Processo
n.º 2518/19.2T8OER-A.L1
Tribunal
a quo
Tribunal
Judicial da Comarca de Lisboa Oeste-Juízo de Execução de Oeiras - Juiz 2
Recorrente(s)
N… (Executado-Embargante)
Recorrido/a(s)
B…,
SA. (Exequente-Embargada)
*
Sumário (elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código
de Processo Civil)
I – A
presença do Tempo como factor conformador das situações jurídicas está
particularmente presente na prescrição, a qual pressupõe a existência de um
direito, o seu não exercício e o decurso do Tempo.
II – O
fundamento da prescrição assenta na inércia negligente do titular do direito em
exercitá-lo e impõe, por razões de certeza e segurança jurídica, protecção dos
devedores e estímulo ao exercício dos direitos, a gravosa consequência de extinguir
da obrigação (ou, pelo menos, permitir que o obrigado possa recusar o
cumprimento).
III – A
prescrição de curto prazo (5 anos) prevista no artigo 310.º do Código Civil
destina-se a incentivar a diligência do credor na recuperação dos créditos e a
prevenir e evitar a ruína do devedor - pela acumulação da dívida - derivada de
quotas de amortização de capital pagável com juros em prazos periódicos curtos
(que, com a exigência do pagamento de uma só vez decorridos muitos anos,
poderia provocar a sua insolvência).
IV – O
artigo 310.º, alíneas c) e e), do Código Civil estabelecem um prazo
prescricional de 5 anos, para rendas e alugueres devidas pelo locatário e para capital
e juros correspondentes que devam ser pagos de forma conjunta.
V – As
rendas devidas pelos contratos de locação financeira não correspondendo a
prestações periódicas, dependentes do factor tempo, mas a prestações
fraccionadas no tempo da mesma obrigação (fraccionamento de uma obrigação de
restituição), sem aquela dependência, não têm natureza locatícia, não estando
directamente previstas no artigo 310.º do Código Civil.
VI - O
pagamento destas rendas constitui uma contrapartida (do financiamento) do gozo
da coisa, aproximando-se, sob este prisma, do que sucede com o reembolso de um
mútuo, tendo a prestação do locador um carácter continuado, integrando-se num
negócio considerado globalmente de natureza duradoura.
VII – É de
aplicar analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do
contrato de locação financeira, considerando os interesses em jogo, o facto de
se tratar socialmente de um contrato de financiamento (que o aproxima do mútuo)
e as circunstâncias de a prestação da empresa locadora ter um carácter
continuado (integrando-se num negócio considerado globalmente de natureza duradoura)
e de se fazerem sentir exactamente as mesmas necessidades de evitar
insolvências de devedores (não deixando que se acumulem as dívidas, de forma
incontrolada e excessiva).
VIII – É
com este entendimento que se logra relevar a Natureza das Coisas, na unidade do
sistema jurídico.
Acordam
na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
B,
SA. intentou acção
de execução para pagamento de quantia certa contra N…..
Por
apenso a esses autos, veio o executado deduzir oposição,
por meio de embargos de executado,
excepcionando com a prescrição da dívida decorrente de crédito ao consumo e o
preenchimento abusivo da livrança.
A
embargada contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.
Foi
proferida Sentença que
decretou os factos provados e não provados e, a final, julgou improcedentes os embargos.
O
Embargante-Executado veio recorrer da Sentença e apresentou as suas Alegações, onde lavrou as
seguintes Conclusões:
1. O aqui Apelante, N…, impugna a douta
decisão proferida no que respeita à apreciação havida das sindicadas excepções
da prescrição e do preenchimento abusivo do título de câmbio.
2. A não conformação do aqui Apelante, N…
quanto ao quadro normativo aplicado na douta decisão proferida, assenta numa
dissidência sufragada em consonância com a posição superiormente sustentada no
douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de Janeiro de 2021.
3. Por outra banda e no que ao pacto de
preenchimento concerne, este caducou por morte de A…, gerente e único sócio que
assinou o título de câmbio em causa na dúplice qualidade de legal representante
da subscritora e de avalista.
4. Nos termos do disposto na alínea e), do
artigo 310º do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de
amortização do capital pagáveis com os juros.
5. O avalista da livrança em apreço contratou
há mais de cinco anos um contrato de locação financeira com o Recorrido, B…
S.A.
6. A dívida em apreço prescreve ao fim de
cinco anos por se tratar de quotas de amortização do capital cujo pagamento se processa
de forma adjunta com os juros, originando prestações mensais e sucessivas de
valor contratualmente determinado, não cabendo a invocação ao caso da
prescrição ordinária.
7. Na douta sentença recorrida é afirmado que
por estar em causa “...uma obrigação única, embora possa ser paga por forma
repartida por tempo certo...”, não caberia a aplicação do corpo do artigo 310º
do Código Civil.
8. O contrato de mútuo bancário consubstancia
uma obrigação de reembolso por parte do mutuário, reembolso este que é pago por
forma repartida por tempo certo, tendo tradução numa obrigação unitária, à
semelhança da locação financeira.
9. O Supremo Tribunal de Justiça decidiu
consignar a aplicação do prazo de prescrição estabelecido nas alíneas d) e e)
do artigo 310º do Código Civil, no que concerne à obrigação de reembolso por
parte do mutuário, reembolso este que é pago por forma repartida por tempo
certo (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 26 de Janeiro de
2021, no processo nº 20767/16.3T8PRT-A.S2).
10. Houve preenchimento abusivo do título
cambiário na justa medida em que terá havido caducidade do pacto de
preenchimento da livrança.
11. O pacto de preenchimento consubstancia a
figura de mandato conforme o estatuído no corpo dos artigos 1157º e seguintes
do Código Civil, sendo que o mandado caduca por óbito do mandante ou do
mandatário.
12. O subscritor e avalista morreu em 19 de
Março de 2015, sendo que o pacto de preenchimento data de 13 de Setembro de
2011 e a livrança é emitida em 29 de Abril de 2019, pelo que houve caducidade
do mandato em relação a todos os obrigados por força do óbito do subscritor e
avalista.
13. Caducou o pacto de preenchimento em
apreço.
14. Mercê do disposto no artigo 2024º do
Código Civil e tendo caducado o aval, bem como o respectivo pacto de
preenchimento, a relação jurídica eventualmente constituída por essa via,
deverá considerada extinta e excluída do objecto da sucessão.
15. O Recorrido, B… S.A, incorreu no
exercício ilegítimo de posições jurídicas subjectivas ao autuar a execução em
apreço, por referência a um título emitido em 29 de Abril de 2019, atento um
pacto de preenchimento datado de 13 de Setembro de 2011, quando o subscritor e
avalista morreu em 19 de Março de 2015.
A
Embargada-Exequente-Recorrida veio apresentar Contra-Alegações, onde concluiu que:
A.
