Processo n.º 20778/20.4T8LSB.L1
Tribunal
a quo
Tribunal
Judicial da Comarca de Lisboa-Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 13
Recorrente
M
(Ré-Reconvinte)
Recorrido
MUNICÍPIO…
(Autor-Reconvindo)
Ré
C…
*
Sumário:
I – À face
do artigo 615.º do Código de Processo Civil invocar a insuficiência de factos
alegados/provados, ou a falta de uma autorização para usucapir, não corresponde
à invocação de uma nulidade, mas apenas ao manifestar de uma discordância (que,
eventualmente, corresponderá a um erro de julgamento), que se enquadra numa
prática comum, mas errada e irracional, de confundir inconformismo com a
decisão, com os vícios formais previstos no n.º 1 do citado normativo
II - A
impugnação da matéria de facto em sede de recurso é mais do que uma
manifestação de inconformismo inconsequente exigindo, com seriedade,
razoabilidade e proporcionalidade, nos termos do artigo 640.º do Código de
Processo Civil:
- a indicação motivada (sintetizada nas
Conclusões) dos concretos factos incorrectamente julgados–n.º 1, alínea a); - a especificação dos
concretos meios probatórios presentes no processo, registados ou gravados (com
a indicação das concretas passagens relevantes) – n.º 2, alíneas a) e b) – que
imporiam uma decisão diferente quanto a cada um dos factos em causa, propondo
uma redacção alternativa – n.º 1, alíneas b) e c).
III – A
usucapião é um instituto jurídico do qual decorre a aquisição originária de um
direito real, a favor de quem detenha a sua posse (com “corpus” e “animus possidendi”)
e por seu impulso, por um período de tempo determinado (dependendo de ser bem
móvel ou imóvel, de boa ou de má fé), perante a total inacção do proprietário,
sendo, como tal, não um ataque à propriedade, mas um tributo à posse.
IV – A
usucapião tem funções de consolidação de uma situação de facto, de
regularização da ordem jurídica e de prova.
V – No caso
da usucapião, o Estado (em sentido amplo, abrangendo aqui o Município) está ao
nível de qualquer particular, sujeito exactamente às mesmas regras.
VI – Para
invocar a usucapião em juízo o Município não necessita de autorização da
Assembleia Municipal, uma vez que o artigo 25.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º
75/2013, de 12 de Setembro, apenas se reporta a aquisições derivadas e onerosas
e não a originárias e gratuitas, pois só aquelas implicam com encargos ou
utilização de recursos financeiros que têm de ser controlados e fiscalizados.
VII – Pode
usucapir quem possa possuir, pelo que o Estado, como qualquer particular ou
pessoa colectiva, pode ser beneficiário de usucapião, desde que reúna todos os
seus requisitos (praticando os actos de posse adequados e pelo tempo
necessário).
VIII – A
usucapião está justificada por interesses de ordem pública, ligados à certeza,
definição, estabilidade e segurança jurídicas, permitindo harmonizar o direito
com a realidade.
Relatório
MUNICÍPIO
…intentou a
presente acção declarativa contra as Rés
M e C peticionando:
a)
Seja declarado que a 1.ª Ré não é proprietária do lote de terreno para
construção com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em
E…, freguesia de …, concelho de …, inscrito na respectiva matriz predial sob o
artigo 3583, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 6.305.350,
descrito na Conservatória de Registo Predial de …sob o número dois mil
quatrocentos e oitenta e três da freguesia de …, objecto da escritura pública
de justificação lavrada no dia 22.09.2017, no Cartório Notarial da Dra. R…, que
consta a fls. 53 a 55 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 193-A do
referido Cartório, tal como nela se arroga, por serem falsas as declarações da
1.ª Ré e dos declarantes constantes da referida escritura;
b)
Ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação
notarial, não podendo a 1.ª Ré, através dela, registar quaisquer direitos sobre
o prédio nele identificados;
c)
Seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da 1.ª Ré
efectuado com base na mencionada escritura de justificação, mais concretamente
a coberto da AP. 481 de 2017.12.13 e, em consequência,
d)
Seja ordenado o cancelamento de todos os registos efectuados na dependência e
sequência daquele, nomeadamente o registo das penhoras a favor da Fazenda
Nacional, registadas a coberto das AP. 1613 de 2018.05.23 e AP. 121 de
2018.10.18;
e)
Que seja reconhecido o direito de propriedade do Autor sobre o prédio urbano
descrito na alínea a), composto por terreno para construção, com área de três
mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de …, concelho
de …, e, em consequência, sejam as Rés condenadas a reconhecer o seu direito,
abstendo-se de praticar qualquer acto lesivo do mesmo.
