colocou a bomba manual com a capacidade de 45 l/min a esgotar a água por forma a aumentar a capacidade de esgoto das outras duas bombas submersíveis eléctricas.

 

                        VII - Acrescenta-se aos Factos Não Provados o Facto p), com a seguinte redacção:

p) “O skipper colocou as duas bombas de esgoto eléctricas a funcionar”.

 

 

Fundamentação de Direito

O Tribunal a quo julgou a acção improcedente com base no seguinte processo de raciocínio:

               I - A questão principal a decidir passa por saber se por via do contrato de seguro celebrado entre as partes, a Ré está obrigada a indemnizar a Autora da perda total da embarcação registada na Capitania do Porto de Lisboa sob o n.º 18386LXF;

               II - A Autora alegou que a embarcação naufragou devido a causa indeterminada que provocou o rápido alagamento da embarcação e, por fim, o seu naufrágio, impondo que o skipper abandonasse a embarcação, o que consubstanciaria um dos casos de fortuna de mar e logo abrangido pela cobertura acordada com a Ré;

               III - A Ré entende que o alagamento não se deu conforme descrito pela Autora, impugnando a sua versão, mas terá sido provocado por intervenção propositada do skipper da embarcação (uma vez que era a única pessoa na embarcação) e que, por tal facto, não haverá lugar a pagamento da indemnização por estar excluída da apólice ou, caso assim não se entenda, sempre a actuação do skipper consubstanciaria barataria, pois nada fez durante três horas, para impedir a progressão do alagamento da embarcação, o que também exclui a responsabilidade da Ré;

               IV - A questão coloca-se no âmbito do contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré tendo por objecto seguro a referida embarcação registada sob o n.º 18386LXF;

               V - O seguro marítimo de navios ou de cascos corresponde, antes de mais, a um dos subtipos dos seguros de danos, abrangendo os danos sofridos por toda e qualquer espécie de embarcação marítima, lacustre ou fluvial (artigo 123.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 94-B/98);

               VI – Tendo por objecto o navio ou o seu casco insere-se dentro da categoria dos seguros contra riscos do mar (regulados especialmente nos artigos 595.º a 615.º do Código Comercial, na medida em que se refere a coisas e valores estimáveis a dinheiro expostos àquele risco - artigo 597.º do Código Comercial);

               VI – O segurador compromete-se, mediante o pagamento de um prémio, a indemnizar o segurado do prejuízo sofrido pelo navio e/ou respectivo casco em consequência da sua exposição aos perigos de uma expedição marítima e pelo facto da superveniência de certos riscos;

               VII – Estes riscos marítimos não são mais do que os incidentes relacionados com a navegação no mar, seja porque derivados do facto de poderem ocorrer por causa do meio em que a viagem se desenvolve, seja ainda pela razão única de afectarem os bens envolvidos nessa viagem, ainda que o motivo do risco seja estranho ao meio marítimo, mas porque ali ocorre. Os riscos marítimos são, pois, as causas que dão, próxima ou remotamente, origem aos danos, prejuízos ou perdas do objecto do seguro;

               VIII - Em regra, o segurador responde pelos danos decorrentes de fortuna de mar, como a borrasca, naufrágio, varação, abalroação, mudança forçada de rota, de viagem ou de navio, por alijamento, incêndio, violência injusta, explosão, inundação, pilhagem, quarentena superveniente, e, em geral, por todas as demais fortunas de mar que acontecerem durante o tempo dos riscos segurados, excluindo-se, porém, os danos resultantes de: Barataria do capitão (e, em geral, da tripulação); Natureza das coisas; Estipulação legal ou convenção em contrário;

               IX – Salvo convenção em contrário, o seguro não cobre: Despesas de navegação, pilotagem, reboque ou quarentena; Direitos de tonelagem, ancoradouro ou saúde pública; Danos decorrentes de descarregamento, armazenamento e carregamento de mercadorias em escala (artigos 607.º e 611.º do Código Comercial);

               X - No caso de dúvida sobre a causa da perda dos objectos segurados, presume-se haverem perecido por fortuna do mar, com a consequência de o segurador ser responsável (artigo 605.º do Código Comercial);

               XI – Essa presunção implica que o segurado prove os factos constitutivos do seu direito, o que significa que ele deve demonstrar que o risco marítimo é a causa da perda e que o mesmo está coberto, sendo que, só depois desses factos terem sido contraditados pelo segurador é que se verifica o pressuposto de aplicação do artigo 605.º do Código Comercial: a existência de uma situação de dúvida;

               XII – Essa presunção apenas acontece nos casos em que o segurador assume a responsabilidade por todos os riscos do mar (all risks).