O Embargado celebrou, em 13.09.2011, com a Executada M…, na qualidade de locatária,
e A…, na qualidade de avalista, um Contrato de Locação Financeira, tendo por
objeto o veículo de matrícula -- -- --, com início na referida data e termo em
13.09.2018, mediante o pagamento de 84 rendas mensais, no valor de € 307,86 e
valor residual de € 4.701,82 e demais cláusulas constantes do documento junto
com a contestação, que aqui se dá aqui por integralmente reproduzido.
B.
O referido Contrato de Locação Financeira apresentava um pacto de preenchimento
da livrança, resultando da Cláusula 20.ª que “1. O Locatário obriga-se a
entregar ao -----, a título de garantia, uma livrança não integralmente
preenchida, mas devidamente subscrita pelo Locatário e assinada pelo (s)
Avalista(s) nos termos da livrança anexa a este contrato. (…) 5. Em caso de
incumprimento, e após a notificação escrita pelo ------, o Locatário autoriza
expressamente o ----- a preencher a livrança caução,(…)”.
C.
Atendendo à situação de incumprimento, foi o contrato resolvido e a livrança devidamente
preenchida.
D.
O pacto de preenchimento da livrança não caduca com a morte do subscritor,
tendo os sucessores do Avalista subscritor legitimidade para serem demandados
na ação executiva.
E.
No que diz respeito ao prazo de prescrição dos contratos de locação financeira,
é aplicável o disposto no artigo 309.º do CC, no qual consta o prazo de
prescrição de 20 anos, e o não o de 5 anos, previsto na alínea e), do artigo
310º do Código Civil,
F.
uma vez que, as rendas deste tipo contratual se reconduzem a uma única
prestação, que engloba a contrapartida da utilização de um bem locado, o custo
do bem, a gestão e os riscos próprios e inerentes da dita operação financeira.
G.
Ademais, o avalista não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado
(neste caso, a obrigação subjacente de pagar as rendas devidas pelo contrato de
locação), mas tão-somente ao pagamento da quantia titulada no título de crédito
(obrigação cartular e autónoma), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente
daquela,
H.
pelo que o avalista de uma livrança não pode opor ao seu beneficiário as exceções
fundadas nas relações imediatas estabelecidas entre este e os subscritores da
livrança.
I.
Pelo exposto entende-se que bem decidiu o Tribunal a quo não merecendo censura,
mas sim sustentação, a douta sentença recorrida.
Questões
a Decidir
São
as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4
e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera
de atuação do tribunal ad quem (exercendo
uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES
GERALDES[1]),
sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
(artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo
qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
Assim,
em causa nestes autos estará a decisão quanto à questão:
-
do prazo prescricional do artigo 310.º,
alínea e), do Código Civil ser aplicável à situação das rendas de um contrato
de locação financeira;
-
da caducidade do pacto de preenchimento
em apreço, por óbito do mandante.
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
de Facto
A
sentença sob recurso considerou como provada
a seguinte factualidade:
1- Em 13.09.2011, a exequente, na qualidade
de locador, a executada M-----, na qualidade de locatária, e A…, na qualidade
de avalista, celebraram acordo escrito designado «Contrato de Locação
Financeira”, tendo por objeto o veículo de matrícula -- -- --, com início na
referida data e termo em 13.09.2018, mediante o pagamento de 84 rendas mensais,
no valor de € 307,86 e valor residual de € 4.701,82 e demais cláusulas
constantes do documento junto com a contestação, que aqui se dá aqui por
integralmente reproduzido.
2- As partes estipularam, no âmbito desse
acordo, além do mais, o seguinte:
Cláusula 20.ª
“1. O Locatário obriga-se a entregar ao ---,
a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas
devidamente subscrita pelo Locatário e assinada pelo (s) Avalista(s) nos termos
da livrança anexa a este contrato.
(…) 5. Em caso de incumprimento, e após a
notificação escrita pelo -----, o Locatário autoriza expressamente o ----- a
preencher a livrança caução, designadamente no que se refere à data do
vencimento, local de pagamento e valor -o qual, após deduzida a quantia
entregue a titulo de deposito de caução- corresponderá ao montante que se
encontrar em divida até ao limite das responsabilidade assumidas pelo Locatário
em consequência do presente contrato, acrescido dos encargos com a emissão e selagem
do titulo”.
3- Por ocasião da celebração do contrato, A…
assinou em branco uma livrança, no espaço destinado à subscritora, em representação
da executada M… e, no espaço destinado ao avalista, e entregou-a à exequente.
4- A exequente enviou à executada M… carta
datada de 29.04.2019, informando-a da “resolução do contrato (…) com fundamento
em incumprimento definitivo e “do preenchimento da livrança-caução pelo
montante de € 29.907,29”, conforme doc. junto, que aqui se dá por reproduzido.
5- A exequente enviou a A… carta datada de
29.04.2019, entregue em 06.05.2019, comunicando-lhe que “não tendo o titular do
contrato (..) procedido, dentro do prazo estipulado, ao pagamento das rendas,
juros de mora e demais valores vencidos (…) foi efetuado, nos termos do pacto
de preenchimento acordado, o preenchimento da livrança-caução avalizada por V.
Exa. pelos montantes a seguir indicados (…) Total 29.907,29”, conforme doc. junto,
que aqui se dá por reproduzido.
6- A…, faleceu em 19.03.2015, tendo-lhe
sucedido como únicos herdeiros o cônjuge falecido e dois filhos P… e o ora
embargante.
7- A ora embargada intentou ação executiva
contra a executada M… e os herdeiros de A…, com base na referida livrança, que
tem inscritos o valor de € 29.907,29 e a data de vencimento de 11.05.2019.
Fundamentação
de Direito
A
Sentença sob recurso julgou improcedentes os embargos com base no seguinte processo
de raciocínio:
1
-
o embargante defende a prescrição da
dívida decorrente de crédito ao consumo ao abrigo do disposto no art.º 310.º,
al. e), do C.Civil;
2
- entre a exequente, a executada sociedade e o falecido A… foi celebrado um
contrato de locação financeira e não de crédito ao consumo, pelo que não estão
em causa “quotas de amortização do capital pagáveis com juros” e as “rendas”
relativas ao contrato de locação financeira correspondem a todos os encargos -
custos, juros e outras despesas - que representam uma obrigação única, embora
possa ser paga por forma repartida por tempo certo, pelo que à obrigação de as
pagar, não se aplica o regime de prescrição quinquenal previsto no art.º 310.º,
al. b) do C.Civil, mas o regime do prazo geral de prescrição, na falta de lei
especial que disponha de forma diferente.
3
- no domínio das relações imediatas, o avalista, desde que tenha tido
intervenção no pacto de preenchimento, como no caso dos autos, pode opor ao
portador do título a violação do pacto de preenchimento, cabendo-lhe o
respetivo ónus de alegação e prova;
4
- o embargante invoca que no requerimento executivo não é mencionada a
existência de qualquer pacto que legitimasse a exequente a preencher a livrança,
mas essa convenção existiu – vd. cláusula 20.ª do contrato - não tendo sido por
si alegada qualquer factualidade suscetível de, provando-se, fazer concluir pelo
preenchimento abusivo da livrança dada à execução.