Alegou, em suma, o Autor, que:
-
a primeira Ré celebrou escritura de justificação notarial por via da qual foi
declarada proprietária do imóvel descrito em sede de petição inicial, mas que
as declarações feitas nesse âmbito eram falsas, porquanto o imóvel (originariamente
propriedade do Autor) foi vendido à segunda Ré com o fim de esta aí construir a
sua sede;
-
o dito imóvel nunca saiu da titularidade do Autor, porquanto a segunda Ré nunca
aí fez construir a sua sede e sempre o Autor continuou a tratar do imóvel (como
sempre o tinha feito), com o consentimento da primeira Ré (proprietária
inscrita), tratando-se de posse/domínio consentido até que a segunda Ré tivesse
meios para construir a sua sede, o que nunca aconteceu;
-
atenta a natureza da posse e as características da mesma o Autor já está constituído
no direito de usucapi-lo;
- as declarações da primeira Ré e demais
outorgantes na escritura de justificação são falsas, já que a segunda Ré nunca
vendeu o imóvel à primeira, nem esta nunca o administrou ou pagou ou exerceu sobre
o mesmo qualquer domínio.
Citadas as Rés,
veio:
-
A Ré M apresentar Contestação-Reconvenção,
terminando por peticionar que se declare a validade e eficácia da escritura
pública, declarando-se que é proprietária e legítima possuidora do imóvel e se
condene a Autora a abster-se de praticar qualquer acto perturbador da sua posse
ou propriedade.
Para o
efeito, a Ré alega que o imóvel veio à sua posse por compra que fez em 1992 ou
1993 à segunda Ré (pela quantia de trezentos mil escudos, que pagou), sendo
que, desde essa altura que o vem possuindo, embora a escritura pública nunca tenha
sido outorgada por comportamento imputável à referida segunda Ré (não se ter
logrado localizar qualquer representante da Ré para a outorga da escritura),
razão pela qual outorgou a escritura de justificação.
Pede a condenação
do Autor como litigante de má fé uma vez que todos estes factos eram do seu conhecimento
(chegou a negociar com a Ré a permuta do imóvel).
-
A Ré C…apresentar Contestação, suscitando a questão
prévia de ter proposto acção de simples apreciação negativa contra a primeira Ré
(que se encontra a correr termos), na qual peticiona seja declarado que a mesma
não é proprietária do imóvel e que se declare a ineficácia da escritura
outorgada pela mesma.
Nesta
Contestação alega nunca ter vendido o imóvel à primeira Ré, sendo verdade o
alegado pelo Município no sentido de decorrerem negociações para que o imóvel
regressasse à propriedade do Autor.
Foi
apresentada Réplica e ainda
um articulado superveniente.
A
acção a que se refere a segunda Ré na Contestação corre termos no Juízo Central
Cível de Lisboa - Processo n.º 6548/19.6T8LSB – encontrando-se suspensa a
aguardar a decisão dos presentes autos.
Admitida
a Reconvenção, realizou-se Audiência
Prévia procedeu-se à elaboração de despacho saneador e fixaram-se o
objecto do litígio e os temas da prova.
Realizada
a Audiência Final foi prolatada
Sentença, na qual se decidiu considerar a acção procedente por provada e a reconvenção
improcedente por não provada e, em consequência:
a)
Declarar que a 1.ª Ré não é proprietária do lote de terreno para construção com
área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de
…, concelho de …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia
de …, com o valor patrimonial de € 6.305.350,00, descrito na Conservatória de Registo
Predial de … sob o número DOIS MIL QUATROCENTOS E OITENTA E TRÊS da freguesia
de …, objecto da escritura pública de justificação lavrada no dia 22.09.2017,
no Cartório Notarial da Dra. R…, que consta a fls. 53 a 55 do Livro de Notas
para Escrituras Diversas nº 193-A do referido Cartório;
b)
Declarar ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação
notarial;
c)
Ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor da 1.ª Ré efectuado com base
na mencionada escritura de justificação, mais concretamente a coberto da AP.