               XIII - A fortuna do mar consubstancia-se no acontecimento ocorrido no mar que a maior prudência e diligência do capitão e ou dos outros membros da tripulação é insusceptível de prevenir ou evitar;

               XIV – Factualmente, a embarcação alagou e submergiu parcialmente no dia do resgate do skipper, tendo sido recuperada ao largo de Marrocos pelas autoridades desse país Factos 18.º, 55.º, 56.º, 57.º e 30.º);

               XV – Aversão de que o alagamento se deu após o skipper ter ouvido um barulho e se ter deparado com um dos flutuadores já alagado ao ponto dos paneiros estarem a flutuar e de que esse alagamento se estendeu ao outro flutuador através do túnel que liga ambos, não resultou provada;

               XVI – Não tendo a Autora demonstrado que o alagamento da embarcação se deu conforme alegou (por uma causa indeterminada que não poderia ser evitada pelo skipper e que foi superior às suas forças/saber para evitar a progressão do alagamento), não logrou satisfazer o ónus que impendia sobre si de atestar a verificação do risco nos termos convencionados com a Ré, falhando a demonstração de um dos elementos constitutivos do seu direito (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil);

               XVII – Improcedendo o pedido, é desnecessária a discussão dos demais pressupostos do direito de que a Autora se pretende fazer valer (dano sofrido, sua extensão e o nexo causal com o facto alegado);

               XVIII – A acção sempre seria de improceder pois a actuação do skipper foi de molde a “assegurar” que a embarcação segura se perderia no mar, ou seja, o skipper, ainda que não tenha provocado intencionalmente o alagamento da embarcação, ficou nela durante cerca de três horas, sem tentar aumentar os meios de escoamento da água que continuava a entrar, sem assegurar que as válvulas de entrada de água na embarcação para fornecimento de água às casas de banho estavam fechadas, sem conseguir encontrar um qualquer rombo que justificasse o embarque de água, só tendo lançado o pedido de socorro cerca de três horas depois de ter ou ouvido o ruído e se ter deparado com o alagamento;

               XIX – A actuação do skipper consubstancia barataria, o que sempre excluiria a responsabilidade da seguradora pelo sinistro;

               XX - As fortunas de mar são os casos voluntários e não voluntários, ordinários ou extraordinários, acontecidos no mar ou por causa do mar que a maior prudência não pode prevenir e aos quais a força humana não pode resistir;

               XXI – A barataria emprega-se em primeira linha, para designar as faltas intencionais, mas também, em segunda linha para abranger as não intencionais, como a simples imprudência e negligência (visto a lei presumir que, no caso destas faltas, o armador errou na escolha do capitão e, portanto, deve ficar sujeito às consequências do seu erro);

               XXII – A alegação da Ré, de que o alagamento da embarcação foi propositadamente causado pelo skipper, nem será discutido, pois apesar de ser a hipótese mais provável e coerente com o estado da embarcação após o resgate do skipper e conforme visto pela Força Aérea Portuguesa, não é possível de confirmação absoluta devido ao estado da embarcação aquando da perícia, nem se torna tal discussão necessária, atenta a conclusão de improcedência do pedido a que o Tribunal já chegou.

 

Contra esta argumentação, a Autora – misturando de forma particularmente confusa a sua discordância quanto aos factos apurados, com a sua apreciação de Direito – entende que o Tribunal errou porque não é possível afirmar inequivocamente a causa do alagamento, acrescentando que é um “tremendo erro” afirmar que, para se aplicar o artigo 605.º do Código Comercial “é necessário que o Segurado prove os factos constitutivos do seu direito, o que significa que ele deve demonstrar que o risco marítimo é a causa da perda e o mesmo está coberto”.

Entende a Recorrente que nos termos do artigo 342.º do Código Civil, efectivamente lhe cabe a prova dos factos constitutivos do seu direito, mas também que, nos termos do artigo 344.º, n.º 1, do mesmo diploma, a regra se inverte quando haja presunção legal…

Ora, sendo a presunção uma ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º), temos um facto conhecido (o sinistro) e a presunção que decorre do artigo 605.º do Código Comercial, no sentido de que, no caso de dúvida sobre a causa da perda da embarcação segurada, se presume haver perecido por fortuna de mar, sendo a Seguradora responsável.

Não tendo sido feita prova que permitisse determinar a causa do acidente e não tendo sido ilidida a presunção prevista no referido artigo 605.º, resulta manifesto que a Sentença teria de ser de condenação.

 

Não há controvérsia quanto à circunstância de entre Autora e Ré estar celebrado e vigente um contrato de seguro, do ramo Marítimo.

Perante isto, e para além do que consta da apólice, em termos de objecto, coberturas e exclusões, é relevante o artigo 604.º do Código Comercial (Riscos por que responde o segurador)[13].

Conhecido o sinistro e accionado o seguro, surge a divergência quanto ao que ocorreu, como ocorreu e porque ocorreu e, daí, a presente acção e a necessidade de verificar o que resultou provado e o que pode estar presumido.

A conjugação do disposto no artigo 342.º do Código Civil com a Cláusula 31.º da Apólice contratada[14], impunha à ora apelante o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que pretende ver declarado judicialmente.

E por duas vias seria possível encontrar uma presunção a seu favor:

                       - por via do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 384/1999[15], de 23 de Setembro (regime jurídico relativo à tripulação do navio), que estabelece, no seu n.º 7, que os factos constantes de relatório de mar confirmado pela autoridade marítima ou consular competente, com observância do disposto nos seus n.ºs 1 a 6, se presumem verdadeiros, salvo prova em contrário.

                       - por via do artigo 605.º do Código Comercial[16].

 

No que à primeira situação respeita, in casu, e independentemente de não se ter provado a concreta causa do alagamento da embarcação, é certo que a factualidade apresentada pelo skipper no seu Relatório de Mar (na qual a Petição Inicial, aliás, se baseava) resultou infirmada nos presentes autos, tendo sido produzida prova em contrário por parte da Ré (que resulta espelhada na Factualidade Apurada), de modo que facilmente concluímos que a presunção em causa ficou ilidida[17].

Daí decorre, assim, que cabia à Autora (independentemente de conhecer a concreta causa do sucedido), fazer a prova do que ocorreu com a embarcação, de forma lógica, coerente e racional.