*
"O
tempo é também na vida do direito um importante factor, um grande modificador
das relações jurídicas": são palavras de Luís Cabral de Moncada[2] e resultam claramente
comprovadas no instituto jurídico da prescrição.
Esta será, como referia Albano Ribeiro Coelho, "o meio por que,
havendo decorrido o tempo fixado na lei e verificando-se as demais condições
por esta exigidas, se adquirem
direitos pela posse, ou extinguem
obrigações por não se exigir o seu cumprimento"[3]: "pela prescrição
o devedor adquire o direito de se libertar
do cumprimento da obrigação, alegando-a e paralisando consequentemente a acção
do credor",
conclui Guilherme Moreira[4].
Como dizem Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, a “sua invocação é
feita, na maior parte dos casos, por exceção, como um meio de defesa que o
devedor opõe ao exercício do direito pelo credor”, constituindo “um efeito jurídico
da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício”,
traduzindo-se “em
o direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a
pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja
adstrita”[5].
O fundamento dominante deste
instituto jurídico, assenta seguindo agora Manuel de Andrade, na "negligência do titular do direito em
exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir
ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular),
indigno de protecção jurídica (dormientibus
non sucurrit ius)"[6].
Santoro-Passarelli sublinha
mesmo que a razão do instituto não é tanto a da “certeza
das relações jurídicas (…) como a da adaptação
da situação de direito à situação de
facto: uma vez que que um direito subjectivo não é exercido por quem o poderia fazer, durante um
certo tempo, esse direito perde-se para o seu titular”[7]
Como se refere num estudo publicado
pela Cour de Cassation francesa em 2014 sobre o tempo[8], a “prescrição sanciona,
antes de mais, a negligência em fazer valer um direito”, lutando
contra a “inércia
de um credor ou do titular de um direito”, respondendo a considerações mais
individualistas e subjectivas no caso do direito civil e de interesses de ordem
pública e paz social no direito penal, mas em todos os casos, sob o impulso de virtudes
de pacificação social[9].
E
é nessas virtudes que repousam os interesses
de ordem pública assinalados por Rodrigues
Bastos[10], ligados:
-
à certeza e segurança jurídicas ("as situações de facto que se
constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando
expectativas e se organizando planos de vida"[11]);
-
à protecção dos devedores ("contra as
dificuldades de prova a que estariam expostos no caso de o credor vir exigir o
que já haja, porventura, recebido"[12]);
-
ao estímulo e pressão educativa sobre "os titulares
dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação,
quando não queiram abdicar deles"[13] .
Sobre
este ponto, refere Von Thur[14] que "existe uma
probabilidade, baseada na experiência, «de que uma pretensão formulada com base
num facto constitutivo dado com muita anterioridade nunca tenha ocorrido ou se
tenha extinguido. Não obstante, subsistindo a prestação, o titular terá de
atribuir o prejuízo da prescrição à sua negligência na salvaguarda do seu
direito".
No fundo e para usar uma expressão de Dernburg, citada por Paolo Vitucci[15], o escopo da prescrição é a
«defesa do presente em face do passado».
Podemos até assumir que a prescrição
seja intrinsecamente injusta, mas será sempre um mal menor[16], em face dos
inevitáveis graves inconvenientes que ocorreriam, caso não existisse[17].
A situação é
particularmente clara no caso da prescrição negativa ou extintiva[18] ("instituto por
via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante
certo tempo fixado na lei e que varia conforme os casos"[19]),
caracterizada "pelo
facto de, não havendo sido pedido o cumprimento duma obrigação durante o prazo
fixado na lei, o credor perder o
direito respectivo"[20].
Assim, e na síntese de Ana Filipa Morais Antunes, estamos
diante de um instituto fundado “em interesses multifacetados”[21], como:
“i) a probabilidade de ter sido feito o
pagamento;
ii) a presunção de renúncia do credor;
iii) a sanção da negligência do credor;
iv) a consolidação de situações de facto;
v) a protecção do devedor contra a
dificuldade de prova do pagamento;
vi) a necessidade social de segurança
jurídica e certeza dos direitos;
vii) o imperativo de sanear a vida jurídica
de direitos praticamente caducos;
viii) a exigência de promover o exercício
oportuno dos direitos”[22].
Sistematizando os requisitos do conceito, temos "a existência dum direito; o seu
não exercício por parte do titular; e o decurso do tempo"[23], sendo que,
"verificados
estes elementos, a prescrição procede"[24], perdendo o
direito alegado, a sua eficácia .
Em
concreto, no Código Civil Português, a matéria vem regulada nos artigos 298.º e
300.º a 327.º do Código Civil e ainda em normas especiais deste (artigos 430.º,
482.º, 498.º, 500.º, 521.º, 530.º, 636.º), sendo evidente a dicotomia criada
entre prescrições extintivas (artigos
309.º a 311.º, 498.º) e presuntivas
(artigos 312.º a 317.º).
É
esta contextualização em termos de Direito e de compreensão do que
envolve e fundamenta a prescrição, que nos vai permitir olhar os factos em
causa neste Recurso e decidir em conformidade.
Há
assim que começar por perguntar, numa primeira abordagem, se o crédito
exequendo pode ser enquadrado nos prazos de prescrição extintiva de 5 anos, da
referida alínea b) (ou, acrescentamos nós), da alínea e)[25] –
ambos do artigo 310.º do Código Civil – ou se no prazo geral do artigo 309.º[26] (10
anos)[27].
A
questão é duvidosa e impõe ponderação.
No
Acórdão da Relação de Lisboa de 05/06/2003[28] (Processo
n.º 4372/2003-6-Granja da Fonseca),
teve a oportunidade de se assinalar e concluir que:
- o contrato de locação financeira (leasing)
tendo como elementos caracterizadores a cedência do
gozo temporário de uma coisa pelo locador (a)),
a aquisição ou construção dessa coisa por indicação do locatário (b)), a retribuição correspondente à
cedência (c)) a possibilidade de
compra, total ou parcial, por parte do locatário (d)), o estabelecimento de prazo por convenção (e)) e a determinação ou determinabilidade do preço de cedência, nos
termos fixados pelo contrato (f)), não é nem uma compra e venda (porque a
propriedade não se transfere por mero efeito do contrato), nem uma locação típica (pois o locatário tem o direito de acabar
por adquirir o respectivo bem);
- a renda a cujo pagamento o
locatário fica vinculado não corresponde ao valor locativo do bem (que não é a
contrapartida da sua utilização, pois deve permitir, dentro do período da
vigência, a amortização do bem locado e cobrir os encargos e a margem de lucro
do locador por forma a facultar ao locatário, findo o prazo do contrato, a
aquisição do bem pelo seu valor residual);
- enquanto que no contrato de locação
as rendas correspondem a prestações periódicas sucessivas, dependentes da
duração do contrato (em termos de, desaparecido o bem, desaparecer a
obrigação), na locação financeira há (economicamente) uma obrigação única do
devedor (que corresponde ao custo do bem, encargos e margem de lucro), com prestações
fraccionadas no tempo;
- as rendas da locação financeira não têm a
natureza das rendas locatícias, razão pela qual o prazo de 5 anos estabelecido
no artigo 310.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil, não lhes é aplicável
(sendo-o sim o prazo ordinário de prescrição estabelecido no artigo 309.º).