481 de 2017.12.13;
d)
Ordenar o cancelamento de todos os registos efectuados na dependência e sequência
daquele, nomeadamente o registo das penhoras a favor da Fazenda Nacional, registadas
a coberto das AP. 1613 de 2018.05.23 e AP. 121 de 2018.10.18;
e)
Reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre o prédio urbano descrito na alínea
a), composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e
quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de …, concelho de …, e, consequentemente,
condenar as Rés a reconhecer o seu direito;
f)
Absolver o Autor do pedido reconvencional.
A
Ré-Reconvinte recorreu desta decisão
e apresentou as suas Alegações,
onde lavrou as seguintes Conclusões:
1.
O Tribunal a quo, realizou uma errada aplicação do Direito aos factos errou na
decisão sobre a matéria de facto.
2.
A douta sentença recorra é nula porquanto titula a aquisição por usucapião de
um imóvel pela autora, estando a Câmara Municipal desprovida de legitimidade
atenta a falta de autorização da Assembleia Municipal.
3.
A sentença recorrida é nula por insuficiência da matéria de facto dada como
provada porquanto não resulta dos factos provados qualquer um que permita
concluir, como se conclui, pela inversão do título da posse em relação à
autora.
4.
O autor padece de legitimidade substantiva para os termos da presente acção,
com a consequente absolvição do pedido.
5.
Nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 75/2013, de
12 de Setembro, na sua redacção actualmente em vigor, determina-se que compete
à Assembleia Municipal, sob proposta da câmara municipal, “autorizar a câmara
municipal a adquirir, alinear ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000
vezes a RMMG, e fixar as respectivas condições gerais…”.
6.
A Assembleia Municipal de …não autorizou a Câmara Municipal a adquirir o prédio
em discussão nos presentes autos.
7.
A usucapião não é uma aquisição gratuita. A usucapião, sendo uma forma de
aquisição originária, destina-se a prover à ausência do título aquisitivo. A
génese do acto translativo da propriedade pode, pois, ser onerosa (v.g.
contrato de compra e venda) ou gratuita (v.g. partilha por morte). Apenas para
efeitos fiscais, o legislador ficcionou a usucapião como transmissão gratuita
de bens. Coisa diferente é o negócio que está na sua génese e cuja ausência de
título a usucapião visa suprir, que tanto pode ser oneroso como gratuito.
8. Não resultou dos
factos provados que em causa estivesse uma aquisição gratuita.
9.
Conforme decorre da Lei 75/2013, do seu artigo 25º n.º 1 alínea i) bem como das
antecedentes Lei 79/77 (art.º 48º n.º 1 alínea i), do DL 100/84 (art.º 39º n.º
2 alínea i) e Lei 169/99 (art.º 53º n.º 2 alínea i), a necessidade de prévia
autorização da Assembleia Municipal reporta-se a qualquer tipo de aquisição,
seja oneroso ou gratuito e independentemente da forma jurídica que o acto
aquisitivo venha a revestir.
10.
Qualquer aquisição que seja feita pela Câmara Municipal de prédios cujo valor
exceda os montantes que foram sendo fixados pela citada evolução legislativa,
carece de autorização e deliberação da Assembleia Municipal sob pena de
nulidade do acto.
11.
Não pode, pois, a Câmara Municipal, adquirir um prédio, ainda que seja com
recurso à figura da usucapião cujo valor exceda 1000 vezes a RMMG, sem que tal
acto seja deliberado previamente pela Assembleia Municipal.
12.
No âmbito dos autos, decorre, pois, a ilegitimidade (substantiva) para a Câmara
Municipal estar em juízo.
13.
Ora, pressuposto desta relação material que a autora deixa alegada nos
presentes autos, à luz do que vem dito, seria a deliberação da Assembleia
Municipal a autorizar a aquisição do prédio em causa nos presentes autos. Na
ausência desta deliberação, como resulta provado, decorre, pois, que esta
relação material (o negócio ou acto aquisitivo do prédio) é inexistente, do que
deriva a ilegitimidade substantiva do Município de … para a presente demanda.
14.
Um dos pressupostos de facto para o nascimento da relação material tal qual vem
alegada pela autora e que se consubstancia na alegada compra do prédio aqui em
causa, seria a controvertida deliberação da Assembleia Municipal, que não existe!!!
15.
Esta ausência de legitimidade, porque geradora da nulidade do acto, quer à luz
do direito civil quer na óptica do direito administrativo, conduz à necessária
e irremediável absolvição do pedido.