Mas a Autora não o fez, apresentando uma versão que só pode considerar-se inverosímil, impedindo, assim, que esta presunção quanto à ocorrência dos factos tal qual descritos no Relatório de Mar, pudesse subsistir.

O que nos deixa, “apenas” com a factualidade apurada nos presentes autos.

 

Quanto à segunda, começa por se dizer, com Pedro Romano Martinez, que a “referida «presunção» suscita alguma perplexidade, podendo duvidar-se que se trate de uma verdadeira presunção nos termos do art.º 349º do CC, parecendo, antes, uma regra de causalidade ou de delimitação de riscos cobertos, justificada historicamente pela cobertura por apólices diversas dos riscos de mar e dos riscos de guerra, em que, na dúvida sobre a causa da perda do navio, havia que optar por exigir a reparação a um dos seguradores”[18].

Como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa de 14/06/2007 (Processo n.º 10322/2006-2-Ezagüy Martins) citando Azevedo Matos[19] “embora do artigo pareça deduzir-se que basta uma simples presunção, na verdade assim não sucede, pois é sempre necessária a prova de que o risco previsto ou compreendido é a causa da perda, e que este risco está coberto”.

Mas esta discussão cai à partida, porque nem sequer se pode concluir pela perda da embarcação na decorrência da factualidade invocada (alagamento e consequente afundamento).

Ou seja, nem sequer há fundamento para recorrer ao artigo 605.º do Código Comercial, uma vez que não pode considerar-se que a embarcação tenha naufragado ou se tenha perdido, em consequência do alagamento.

Repare-se que o abandono da embarcação por parte do skipper - em face da factualidade que efectivamente se apurou -  ocorreu, claramente, sem que estivessem reunidas as condições prevenidas na apólice de seguro para o efeito.

A Cláusula 34.º da Apólice começa por dizer no seu n.º 1, que o segurado se obriga não só a não abandonar o navio/embarcação, como a promover todas as diligências para o bom êxito do seu salvamento[20], sendo que, acrescenta o n.º 2, o abandono do “objecto seguro”  só é admitido nos casos:

                       - do artigo 617.º do Código Comercial[21] (alínea a)),

                       - de perda total efectiva (“representada pelo desaparecimento total e definitivo em consequência de afundamento causado por um risco coberto”) (alínea b)),

                       - de perda total construtiva (“ou seja, a inavegabilidade absoluta e definitiva causada por um evento seguro que torne o navio irreparável ou o custo da reparação para o repor no estado anterior ao sinistro seja igual ou superior ao valor seguro”),

                       - de perda total “combinada pelo acordo entre o Tomador do Seguro ou Segurado e a Seguradora para que o navio seja considerado perda total construtiva, não obstante não se verificarem as condições definidas na alínea c)”.

 

Ora, no caso dos autos nada disto se verificou: nem o abandono respeitou estas condições, nem o skipper fez tudo o que estava ao seu alcance para promover o salvamento da embarcação.

De facto, independentemente da causa do alagamento (em que qualquer um pode ter a sua tese, incluindo o que possa ser provável que tenha acontecido mas não se tenha logrado provar), o certo é que o skipper abandonou a embarcação (a 21/10/2018) sem que o risco de afundamento fosse iminente (essa prova caberia à Autora), ou a sua navegabilidade estivesse relevantemente posta em causa (como se pode concluir sem lugar a dúvida razoável, em face do estado do mar na altura e da circunstância de, a 22/10/2018, a Força Aérea Portuguesa a ter filmado ainda a navegar à deriva).

Trata-se de uma “história mal contada” e é a única conclusão que - para efeito dos presentes autos - pode ser tirada, pois mal se compreende que alguém em mar alto tendo detectado um alagamento na sua embarcação, tenha estado cerca de três horas (repete-se, três horas!) sem nada de relevante fazer para a ele obstar, podendo fazê-lo.

A falta de verosimilhança da versão apresentada pela Autora é ostensiva, desde o “barulho” pretensamente ouvido pelo skipper, ao não ter detectado de onde provinha o alagamento (num espaço pequeno, com iluminação suficiente, e em que necessariamente se poderia ver pelo menos um turbilhão, maior ou menor, de onde estaria a surgir a água) e, absurdo maior, admitindo que as duas bombas eléctricas estariam em funcionamento (como afirma), não ter sequer tentado utilizar a bomba manual que tinha ainda ao seu dispor e ter ficado três horas assim, placidamente, numa embarcação a afundar…

Repare-se que nem sequer se pode dizer que foi uma situação de pânico ou de falta de experiência, quer por não ser alegada, quer por estar em causa um navegador experiente, mas nada se vislumbra que justifique a incoerência da versão apresentada, por exemplo, quanto ao volume da água a entrar e a não utilização da bomba manual:

                       - se estava a entrar muita água e isso originaria um esforço inglório quanto à utilização da bomba manual, então seria ainda mais fácil detectar de onde vinha a água porque o espaço era pequeno;

                       - em qualquer circunstância, a primeira das opções seria sempre tentar a utilização da bomba manual para ver o efeito que lograva e só se não resultasse é que abandonaria o esforço e o poderia consideraria “inglório”;

                       - se era tanta a água a entrar e tão incontrolável, ou esmagadora, então porquê esperar três horas para pedir auxílio e lançar o Mayday? Se fosse como descrito, ao fim de 30 minutos/uma hora, o skipper teria a embarcação afundada (e, de facto, um dia depois, ela ainda navegava com parte da estrutura afundada e o mastro totalmente fora da água…).