É
neste sentido que também tem decidido[29] o Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso
paradigmático o Acórdão de 12/01/2010 (Processo n.º 2843/06.2TVLSB.S1-Cardoso de Albuquerque), onde se assume
ser o prazo de 20 anos o aplicável às rendas deste tipo de contrato, uma vez
que estas não representam, apenas, a contrapartida da utilização de um bem locado,
incorporando ainda o valor decorrente da amortização do capital investido (o
custo do bem[30]) e a
gestão e riscos próprios que são inerentes a esta operação financeira.
Mais constata
o STJ que, na locação, as rendas
constituem obrigações periódicas, reiteradas ou com trato sucessivo, sendo que,
no leasing elas se reconduzem a uma
única, pois que o seu objecto se encontra pré-fixado e apenas é fraccionado
quanto ao seu cumprimento[31]
(ou seja, “o
factor tempo não é relevante, como justificação do prazo curto de 5 anos, por
ele apenas se relacionar com o modo da sua execução e dele não depender para a
fixação do seu objecto”[32]).
No
que ao “factor tempo” respeita, de facto, pode dizer-se, com o Acórdão da
Relação de Lisboa de 15/12/2005, que “as rendas da locação financeira, não
correspondendo a prestações periódicas, dependentes do factor tempo, mas a
prestações fraccionadas no tempo da mesma obrigação, sem aquela dependência,
não têm natureza locatícia”[33], o que nos
levaria à impossibilidade de as enquadrar na previsão do artigo 310.º, alínea
b), do Código Civil[34] [35].
No
que à alínea e) respeita, estabelece
esta um prazo prescricional único, de curta duração (5 anos), aplicável ao
capital e aos juros correspondentes, que devam ser pagos de forma conjunta
(recorde-se que, em causa nos autos, o que temos é um crédito emergente de um contrato de locação
financeira).
Ana Filipa
Morais Antunes assinala precisamente que a referida alínea abrange “as hipóteses de
obrigações pecuniárias, com natureza de prestações periódicas, pagáveis em
prestações sucessivas e que correspondam a duas fracções distintas: uma, de
capital e, outra, de juros, em proporções variáveis, a pagar conjuntamente”[36].
Ou
seja, nesta situação “está
em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de
financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que cabe[ria] aplicar o prazo ordinário de
prescrição, de vinte anos”, e não “diversamente, uma hipótese distinta,
resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizado num plano de
amortização do capital e dos juros correspondentes, que sendo composto por
diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de
prescrição, de curta duração. O referido plano obedece a um propósito de
agilização do reembolso do crédito, facilitando a respectiva liquidação em
prestações autónomas, de montante mais reduzido”[37].
No
caso do mútuo é a existência deste plano de amortização, fixando quotas de
pagamento de capital e juros, espaçadas no tempo, que se torna o factor decisivo
para poder ser considerado[38] o
prazo da alínea e) do artigo 310.º[39].
À
partida, portanto, qualquer destas duas alíneas seriam inaplicáveis às rendas
do contrato de locação financeira.
Mas
há que ir mais além.
Como
o fez Fernando de Gravato Morais quando
escreveu que “a
prestação global do locatário financeiro configura uma dívida a prestações (e não uma dívida periódica), estando portanto
em causa o fracionamento de uma obrigação de restituição. Na verdade, o objecto
da prestação foi, desde o início, pré-fixado, não estando dependente da duração
da relação contratual.
Todavia,
enquanto não se identifique com aquelas prestações (periódicas). Deve dizer-se
que o pagamento da renda constitui
uma contrapartida (do financiamento) do gozo da coisa. Aproxima-se assim, pelo
menos sob este prisma, do que sucede com o reembolso da soma mutuada.
Por
outro lado, refira-se que a prestação do locador tem carácter continuado,
integrando-se num negócio considerado globalmente de natureza duradoura.
Acrescenta-se
que a consagração de prazos de prescrição curtos pretende que o credor seja
diligente e que não acumule créditos, evitando-se, concomitantemente, com o
decurso do tempo, encargos excessivos e desmesurados para o devedor.
Preconizamos,
pois, na esteira do que expressa – em termos gerais – Henrique Mesquita, uma
adaptação da disciplina “aos interesses em jogo, apreciados e valorados à luz
das soluções ditadas pelo legislador para os problemas que directa e
expressamente se ocupa
As
razões apresentadas impõem assim a aplicação, em via analógica, do art. 310.º
al. b) do CC, devendo considerar-se que a obrigação de pagamento das rendas
prescreve no prazo de 5 anos a contar do respectivo vencimento”[40].
Este
é, também, o entendimento que temos como correcto.
Na
prática corresponderá à concretização (ou operacionalização) daquilo a que Pedro Pais de Vasconcelos chama, na sua
“Última Aula”, de “Natureza das Coisas”[41]:
para “a
operacionalidade do método da “Natureza das Coisas” é necessário por em
contacto o dever ser e o ser, mediados pela “Natureza das Coisas”. A mediação
entre o ser e o dever-ser deve ser feita a dois níveis, ao nível da legislação
– da criação da norma – e ao da concretização – da aplicação da norma aos
factos concretos”.
É
neste último plano que nos situamos in
concretu: “Logo
na clássica tarefa de interpretar a lei, a Natureza das Coisas intervém, como
manda o artigo 9º do Código Civil, na reconstituição do pensamento legislativo
a partir do texto, na tomada em consideração da unidade do sistema jurídico,
das circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do
tempo em que é aplicada. Na interpretação da lei, de qualquer lei até da lei
constitucional, deve ainda ser chamado a contribuir o modo como, na sua génese,
no seu processo legislativo, foi tida em consideração e respeitada a Natureza
das Coisas e corrigido, quando não tenha sido suficientemente ou não tenha sido
bem tida consideração. Tratar-se-á então de uma interpretação corretiva praeter legis ou mesmo contra legis mas secundum ius”[42].
E
o campo das relações socialmente típicas é mesmo um dos campos de funcionamento
privilegiado deste tipo de considerações: “Há muitas posições e relações no direito
privado que são socialmente típicas” e que “têm, na Natureza das Coisas – enthia moralia – conteúdos de valor – de dever-ser e de dever-agir – que
estão estabelecidos e estabilizados, que são típicas na sociedade e na vida, e
que transportam consigo uma normatividade própria”, sendo que, “o seu conteúdo não
está, nem tem de estar na lei, pelo menos, completamente. Tem de ser
concretizado, caso a caso, conforme a situação em que se encontrem (…) de modo a se poder concluir qual é o
modo de agir que cada uma das posições-em-relação espera da outra, tem uma
expectativa de comportamento da outra, de que a outra se comporte deste modo e
não se comporte daquele modo e se esse comportamento merece ser juridicamente
protegido pela boa fé”[43].