16.
O que se deixou dito, reconduz-se à legitimidade directa ainda que, no caso dos
autos, pudesse estar em causa uma situação de ilegitimidade indirecta, na
vertente da Autorização.
17.
A legitimidade vista neste prisma ganha particular acuidade nos presentes
autos, porquanto, conforme já deixado transcrito supra, nos termos do disposto
no artigo 25.º, n.º1, alínea i) da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, na sua
redacção actualmente em vigor, determina-se que compete à assembleia municipal,
sob proposta da câmara municipal, “autorizar a câmara municipal a adquirir,
alinear ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e fixar
as respectivas condições gerais…”.
18.
Na ausência de autorização, há falta de legitimidade, pelo que o ato envolvido
é nulo, salvo disposição legal que disponha em sentido diverso.
19.
A falta de legitimidade gera, pois, a nulidade do acto com a consequente
ilegitimidade (substantiva) da autora para os termos da presente acção.
20.
Tudo isto analisado à luz do direito civil, sendo que não é diferente a solução
no âmbito administrativo.
21.
Com efeito, nos termos do art. 161º n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo
são nulos os actos estranhos às atribuições do órgão e organismos aí elencados,
onde se inclui, por remissão para o art.º 2º do mesmo diploma, a Câmara
Municipal.
22.
Não se encontram reunidos todos os pressupostos para que ocorra, por banda da
autora, ora recorrida, a aquisição originária do prédio aqui em causa, por via
da usucapião, incluindo a inversão do título da posse.
23.
A inversão do título da posse é um conceito de direito, impondo-se, como tal, o
seu preenchimento com factos alegados e demonstrados.
24.
A autora não alegou factos que permitissem concluir pela inversão do título da
posse, como não resulta dos factos dados como provados na sentença recorrida,
qualquer um que permitisse concluir nesse sentido.
25.
A posse da autora era precária, que era mero detentor do prédio aqui em causa (art.º
1253º al b) e c) do CC.
26.
Para que o poder de facto assim exercido pudesse conduzir à aquisição por
usucapião, era necessário que se verificasse a inversão do título da posse.
27.
A inversão do título de posse (a interversio
possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem,
por uma posse em nome próprio. Não basta que a detenção se prolongue para além
do termo do título que lhe servia de base; necessário se torna que o detentor
expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de
actuar como titular do direito.
28.
Neste conspecto, é tão só alegado pela autora na sua petição inicial (art.º 12º
e 13º) que estavam a ser entabuladas negociações com vista a uma eventual
permuta com a 2ª ré. Nada mais!!!
29.
A inversão do título de posse apenas se pode efectivar se o possuidor em nome
de outrem demonstrar, perante as pessoas que directamente tem interesse no
direito em questão, a sua intenção de passar a possuir investido de uma
qualidade uti dominus, ou seja como
verdadeiro possuidor em nome próprio, vale dizer como proprietário directo e imediato
sobre a coisa possuída.
30.
A inversão do título da posse tem de traduzir-se, para ser eficaz, em circunstâncias
excecionais que permitam considerar que, na situação, a autora teria
ultrapassado a mera detenção do imóvel, que alterou a normal situação de
detenção, decorrente da simples tradição, convertendo-a em verdadeira e própria
posse.
31.
Não resultou alegado nem, naturalmente provado, que tivesse ocorrido por parte
do detentor, autor nos presentes autos, uma oposição contra aquele em cujo nome
alegadamente possuía, aqui 2ª ré.
32.
A usucapião está, todavia, vedada aos detentores ou possuidores precários a não
ser que ocorra a inversão do título da posse (art.º 1290º).
33.
Resulta cristalino da alegação da autora, que a sua alegada posse era precária
e que perduraria apenas até à 2ª ré adquirir os meios necessários à construção
da sua sede, tendo esta, por mera tolerância consentido (sublinhado nosso e
conforme expressamente alega a autora), que o Município mantivesse a alegada
posse do prédio.
34.
Na ocorrência de um contrato promessa de permuta, a posse é precária.
35.
Inexiste, na esfera da autora, o animus possidendi, que se carateriza como a
intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados.
36.
Não tendo o autor alegado e demonstrado a inversão do título da posse, não
podia, assim, o Tribunal a quo decidir nos termos em que decidiu, ocorrendo em
manifesto erro de julgamento.