Isto permite concluir que, se a água continua a entrar durante três horas e ele nada faz é porque não entrava assim tanta e que ao não utilizar a bomba manual – podendo fazê-lo – e ficar a aguardar que a situação se resolvesse por si própria, o skipper teve um comportamento absurdo e pouco racional, mas necessariamente querido e voluntário, porque não estava em pânico e pensou no que estava a fazer.

Perante um determinado acontecimento a actuação de quem estava ao comando da embarcação não foi só em desacordo com o que devia ter sido, como não foi a que podia ter sido[22].

Assim, só podemos concluir que o abandono da embarcação foi injustificado e, como tal, excludente para efeitos de funcionamento da apólice, exclusão que vale ainda para o funcionamento da presunção do artigo 607.º do Código Comercial, uma vez que, para este efeito, a referida embarcação não se “perdeu”, nem pode dizer-se que a embarcação foi vítima de “fortuna de mar” (mar estava calmo, vento era fraco e o comportamento do skipper não foi adequado às circunstâncias).

Como discorre lapidarmente a Sentença sob recurso, “não tendo a Autora demonstrado que o alagamento da embarcação se deu conforme alegou, ou seja, por uma causa indeterminada que não poderia ser evitada pelo skipper e que foi superior às suas forças/saber para evitar a progressão do alagamento, não logrou satisfazer o ónus que impendia sobre si de atestar a verificação do risco nos termos convencionados com a Ré, tendo assim falhado a demonstração de um dos elementos constitutivos do seu direito (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), sendo pois de improceder o pedido formulado, tonando-se ociosa a discussão dos demais pressupostos do direito de que a Autora se pretende fazer valer, nomeadamente o dano sofrido e a sua extensão, bem como o nexo causal com o facto alegado”.

 

Mas podemos ir mais longe e sublinhar que, neste contexto e perante a factualidade assente, relevando o já referido artigo 604.º do Código Comercial (que funciona como cláusula de exclusão da responsabilidade do segurador, coloca a cargo deste, “salvo estipulação contrária, todas as perdas e danos que acontecerem durante o tempo dos riscos aos objectos segurados por borrasca, naufrágio (...) e em geral, por todas as demais fortunas de mar, salvos os casos em que pela natureza da coisa, pela lei ou por causa expressa na apólice o segurador deixa de ser responsável”), também por esta via a acção está condenada ao insucesso.

De facto, o parágrafo §1.º deste normativo estipula que “o segurador não responde pela barataria do capitão (...)”.

Esta matéria da barataria e do que nela se inclui e se considera abrangido foi objecto de apreciação exaustiva no Acórdão da Relação de Lisboa de 13/07/2021 (Processo n.º 120564/17.2YIPRT.L1-7-Diogo Ravara[23]), que transcrevemos em rodapé e subscrevemos, ainda que com a precisão que se segue.

Ou seja, sendo certo que deve fazer-se relevar o conceito restrito de barataria, nas situações de cobertura de danos próprios, em que a apólice aponte noutro sentido, a conclusão tem de ser distinta.

É isto, aliás, que o Supremo Tribunal de Justiça refere no Acórdão de 12/01/2022 (Processo n.º 120564/17.2YIPRT.L1.S1-Vieira e Cunha), quando assinala que, mesmo “optando pelo conceito restrito de “barataria” (abrangendo apenas o comportamento doloso do capitão), nunca se poderia superar o facto de a própria norma do art.º 604.º §1.º CCom, não deixar de ressalvar a possibilidade de convenção em contrário, no seguro, no que a citada norma se vem a traduzir na ausência de carácter imperativo, devendo observar-se sobre o mais, em matéria de seguro, a convenção das partes”.

Ora, a apólice que consubstancia o contrato de seguro acordado entre Autora e Ré expressamente exclui a cobertura dos riscos causados por “dolo, fraude ou barataria do capitão ou de quaisquer factos resultantes de violação, de bloqueio, de contrabando ou comércio proibido ou clandestino” (Cláusula 6.ª, n.º 2, alínea n) – fls. 23 deste processo), pelo que, no confronto entre dolo e barataria, necessariamente teremos de concluir que as condutas negligentes estão abarcadas no conceito.

Como tal, uma conduta como a do skipper nas condições de espaço e tempo em que ocorreu, tem de ser vista como incluída no conceito de barataria (no mínimo, como negligência grosseira, embora a forma consciente, voluntária e ponderada como foi assumida, aponte mesmo para o dolo).

Pelo exposto, a barataria tem de se considerar presente e, tal como concluiu acertadamente o Tribunal a quo, a acção tem de improceder.

 

**

 

Dizia Álvaro de Campos, "Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam"[24], referência esta que vem a propósito do que sucedeu nos presentes autos, em que a Autora apresentou uma versão dos factos que, a comprovar-se, lhe daria razão, mas que não resultou provada, provando-se mesmo uma versão substancialmente distinta: colocada na posição de Fernando Pessoa, a Autora, julgava conseguir provar o que alegava, mas – efectivamente – não o conseguiu e foi a Ré, qual heterónimo do poeta, que o logrou.

***

 

Assim, e em conformidade com o exposto, porque o Tribunal a quo decidiu bem, com critério, fundada e fundamentadamente, a Sentença será confirmada in totum.

 

* *

 

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação, confirmando a Sentença recorrida.