Ora,
já vimos que as rendas da locação financeira não encaixam directamente na
previsão da alínea b) do artigo 310.º (porque, desde logo, são diferentes das
da locação) e que não cabem na alínea e) (porque são diferentes das do mútuo
com juros), mas não custa concluir que os interesses em jogo, o facto de se
tratar – socialmente[44] – de
um contrato de financiamento (que o aproxima do mútuo) e as circunstâncias de a
prestação da empresa locadora ter um carácter continuado (integrando-se num
negócio considerado globalmente de natureza duradoura[45]) e de
se fazerem sentir exactamente as mesmas necessidades de evitar insolvências de
devedores (não deixando que se acumulem as dívidas[46]), permite-nos
apontar no sentido de terem o mesmo tratamento prescricional.
Repare-se
que no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2020 (atrás citado), a
Juíza-Conselheira Maria do Rosário
Morgado - a propósito do prazo da alínea e) do artigo 310.º - usa mesmo a
expressão de que é o prazo de cinco anos que deve ser aplicado às situações em
que ocorre a antecipação do vencimento de todas as prestações, como
consequência “de patologias ocorridas no
plano do (in)cumprimento do contrato”.
Todas
as referências apontadas na nota de rodapé 39 vão, aliás, neste mesmo sentido,
respeitando – ainda – todo o enquadramento atrás falado sobre o que fundamenta
a prescrição dos 5 anos: “evitar
a acumulação dos montantes em dívida tornando o pagamento excessivamente
oneroso para o devedor; necessidade de uma acrescida diligência do credor na
recuperação do seu crédito, tendo em vista, numa óptica do ‘favor debitoris’
imanente ao CCiv, evitando a perpetuação, com a consequente incerteza e
insegurança, da situação do devedor”[47].
Certo
que não se trata de uma situação expressamente regulada, mas certo também que o
artigo 10.º do Código Civil[48]
existe para a verificação deste tipo de casos (constituindo, mesmo, uma das
formas de actuação comum do aludido modelo de verificação da “Natureza das
Coisas”).
Como
dizia Oliveira Ascensão, a “semelhança da
situação ou da apresentação faz presumir que o regime jurídico também é
semelhante”[49], pelo que,
perante “uma
incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste”[50], importa
fazer as necessárias valorações para encontrar a solução adequada: “Podemos fazer a
comparação com uma obra de arquitectura. Não dizemos que tudo o que lá não está
é lacuna – pode não estar e nenhuma razão haver para estar. Mas pode faltar um
bocado – um corpo do edifício, uma varanda, um telhado – que contrarie a
própria traça do edifício, e só então dizemos que há lacuna”[51].
No
processo de valoração dos factos e do Direito que temos diante de nós nestes
autos, a consideração a dar ao prazo prescritivo aplicável às rendas da locação
financeira, caso fosse a do prazo geral de 20 anos do artigo 309.º, dariam ao
nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta dos prazos aplicáveis
a contratos que apresentam muitas similitudes - os que constam da alínea b) e
e) do artigo 310.º - pelo que de forma a repô-la, haverá que – também a elas –
aplicar o prazo de cinco anos.
É
este entendimento que permite atender à ordem jurídica no seu conjunto.
É
este o entendimento que corresponde à “Natureza das Coisas” (ou, se se preferir
a já citada fórmula de Henrique Mesquita,
à adaptação “aos
interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo
legislador para os problemas que directa e expressamente se ocupa”).
É
isso que faz a entidade que financia ficar em situação semelhante à que
respeita a outros tipos contratuais que promovem o recurso ao crédito por parte
de particulares e empresas.
Assim
sendo, e tendo decorrido até à entrada em juízo da execução (em Setembro de
2019), mais de cinco anos desde o vencimento das rendas em causa (valor
consubstanciado na livrança apresentada como título executivo), por aplicação
do prazo prescricional previsto no artigo 310.º, alíneas b) e e), do Código
Civil, o crédito sob execução mostra-se prescrito, tendo a prescrição sido
devidamente invocada por quem dela pode ser beneficiário em sede de embargos.
A
Recorrida-Embargada sublinhe-se, só de si se pode queixar, pois deixou que a prescrição
(e o que a fundamenta) se corporizasse, fazendo relevar o tempo decorrido sobre
a relação jurídica que estabeleceu e deixando que a certeza, a segurança do
tráfego jurídico e a paz social, se sobrepusessem aos direitos de protecção que
o ordenamento jurídico lhe proporcionava (por – com a sua inércia – os não ter
exercido nos limites temporais fixados pelo legislador[52]).
*
Concluindo,
a Sentença proferida terá de ser alterada e, em conformidade, julgados
os embargos procedentes, com
a consequente
absolvição do embargado do pedido executivo formulado.
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar procedente a apelação,
substituindo a decisão recorrida
por outra que julga os embargos procedentes,
com a consequente
absolvição do embargado do pedido executivo formulado.
Custas
a cargo da Recorrida-Embargada.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 26 de Abril de 2022
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo
Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Lições de Direito
Civil, Parte Geral, II, 2.ª edição, Atlântida, Coimbra, 1955, página 423.
[3] Albano Ribeiro Coelho, Prescrições de Curto Prazo, Jornal do Foro,
Ano 27, 142-143-144, Jan-Set, 1963, página 54.
[4] Guilherme Moreira, Instituições de Direito Civil Português, II,
página 239.
[5] Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria
Geral do Direito Civil, 9ª edição, Almedina, 2019, página 386.
[6] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 7.ª
reimpressão, Almedina, 1987, página 445; Paolo
Vitucci, La prescrizione, Tomo primo, Artt. 2934-2940, Giuffré Editore,
Milano, 1990, páginas 20 a 28.
[7] Santoro-Passarelli, Teoria Geral do Direito Civil, Atlântida,
Coimbra, 1967, página 88.
[8] “Le temps”, estudo
organizado sobre a direcção científica de Cécile
Chainais, in Le temps dans la jurisprudence de la Cour de Cassation, Rapport
Annuel 2014, Cour de Cassation, 2015, páginas 126 a 409, em especial 137 a 287.
[9] Ob. cit., página 248.
[10] Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, II, Lisboa, 1988, página
63.
[11] Manuel de Andrade, ob. cit., página 446.
[12] Manuel de Andrade, ob. loc. cit.; Karl Larenz, Derecho Civil-Parte General, Editoriales de Derecho
Reunidas, 1978, páginas 328-329.
[13] Manuel de Andrade, ob. loc. cit..
[14] Citado por Karl Larenz,
ob. cit., página 329.
[15] Paolo Vitucci, ob. cit., página 22.