 

Custas a cargo da Recorrente.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

***

Lisboa, 08 de Março de 2022

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Pires de Sousa

 

 

 

José Capacete



[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2] “O atual art. 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” - Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, pág. 332.

[3] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.

[4] António Abrantes Geraldes, Recursos…, página 200.

[5] António Abrantes Geraldes, Recursos…, páginas 201 a 205.

[6] António Abrantes Geraldes, Recursos…, páginas 206-207.

[7] Elaborado pela também testemunha JPM, enquanto Instrutor do Processo.

[8] Relatório de fls. 69 a 78.

[9] Página 27, do Relatório de fls. 122-163.

[10] Página 32, do citado Relatório.

[11] Manuel Tomé Soares Gomes, Da Sentença Cível, in O novo processo civil, Caderno V, [em linha], e-book  CEJ, 2014, páginas 350-351, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=Z3GENdMOBV8%3d&portalid=30 [consultado a 28/02/2022]

[12] Que aliás nem necessitou de esclarecimentos da parte contrária.

[13] Código Comercial - Artigo 604.º - Riscos por que responde o segurador

São a cargo do segurador, salva estipulação contrária, todas as perdas e danos que acontecerem durante o tempo dos riscos aos objectos segurados por borrasca, naufrágio, varação, abalroação, mudança forçada de rota, de viagem ou de navio, por alijamento, incêndio, violência injusta, explosão, inundação, pilhagem, quarentena superveniente, e, em geral, por todas as demais fortunas de mar, salvos os casos em que pela natureza da coisa, pela lei ou por cláusula expressa na apólice o segurador deixa de ser responsável.

                   §. 1.° O segurador não responde pela barataria do capitão, salva convenção em contrário, a qual, contudo, será sem efeito, se, sendo o capitão nominalmente designado, foi depois mudado sem audiência e consentimento do segurador.

                  §. 2.° O segurador que convencionou expressamente segurar os riscos de guerra sem determinação precisa responde pelas perdas e danos, causados aos objectos segurados, por hostilidade, represália, embargo por ordem de potência, presa e violência de qualquer espécie, feita por governo amigo ou inimigo, de direito ou de facto, reconhecido ou não reconhecido, e, em geral, por todos os factos e acidentes de guerra.

                   §. 3.° O aumento do prémio estipulado em tempo de paz para o caso de uma guerra casual, ou de outro evento, cuja quota não for determinada no contrato, regula-se, tendo em consideração os riscos, circunstâncias e estipulações da apólice”.

[14] “Cabe ao Tomador do Seguro ou Segurado o ónus da prova sobre a veracidade da reclamação e do seu interesse legal nos bens seguros, podendo a Seguradora exigir-lhe todos os meios de prova adequados e que estejam ao seu alcance”.

[15] Artigo 15.º

(Confirmação do relatório de mar)

1 - A autoridade marítima ou consular que recebe o relatório de mar deve investigar, com carácter de urgência, a veracidade dos factos relatados, inquirindo em separado as testemunhas arroladas e os tripulantes, passageiros ou outras pessoas que considere necessário ouvir para esclarecimento da verdade.

2 - A autoridade competente para a confirmação do relatório de mar deve, igualmente, recolher as informações e demais meios de prova relacionados com os factos relatados.

3 - Nenhum tripulante, passageiro ou outra pessoa pode recusar-se a prestar depoimento feito sob a forma de auto de declarações, salvo impedimento legal; a recusa de colaboração deve constar das conclusões do procedimento.

4 - Os interessados na expedição marítima, ou os seus representantes ou gestores de negócios, podem assistir ao depoimento das testemunhas e demais produção de prova, bem como solicitar a quem os detenha os elementos constantes da alínea l) do artigo 6.º

5 - No final da investigação, a autoridade marítima ou consular encerra o procedimento, lavrando conclusões, nas quais confirma ou não, fundamentadamente, os factos constantes do relatório de mar.

6 - A autoridade referida no número anterior deve enviar, logo que possível, à autoridade marítima do porto de registo do navio em causa, cópia autenticada do procedimento e suas conclusões respeitantes ao relatório de mar.

7 - Os factos constantes de relatório de mar confirmado pela autoridade marítima ou consular competente, com observância do disposto nos números anteriores, presumem-se verdadeiros, salvo prova em contrário”.

[16] Código Comercial - Artigo 605.º - Presunção sobre a causa da perda

No caso de dúvida sobre a causa da perda dos objectos segurados, presume-se haverem perecido por fortuna de mar, e o segurador é responsável.

[17] Como refere a Sentença em análise, “não tendo a Autora demonstrado que o alagamento da embarcação se deu conforme alegou, ou seja, por uma causa indeterminada que não poderia ser evitada pelo skipper e que foi superior às suas forças/saber para evitar a progressão do alagamento, não logrou satisfazer o ónus que impendia sobre si de atestar a verificação do risco nos termos convencionados com a Ré, tendo assim falhado a demonstração de um dos elementos constitutivos do seu direito (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), sendo pois de improceder o pedido formulado, tonando-se ociosa a discussão dos demais pressupostos do direito de que a Autora se pretende fazer valer, nomeadamente o dano sofrido e a sua extensão, bem como o nexo causal com o facto alegado”.

[18] Pedro Romano Martinez, Seguro Marítimo. O transporte de marítimo de mercadorias e o contrato de seguro, in I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo (6 e 7 de Março de 2008)-O contrato de transporte marítimo de mercadorias, Centro de Direito Marítimo e dos Transportes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa-Almedina, 2008, páginas 157-158.

[19] Azevedo Matos, Princípios de Direito Marítimo – Do seguro marítimo, IV, Edições Ática, 1956, página 235.

[20] Ficando “a cargo do Segurador as despesas razoavelmente realizadas e reconhecidas como indispensáveis para tal efeito”.

[21] Código Comercial - Artigo 617.º - Casos de abandono sem obrigação de prova da perda

O segurado pode fazer abandono ao segurador sem ser obrigado a provar a perda do navio, se a contar do dia da partida do navio ou do dia a que se referem os últimos avisos dele não há notícia, a saber: depois de seis meses da sua saída para viagens na Europa, e depois de um ano para viagens mais dilatadas.

       §. 1.° Fazendo-se o seguro por tempo limitado, depois de terminarem os prazos estabelecidos neste artigo, a perda do navio presume-se acontecida dentro do tempo do seguro.

       §. 2.° Havendo muitos seguros sucessivos, a perda presume-se acontecida no dia seguinte àquele em que se derem as últimas notícias.

       §. 3.° Se, porém, depois se provar que a perda acontecera fora do tempo do seguro, a indemnização paga deve ser restituída com os juros legais.

[22] O Tribunal a quo assinala de forma certeira que “sempre a acção terá de improceder pois a actuação do skipper foi de molde a “assegurar” que a embarcação segura se perderia no mar, ou seja, o skipper, ainda que não tenha provocado intencionalmente o alagamento da embarcação, durante cerca de três horas ficou na embarcação sem tentar aumentar os meios de escoamento da água que continuava a entrar na embarcação, conforme declarou na sua audição pela Polícia Marítima (facto 44), sem assegurar que as válvulas de entrada de água na embarcação para fornecimento de água às casas de banho estavam fechadas, sem conseguir encontrar um qualquer rombo que justificasse o embarque de água, pois apesar de declarar que ouviu o ruído e se deparou com o alagamento às 2H00 da manhã, apenas às 5H00 da manhã, com a embarcação já parcialmente submersa, lançou o pedido de socorro”.

[23] Relação de Lisboa 13/07/2021 (Processo n.º 120564/17.2YIPRT.L1-7-Diogo Ravara)

“Da barataria

Aqui chegados, cumpre averiguar se a responsabilidade da ré C deve considerar-se excluída, nos termos previstos no art. 604º § 1º do CCom.

Com efeito, estabelece esta disposição legal, na parte que ora interessa que tendo sido celebrado “seguro contra riscos de mar” (cfr. epígrafe do Título II da Secção I do Livro III do Código Comercial) “são a cargo do segurador, salvo estipulação contrária, todas as perdas e danos que acontecerem durante o tempo dos riscos aos objetos segurados por (…) abalroação (…) e em geral por todas as demais fortunas do mar, salvo nos casos em que pela natureza da coisa, pela lei ou por cláusula expressa na apólice do segurador deixa de ser responsável.

§ 1.º O segurador não responde pela barataria do capitão, salvo convenção em contrário, a qual, contudo, será sem efeito, se, sendo o capitão nominalmente designado foi depois mudado sem audiência e consentimento do segurador.”

O conceito de barataria não consta do Código Comercial, nem de qualquer outro instrumento legislativo interno ou internacional, pelo que a sua delimitação terá que ser operada por via interpretativa.

A origem do termo barataria remonta ao étimo barat, palavra do idioma provençal arcaico que significa erro, engano, fraude, ou mentira.

Nessa medida, tradicionalmente considerava-se que o conceito de barataria compreendida apenas atos ou omissões dolosos ou fraudulentos do capitão, nomeadamente os tendentes a obter da seguradora, de forma obviamente ilícita, uma indemnização.

Simplesmente, como veremos, a dado momento parte da doutrina nacional e a jurisprudência dominante passaram a entender que a barataria do capitão compreendia também os comportamentos meramente negligentes.

Esta tem sido a tese consagrada pelo Supremo Tribunal de Justiça nos últimos cem anos, expressa nos seguintes arestos (entre outros):

- STJ 17-01-1928, publicado na Gazeta da Relação de Lisboa, nº 10

- STJ 01-11-1949, BMJ 16, 1950, pp. 340-342

- STJ 05-01-1968 (Ludovico da Costa), BMJ 173, 1968, pp. 300-304

- STJ 29-02-1972, BMJ 214, 1972, pp. 153-159

- STJ 30-03-1973 (Acácio Carvalho), BMJ 225, 1973, pp. 272-285

- STJ 06-12-1974 (Acácio Carvalho), BMJ 242, 1975, pp. 309-315

- STJ 07-07-1999 (Quirino Soares), p. 99B557

- STJ 27-01-2004 (Nuno Cameira), p. 03A2827

- STJ 29-01-2008 (Salvador da Costa), p. 07B4805

- STJ 21-02-2008, revista nº 1091/07, da 7ª Secção

- STJ 02-10-2008, revista nº 942/08, da 2ª Secção

- STJ 15-01-2008 (Serra Baptista), p. 08B3326

- STJ 29-01-2008 (Salvador da Costa), p. 07B4805

Muito embora a jurisprudência dominante tenha considerado, de forma senão unânime, pelo menos largamente maioritária, o entendimento de que a barataria engloba tanto os atos e omissões dolosos do capitão, como os “meramente” negligentes[58], a doutrina tem evidenciado uma postura distinta, perfilando-se essencialmente duas teses: o entendimento amplo do conceito, consagrado na jurisprudência, e um entendimento restrito, limitando o âmbito da barataria aos comportamentos dolosos.