[16] Sublinhando a
“aterradora negatividade emprestada ao tempo”, François Ost (in O Tempo
do Direito, Instituto Piaget, 2001, página 9), conta a terrível história do
início das relações entre o tempo e o direito, através da mitologia grega: “Uma
história que, para dizer a verdade, começou mal. Kronos (…) não conseguiu que o tempo e o direito revertessem a seu
favor. A história de Kronos começa na
indistinção do não-tempo. Com efeito, originalmente, tínhamos Úrano, o céu, e Gea, a terra, enlaçados num abraço infindável de que nasciam
inúmeros filhos, enviados de imediato para o Tártaro. Desejosa de repelir as
intermináveis investidas do seu esposo, Gea
armou um dia o seu filho mais novo, Kronos,
com uma pequena foice, com a ajuda da qual este cortou os testículos de seu
pai. Esta mutilação assinala a separação do Céu e da Terra, e o início do reinado
de Kronos. Mas a história que assim
se inaugura é marcada pela violência e pela negação do tempo: Kronos tratou de mandar os seus irmãos,
os Cíclopes, para o Tártaro, enquanto
tomava o lugar de seu pai no trono, inaugurando um reino sem partilha. Avisado
por uma profecia de que um dos seus filhos o destronaria um dia, tinha o
cuidado de devorá-los assim que sua mulher, Reia, os punha no mundo. Até ao dia
em que esta, importunada, decidiu subtrair o último, Zeus, à vindicta de Kronos;
depois de o ter escondido numa gruta, fez o seu real esposo engolir uma pedra
envolta em faixas. Chegado à idade adulta, Zeus,
como o oráculo predissera, encabeçou uma revolta e pôs fim ao reino de Kronos que, por sua vez, foi enviado
para o Tártaro”.
[17] Karl Larenz, ob. cit., página 329; cfr., Manuel de Andrade, ob. cit., página 446; Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ 105 (1961], páginas 5 a
248 e BMJ 106, páginas 45 a 278; José
Puig Brutau, Caducidad, Prescripción Extintiva y Usucapión, 3.ª edición
actualizada y ampliada, Bosch, 1996, páginas 31 a 62.
[18] De notar que Autores
como Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos
consideram que a “prescrição não extingue o direito nem a vinculação. Apenas
confere ao obrigado o poder de recusar o cumprimento” (Teoria Geral…, cit.,
página 387), ao passo que Carvalho Fernandes, a entende como a “extinção de
direitos por efeito do seu não exercício dentro do prazo fixado na lei, sem
prejuízo de se manter devido ao seu cumprimento como dever de justiça” (Teoria
Geral do Direito Civil. II, 5.ª edição, Universidade Católica Editora, 2010,
página 650).
[19] Manuel de Andrade, ob. cit., página 445.
[20] Albano Ribeiro Coelho, ob. cit., página 54.
[21] Ana Filipa Morais Antunes, Algumas Questões Sobre Prescrição e
Caducidade, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo
Correia, III, FDUL-Coimbra Editora, 2010, página 39.
[22] Ob. loc. cit..
[23] Luís Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, cit., página 424;
na 4.ª edição desta obra (Almedina, 1995, página 729); Rubén Stiglitz, Contratos-Teoría General, I, Ediciones Depalma,
1994, páginas 769-770.
[24] Albano Ribeiro Coelho, ob. cit., página 54.
[25] “Prescrevem no prazo
de cinco anos:
a) As anuidades de rendas
perpétuas ou vitalícias;
b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por
uma só vez;
c) Os foros;
d) Os juros convencionais ou
legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e) As quotas de amortização do
capital pagáveis com os juros;
f) As pensões alimentícias
vencidas;
g) Quaisquer outras prestações
periodicamente renováveis”.
[26] “O prazo ordinário da
prescrição é de vinte anos”.
[27] Com interesse, vd. Sara Abdulmagide, Os Direitos do Locador
em caso de Incumprimento do Contrato de Locação Financeira – Cláusulas e
Limites Legais, [em linha]
Dissertação de Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Católica
Portuguesa - Escola do Porto, 2012, páginas 15-16, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16603/1/Tese%20de%20Mestrado.pdf [consultado em 14/04/2022].
[28] Cfr. também, RL
15/12/2005 (Processo n.º 11243/2005-6-Olindo
Geraldes): “a obrigação da locatária era apenas uma, fraccionada no tempo,
com o seu objecto pré-fixado, sem dependência da duração da relação
contratual”.
[29] Vd., também, STJ
11/12/2003 (Processo n.º 03B3516-Oliveira
Barros): “I - Diversamente do que acontece no contrato de locação
financeira, as rendas não representam apenas a contrapartida da utilização do
bem locado, relevando, pelo contrário, na sua composição, o valor
correspondente à amortização do capital investido, isto é, do custo do bem, os
custos de gestão e os riscos próprios da locação financeira.
II - Enquanto, assim sendo, as rendas
do contrato de locação constituem obrigações periódicas, reiteradas ou com
trato sucessivo, as rendas da locação financeira integram, por sua vez,
obrigação de prestação, em si mesma, unitária, na medida em que o seu objecto
se encontra pré-fixado, e tão só dividida ou fraccionada quanto ao seu
cumprimento.
III - As rendas da locação financeira
não podem, por conseguinte, equiparar-se às rendas locatícias comuns para o
efeito da aplicação do art. 310, al. b), C.Civ., valendo, antes, no que se lhes
refere, o disposto no art. 309, isto é, o prazo ordinário da prescrição”.
E, ainda, STJ 04/10/2000 (Barata Figueira) - publicado na Colectânea de Jurisprudência-Acórdãos
do Supremo Tribunal da Justiça, Ano VIII, Tomo III, 2000, páginas 59-62 – e
21/05/1998 (Garcia Marques) –
publicado no BMJ 477, páginas 489-504.
[30] “As rendas da
locadora financeira não são rendas locatícias, não representam a contrapartida
da utilização do bem, objecto do contrato, constituindo antes a amortização do
mesmo, por forma a facultar que, no seu termo, o locador possa exercer a opção
de compra pelo seu valor residual” – RL 12/07/2001 (Pais do Amaral), publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano
XXVI, 2001, Tomo IV, páginas 85-87).
[31] “São, antes e apenas,
o cumprimento fraccionado no tempo da mesma obrigação, em cujo objecto este não
influi” – STJ 04/10/2000, cit..
[32] STJ 12/01/2010, cit..
[33] RL 15/12/2005, cit..
[34] “A razão essencial
desta prescrição de curto prazo é evitar que o credor deixe acumular
excessivamente os seus créditos, para proteger o devedor contra a acumulação da
sua dívida, que, de dívida de mensalidades ou de anuidades, pagas com os seus
rendimentos, se transformaria em dívida de capital susceptível de o arruinar,
se o pagamento pudesse ser exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado
de anos” – STJ 04-10-2000, cit..