FERREIRA BORGES[59] considerava que o conceito de barataria abrangia “(...) toda a especie de dolo, de maldade ou prevaricações commetidas pelo capitão ou pela gente da tripulação. O Cod. do Comm. de França dá-lhe um significado mais extenso (art. 353); faz-lhes comprehender não só as prevaricações mas tãobem as faltas, as culpas. E hoje, em matéria de seguros marítimos, é igualmente essa a nossa intelligencia, porque o art. 24 do Reg. da Casa de Seguros diz: - “As prevaricações e faltas do capitão, officiaes e equipagens de um navio conhecidas pelo nome da barataria ou rebeldia de patrão, são riscos como qualquer outro; e por isso se comprehendem na responsabilidade do segurador, quando expressamente se não exceituarem no contracto.” (...) Quando os seguradores respondem por barataria quer dizer que se responsabilisão a indemnizar todos os damnos, que podem resultar do facto do capitão e sua tripulação por imperícia, imprudencia, malicia, deviação, latrocinio, ou d'outra sorte, ficando salvo aos seguradores o recurso contra o capitão em todos os casos, em que os proprietários ou os carregadores podessem ter contra elle acção para reparação dos damnos (...)”.

Por seu turno, ADRIANO ANTERO[60] ensinava que o significado etimológico da palavra barataria era sinónimo de fraude ou ribalderia; e que no domínio da navegação marítima, quando reportada a atos do capitão, tal termo se empregou inicialmente no tocante a condutas intencionais ou dolosas. O mesmo autor nota que o sentido da expressão se foi ampliando, vindo a abranger também as faltas não intencionais, como a simples imprudência e a negligência. Assim, apesar de sustentar que no Código Comercial de 1833 a barataria apenas se referia à fraude do capitão, este autor dava nota de que “(...) a jurisprudencia actual vai mais longe, porque o segurador não responde, nem mesmo pelas faltas não intencionaes do capitão. É que a lei presume que, no caso d'essas faltas, o armador erro, na escolha do capitão, e, portanto, fica sujeito ás consequencias do seu erro (...)”.

Reportando-se ao mesmo conceito, CUNHA GONÇALVES[61] sustentou que “(...) tendo ao princípio significado somente os actos fraudulentos ou dolosos do capitão como tal, isto é, como encarregado do governo do navio, mais tarde passou a abranger também os actos meramente culposos e os estranhos a este governo e praticados como mandatário do armador”.

BARBOSA DE MAGALHÃES[62], louvando-se do entendimento de FERREIRA BORGES equiparou o conceito de barataria ao de prevaricação, concluindo que o mesmo compreendia faltas e culpas dos capitães e das tripulações dos navios, compreendendo a imperícia, a imprudência, e a malícia.

Finalmente AZEVEDO MATOS[63] sustentou que o conceito de barataria compreendia não só os atos dolosos, mas também os negligentes, praticados pelo capitão ou qualquer outro membro da equipagem, na qualidade de mandatário do armador.

A esta corrente doutrinária se opôs (ou sucedeu) uma outra, que procurou recuperar a interpretação inicial mais restritiva, restringindo o conceito de barataria aos comportamentos dolosos.

 VAZ SERRA[64] invocou em abono desta tese os seguintes argumentos:

- O art. 604.º, § 1.º, do CCom não define "barataria", deixando o intérprete livre de a entender como for mais razoável.

- O termo barataria vem de barat, velha palavra do Sul de França, que significa engano, fraude, mentira.

- O Código Comercial português não reproduz a expressão criticável do art. 353.º do Código Comercial francês, que define a barataria por referência a prévarications e fautes do capitão e da equipagem (o que leva a opinião francesa dominante – embora não isente de crítica – a entender que a palavra fautes, oposta a prévarications, compreende as faltas não intencionais, as imprudências e negligências).

- É mais razoável que o segurador responda pelas negligências ou imprudências do capitão ou da equipagem, só não respondendo pelo dolo ou fraude dos mesmos, dada a maior probabilidade da ocorrência de tais comportamentos negligentes ou imprudentes numa viagem marítima, e a dificuldade de os distinguir dos casos fortuitos ou de força maior, o que significa que o armador ou segurado não tem, em regra, a possibilidade de vigiar e dar instruções ao capitão ou equipagem, sendo certo que a finalidade do seguro é cobrir todos os riscos que, sem dolo ou fraude, se verificarem.

- As legislações mais recentes – como a alemã, inglesa, belga e italiana – colocam a barataria a cargo dos seguradores.

- Tornou-se usual inserir nas apólices de seguro marítimo uma cláusula a excluir a responsabilidade do segurador apenas nos casos de dolo ou fraude do capitão, ou quando ocorram determinadas faltas graves, admitindo essa responsabilidade pelos danos causados por faltas involuntárias do capitão.

JOÃO MATA[65] argumentou que a barataria do capitão referida no § 1.º do art. 604.º do CCom incluía qualquer dano deliberadamente praticado pelo capitão ou equipagem do navio com intenção de prejudicar o armador ou carregador.

MÁRIO RAPOSO[66] sustentou que a barataria estava para o direito marítimo como a pirataria e, nessa medida, pressupunha sempre e tão-somente um ato doloso e fraudulento.

JOSÉ ALVES DE BRITO[67], aderindo aos argumentos avançados por Vaz Serra, concluiu que, na tensão entre o dolo e a negligência, deve optar-se pela tese mais favorável aos interesses dos segurados.

Fazendo o balanço da resenha doutrinária e jurisprudencial supra gizada, cumpre evidenciar três aspetos.

Em primeiro lugar e no tocante ao ac STJ 17-01-1928, verificamos que no mesmo se referiu que “(...) a negligência, imperícia e imprudência do capitão são factos que implicam a existência da categoria jurídica barataria”, sem que o Supremo tenha explicado como chegou a tal conclusão. Ora, a conclusão alcançada parece contradizer a afirmação que a antecede, no sentido de que “(...) a barataria é constituída por actos cometidos ilicitamente e com dano, no intuito de se receber uma indemnização da companhia seguradora, e que, se não existisse seguro, não teriam sido praticados”. Esta antinomia não é clarificada em passo algum do referido aresto.

Em segundo lugar, é de salientar que a jurisprudência que sucedeu ao mencionado aresto seguiu os entendimentos de Cunha Gonçalves, Azevedo Matos e Adriano Antero, embora as teses sustentadas por estes evidenciem as mesmas fragilidades acima apontadas.

Com efeito CUNHA GONÇALVES, em aparente conflito com a posição que sustentou, também afirmou que “(...) especialmente pelo que toca ao seguro, é barataria todo o acto ilícito e danoso cometido no intuito de receber uma indemnização do segurador, ou que, se não existisse seguro, não teria sido praticado”[68].

AZEVEDO MATOS proclamava que que «(...) o termo “barataria” é sinónimo de ribalderia e de rebeldia (...)», o que pressupunha atos dolosos, mas simultaneamente e sem explicar por que razão o entendia, sustentava igualmente que o mesmo conceito abrangia “(...) também os culposos, praticados pelo capitão ou qualquer outro membro da equipagem, na qualidade de mandatário do armador (...)”[69]».

ADRIANO ANTERO invocava os ensinamentos de ERCOLE VIDARI[70], que por sua vez defendia que o conceito de barataria abrangia não só atos ou omissões dolosos, mas também os aotos ou omissões negligentes do capitão ou da tripulação, argumentando para tal que o art. 618.º do Codice di Commercio de 1882 dispunha que “L'assicuratore non è responsabile delle prevaricazioni e delle colpe del capitano e dell' equipaggio connosciute sotto nome de «baratteria», se non è convenuto il contrario”.

Como se apreende da leitura deste preceito da lei italiana, a mesma acolhia expressamente na delimitação do conceito legal de barataria tanto os atos dolos, como os negligentes, pelo que a transposição deste entendimento para o contexto da lei portuguesa continuava a carecer de justificação adicional, visto que o art. 604.º do CCom nacional não continha qualquer definição.

Por outro lado, o legislador de 1888 havia abandonado a referência à negligência do patrão que o Código Comercial de 1833 qualificava como risco marítimo, o que legitimava a conclusão de que a barataria abrangia apenas os actos dolosos.

Acresce que a doutrina italiana atenuou a rigidez decorrente de uma interpretação literal do art. 618.º do Codice di Commercio de 1882, sustentando que a noção de barataria não podia acolher a negligência[71].

Finalmente, e em terceiro lugar, releva o confronto entre o art. 1752.º do CCom de 1833[72] e o art. 604.º do CCom vigente (1888). Como já se referiu, o primeiro preceito delimitando os riscos marítimo cobertos pelo contrato de seguro, referia-se à “negligência ou barateria do patrão ou da equipagem”, ao passo que o art. 604.º não contém qualquer referência à negligência. Ora, em nosso entender, tal alteração revela uma intenção clara no sentido de restringir a exclusão da obrigação de segurar apenas aos atos dolosos, mantendo os atos negligentes dentro da esfera de proteção conferida pelo contrato de seguro.

Urge concluir, tendo presente que, como refere MÁRIO RAPOSO[73], o direito comparado demonstra que as legislações britânica, francesa, espanhola e italiana consagram atualmente o entendimento restrito do conceito de barataria.

E fazendo-o aderimos resolutamente a este entendimento, por todos os motivos acima expostos aos quais acrescentamos outro: No Direito português não temos conhecimento de qualquer outra disposição legal que seja interpretada no sentido de excluir do âmbito de cobertura de contratos de seguros de danos na modalidade de responsabilidade civil aqueles que sejam provocados por condutas negligentes. Cremos mesmo que uma tal exclusão carece de sentido, visto que a ideia subjacente aos seguros de danos que cobrem sinistros ocorridos no contexto da responsabilidade civil é justamente, permitir a reparação de danos causados por condutas negligentes. Donde, não descortinamos razão suficiente para, em pleno século XXI, e num domínio como a navegação marítima, em que a outorga de contratos de seguro se afigura crucial para a segurança desta atividade, ter por adequada a exclusão da cobertura relativamente a danos causados por condutas negligentes, quando a letra da lei não impõe tal caminho interpretativo.”.

[24] Citado por Teresa Sobral Cunha, na introdução de O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, Relógio d'Água, 1997, página ix.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.

Na Impugnação de Deliberações de Condomínio, os condóminos, mesmo sendo partes podem depor como testemunhas

  Processo n.º 27942/16.9T8LSB-B.L1 Tribunal a quo -  Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte-Juízo Local Cível de Vila Franca de Xira ...