[35] Neste mesmo sentido, Raquel Tavares dos Reis, O contrato de
locação financeira no direito português: elementos essenciais, [em linha]
Gestão e Desenvolvimento, 11 (2002) páginas 113-165, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/8981/1/gestaodesenvolvimento11_113.pdf
[consultado em 14/04/2022]
E ainda, citado por esta mesma Autora, Pedro António Sequeira de Oliveira, A
resolução do contrato de locação financeira mobiliária por incumprimento do
locatário, Dissertação de Mestrado na área de Ciências Jurídico-Civilísticas,
apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1995, p. 193 e
194 e Guido Ferrarini, La locazione finanziaria, Giuffrè, Milão, 1977, p. 220 e
221.
[36] Ana Filipa Morais Antunes, Algumas…, cit., página 44.
[37] Ana Filipa Morais Antunes, Algumas…, cit. página 47; Prescrição e
Caducidade, anotação aos artigos 296º a 333º, do Código Civil, 2.ª edição,
Coimbra Editora, 2014, páginas 124-128.
Com dúvidas, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral,
Tomo V, 3.ª edição, Almedina, 2017, página 214.
[38] Serão sempre
“indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital
pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos
perante quotas integradas por duas fracções: uma de capital e outra de juros, a
pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações
periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do
mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após
outra” (Ana Filipa Morais Antunes,
ob. cit., página 47).
[39] Como referimos no
Acórdão de 23/11/2021 (Processo n.º
12754/19.6T8SNT-A.L1-subscrito por esta mesma composição), acompanhando “o decidido no Acórdão do STJ de 29/09/2016
(Processo n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1-Lopes do Rego), “efectivamente, no caso do
débito do capital mutuado, estamos confrontados com uma obrigação de valor
predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fraccionado ou
parcelado num número fixado de prestações mensais; ou seja, em bom rigor, não
estamos aqui perante uma pluralidade de obrigações que se vão constituindo ao
longo do tempo, como é típico das prestações periodicamente renováveis, mas
antes perante uma obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento
foi parcelado ou fraccionado em prestações.
Porém, o
reconhecimento desta específica natureza jurídica da obrigação de restituição
do capital mutuado não preclude, sem mais, a aplicabilidade do regime contido
no citado art. 310º, já que – por explicita opção legislativa - esta situação
foi equiparada à das típicas prestações periodicamente renováveis, ao
considerar a citada al. e) que a amortização fraccionada do capital em dívida,
quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando
uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação
do prazo quinquenal de prescrição.
Ou seja,
o legislador entendeu que , neste caso peculiar, o regime prescricional do
débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser absorvido
pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente
renovável de juros, devendo, consequentemente, valer para todas as prestações
sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do
capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto
de prescrição decorrente do referido art. 310º” (No mesmo sentido, STJ
06/07/2021 (Fátima Gomes)-Processo n.º 6261/19.4T8ALM-A.L1.S1; STJ 09/02/2021
(Fernando Samões)-Processo n.º 15273/18.4T8SNT-A.L1.S1 STJ 12/11/2020 (Maria do
Rosário Morgado)-Processo n.º 7212/18.5T8STB-A.E1.S1; STJ 03/11/2020 (Fátima
Gomes)-Processo n.º 8563/15.0T8STB-AE1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt; Também neste sentido STJ 08/04/2021
(Nuno Pinto Oliveira)-Processo n.º 5329/19.1T8STB-A.E1.S1. disponível in https://www.direitoemdia.pt/search/show/2e2bc4e9fac0396e5f7bc7f38d042ff3315e1b49039c3948760dc3d74d98b05a.
Assim e
como se desmonta no Acórdão do STJ de 27/03/2014 (Processo n.º
189/12.6TBHRT-A.L1.S1-Silva Gonçalves), a propósito da tese defendida pela
Recorrente (No sentido de na alínea e) caberem apenas as obrigações pecuniárias
com natureza de prestações periódicas, pagáveis em prestações sucessivas e que
correspondam a duas fracções distintas: uma de capital e outra de juros, em
proporção variável, a pagar conjuntamente), “o certo é que a realidade
circunstancial que envolve o relacionamento contratual estabelecido entre o
exequente e os executados se não propaga nesta realidade jurídico-substancial.
(…)
A expressão “quotas de amortização” utilizada
nesta alínea designa prestações fraccionadas ou repartidas que se caracterizam
“pela ausência de toda e qualquer nota de
autonomia – as prestações
fraccionadas ou repartidas são “puros modos de concreção de um programa
acabadamente definido””, assinala-se no Acórdão STJ de 23/01/2020 (Processo n.º
4518/17.8T8LOU-A.P1.S1-Nuno Pinto
Oliveira), no qual se assinala que a obrigação unitária assumida pelos
mutuários (que podem, para o caso dos presentes autos, ser os ora
Recorridos-Embargantes) estava compartimentada num mútuo e respectivos juros,
ficando em causa uma obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento – por
acordo das partes – estava fraccionado ou parcelado num número fixado de
prestações mensais (as 300 que constam dos factos apurados), pelo que, essa obrigação unitária (compartimentada no
mútuo e respectivos juros), se converte na já referida “prestação mensal de
fraccionada quantia global”, a amortizar “na medida em que se processasse o seu
cumprimento”.
Deste modo, o “acordo pelo qual se
“compartimenta” a obrigação de restituição do capital é um acordo de
amortização e cada uma das prestações em que a obrigação de restituição se
“compartimenta” é uma quota de amortização. Em consequência, cada uma das
prestações mensais devidas pelo mutuário é uma quota de amortização do capital
no sentido do art. 310.º, alínea e), do Código Civil” (STJ 23/01/2020 -Nuno Pinto Oliveira).
A Jurisprudência do Supremo Tribunal de
Justiça é, pode dizer-se, constante, neste sentido, desde – pelo menos – a
publicação na Colectânea de Jurisprudência, do Acórdão de 04/05/1993, relatado
pelo Conselheiro Santos Monteiro (Colectânea
de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo II,
1993, ASJP, páginas 82-84).
Como se diz no Acórdão do STJ de 18/10/2018
(Processo n.º 2483/15.5T8ENT-A.E1.S1-Olindo
Geraldes), na “verdade, desde há muito, que a prestação englobando quotas
de amortização de capital e juros, numa proporção variável, tende a ser
perspetivada de um modo unitário, com a aplicação do prazo comum de cinco anos,
para a verificação da prescrição.
Esta prescrição destina-se a evitar a ruína
do devedor, pela acumulação da dívida, derivada designadamente de quotas de
amortização de capital pagável com juros. Numa situação destas, a exigência do
pagamento de uma só vez, decorridos demasiados anos, poderia provocar a
insolvência do devedor a viver dos rendimentos, nomeadamente do trabalho, e que
o legislador, conhecedor das opções possíveis, quis prudentemente prevenir,
colocando no credor maior diligência temporal na recuperação do seu crédito
(VAZ SERRA, BMJ n.º 107, pág. 285).
Neste âmbito, o legislador equiparou a
amortização do capital, designadamente do mútuo, realizada de forma parcelar ou
fracionada por numerosos anos, como no mútuo bancário destinado a habitação
própria, ao regime dos juros, ficando sujeito ao mesmo prazo de prescrição,
nomeadamente cinco anos – art. 310.º, alínea e), do CC.
Com efeito, a razão que justifica a
prescrição dos juros decorrido o prazo de cinco anos, tem igual cabimento, no
caso do referido pagamento fracionado, não obstante a restituição do capital
mutuado possa corresponder a uma obrigação unitária.
Dada tal equiparação de regime, compreende-se
que, ao caso, não possa ser aplicável o prazo ordinário da prescrição de vinte
anos, previsto no art. 309.º do CC”.
De facto, sublinha-se - por seu turno - no
Acórdão STJ de 10/09/2020 (Processo n.º 805/18.6T8OVR-A.P1.S1-Rijo Ferreira), que “a fixação deste
prazo quinquenal, por contraposição ao prazo ordinário de prescrição
estabelecido no art.º 309º do CCiv., como é entendimento unânime, encontra
fundamento no interesse de proteção do devedor, prevenindo que o credor,
retardando a exigência de prestações periodicamente renováveis, as deixe
acumular, tornando excessivamente oneroso o pagamento a cargo do devedor. Desta
forma, o prazo especial de prescrição de cinco anos, previsto no artigo 310.º
do Código Civil, visa proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida,
que, de dívida de prazos periódicos mais curtos ou anuidades, se transformaria
em dívida de montante suscetível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser
exigido pelo credor de uma só vez, ao final de vários anos, situação que o
legislador quis prevenir exigindo do credor acrescida diligência temporal na
recuperação do seu crédito” (VAZ SERRA, no já referido estudo, publicado nos
BMJ n.ºs 105 e 106 (Prescrição Extintiva e Caducidade – estudo de direito civil
português, de direito comparado e de política legislativa), esclarece que esta
prescrição reduzida de cinco anos “se destina a evitar que, pela acumulação de
prestações periódicas, se produza a ruína do devedor”, uma vez que o valor dos
juros pode mesmo vir a suplantar o do
capital, de modo que ela deve aplicar-se “sempre que se trate de prestações
periódicas derivadas de uma determinada relação jurídica” (página 119), sendo
que, no que concerne às quotas de amortização pagas conjuntamente com os juros
correspondentes, se não se utilizasse o mesmo critério “poderia dar-se uma
acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de
quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e
tratá-lo como juros” (página 114).
[40] Fernando de Gravato Morais, Manual da Locação Financeira, 2.ª
edição, Almedina, 2011, página 110.
A citação de Henrique Mesquita reporta-se
a Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1990, página 184, onde se propõe
esse “caminho metodologicamente correcto para esclarecer dúvidas
interpretativas ou resolver problemas de interpretação” (páginas 183-184).
Em sentido concordante, Sara Abdulmagide, Os Direitos do Locador
em caso de Incumprimento do Contrato de Locação Financeira – Cláusulas e
Limites Legais, [em linha]
Dissertação de Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Católica
Portuguesa - Escola do Porto, 2012, páginas 15-16, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16603/1/Tese%20de%20Mestrado.pdf [consultado em 14/04/2022].
[41] “A Natureza das
Coisas recolhe o seu nome na tradicional Rerum
Natura e pede-lhe emprestado algum do seu sentido, mas com uma modificação
profunda. Não é uma natureza que as pessoas e as coisas tenham de permanente e
imutável, determinada pelo Criador na Criação, também não é o presente estado das
coisas, seja ele qual for – é algo de mais complexo.
Na esteira de Pufendorf, a Natureza das
Coisas distingue enthia physica e enthia moralia. Pufendorf diz, de modo
expressivo, que os enthia physica são
o que Deus fez e os enthia moralia
são o que o homem fez. É semelhante.
Os enthia
physica são as realidades do mundo físico, como diz a expressão, com que o
homem contacta e o envolvem, que o condicionam e que o limitam. São as coisas,
as pedras, os rios, as aves, as forças da natureza, a sequência dos dias e das
noites, as forças cósmicas, etc.
Os enthia
moralia são as realidades morais e culturais em que as pessoas vivem, os
usos, os costumes e as ideologias, a maneiras de viver, as religiões, as éticas
e as morais, as estéticas, as ciências, a memória e a história, etc.
Tanto os enthia physica como os enthia
moralia limitam, influenciam e condicionam a acção humana na vida. O
Direito, como disciplina ética que é, realiza-se em comportamentos e ações
humanas e, por isso, é também limitado, influenciado e condicionado pelos enthia physica e pelos enthia moralia que constituem a Natureza
das Coisas. Esta é a consequência trivial da verdade nada trivial de que o
Direito só rege sobre pessoas e só pode o que as pessoas puderem.
E assim, é totalmente ineficaz uma lei
ou um comando jurídico que revogue a lei da gravidade, que proíba que o
quadrado da hipotenusa seja igual à soma do quadrado dos catetos ou revogue a
lei da morte ou que ordene a felicidade de todos. É impossível.
Não é, já ineficaz, mas é insensata,
uma lei ou um comando jurídico que determine o que é perigosos ou imprudente,
que decrete, por exemplo, limites de velocidade de circulação na estrada que
sejam irrazoáveis, impostos injustos, políticas criminais contraproducentes,
qualifique como crimes condutas que não atentem contra o bem comum nem contra a
vida em sociedade e que a generalidade das pessoas considera lícitas e
aceitáveis.
Os enthia
physica e os enthia moralia tanto
limitam e forçam, como condicionam e influenciam o Direito” – Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição-A Natureza das Coisas, Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa - 16 de Maio de 2016, edição do Autor,
páginas 8-9.
[42] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 11.
[43] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 17.
[44] Esta relevância
social é importante, pois, cada vez mais, se trata de um tipo contratual assim
entendido por particulares e empresas, para gerir custos e necessidades.
[45] Como sublinha Gravato Morais.
[46] Quanto a este
aspecto, a posição que vem sendo assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça é
uniforme (desde o também já referido Acórdão de 04/05/1993, a todos os
restantes Acórdãos já citados) e vai no sentido de que o legislador pretende
manifestamente evitar a verificação de situações de insolvência, (cfr. os cits.
STJ 18/10/2018, STJ 06/07/2021 e 03/11/2020).
[47] STJ 10/09/2020, cit..
[48] “Artigo 10.º
(Integração das lacunas da lei)
1. Os casos que a lei não preveja são
regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso
omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na
lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação
é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar
dentro do espírito do sistema”.
[49] José de Oliveira Ascensão, O Direito-Introdução e Teoria Geral, 3.ª
edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, página 323.
[50] José de Oliveira Ascensão, O Direito…, cit. página 347.
[51] José de Oliveira Ascensão, O Direito…, cit., página 348.
[52] Cfr., STJ 19/06/2012,
Processo n.º 944/08.3TBGDM.P1.S1 (Fonseca
Ramos), disponível in www.dgsi.pt.
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