37.
não resulta da douta sentença recorrida - e bem - que tenha sido dado como
provado que o autor usufruiu do prédio em causa na convicção de possuir coisa
exclusivamente sua. Ou seja, não resulta provado que o autor tenha actuado em
relação ao prédio em causa nos presentes autos, na convicção de ser seu exclusivo
proprietário.
38.
Não resultando como facto provado o animus possidendi, não se pode concluir que
o autor seja possuidor mas mero detentor.
39.
Ainda quanto ao animus, não se vê como estivesse presente no autor, tendo em
conta que, conforme decorre dos documentos juntos com a Contestação sob o
número 2, equacionava adquirir o prédio aqui em questão à recorrente,
oferecendo outros em troca ou quando, conforme decorre do documento 3, pondera
exercer o seu direito legal de preferência na venda a terceiros do mesmo.
40.
O autor, alias, nem tão pouco alega e, claro, demonstra, factos tendentes à
consideração dos demais caracteres da posse (art.º 1258º), ou seja, se a posse
é de boa ou má fé, pacifica ou violenta, pública ou oculta.
41.
Errou, pois, o tribunal a quo na decisão sobre a matéria de facto e, por tudo
quanto se deixou dito e no depoimento da testemunha AF, deverão ser excluídos
dos factos provados os seguintes: 10º, 11º,
12º e 14º.
42.
Ainda que se considerasse demonstrada a inversão do título da posse (que nem
alegada foi), o autor não fez qualquer prova directa, que a posse tenha
perdurado o necessário hiato temporal, tendente à aquisição por usucapião.
43.
Com efeito, neste âmbito, foi apenas ouvida a testemunha AF que, aos costumes,
conforme resulta da acta de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021, disse ser
Director Municipal de Gestão Patrimonial da Câmara Municipal …, ora recorrida,
desde 2011. Questionado sobre esta questão, disse, aliás, que o que relatou é
do seu conhecimento directo apenas desde 2011.
44.
O registo do depoimento da testemunha AF foi gravado através do sistema
integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no
Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 10:10:47 e terminou às 11:27:45
da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.
45.
Tendo a convicção da Meritíssima Juiz a quo, no que aos alegados actos de posse
diz respeito, assentado neste depoimento, existe manifesto erro de julgamento
nomeadamente no que se refere ao prazo prescricional tendente à aquisição por usucapião.
46.
Na verdade, ainda que se fizesse fé no que era conhecimento directo desta
testemunha apenas haviam decorrido 10 anos, posse pois insuficiente para conduzir
à pretendida aquisição pela via originária da usucapião.
47.
Acresce que, conforme já se deixou alegado supra, fundando-se a posse – como
expressamente alegado pelo autor - na inversão do título da posse, o prazo
prescricional apenas tem o seu início, nos termos do art.º 1290º, desde a
inversão do título da posse.
48.
Ora, conforme alega a autor na sua petição inicial, tal inversão, na sua ótica,
ocorreu quando se iniciaram as negociações, com a 2ª ré, com vista à permuta e
consequente reversão do prédio aqui em causa ao domínio do Município.
49.
Do depoimento da testemunha AF, contudo, resulta que as negociações com vista à
permuta do prédio com a 2ª ré, ocorreram em final de 2017 ou princípio de 2018,
do que deriva, assim, posse insuficiente à pretensão do autor em usucapir o
prédio aqui em discussão.
50.
O mesmo se diga em relação aos alegados atos de posse. Com efeito, do que foi
relatado pela testemunha, o único acto que se poderia considerar possessório
foi a colocação, pelo município de uma rede no prédio aqui em causa. Contudo,
tal rede apenas foi colocada em 2018, do que deriva manifesta posse
insuficiente.
51.Deveria
o tribunal a quo ter julgado a acção totalmente improcedente, com a consequente
absolvição do pedido.
52.
Sendo a acção julgada improcedente perde a autora qualquer legitimidade para
discutir o direito de propriedade da autora, ora recorrente, pelo que a
improcedência daquela sempre determina a inutilidade superveniente da lide da
Reconvenção, conforme se requer; tanto não seja, nos termos do n.º 6 do art.º
266º do CPC.
53.
a reconvenção, porque se destina a contrapor o direito de propriedade da
recorrente à autora, encontra-se manifestamente dependente do pedido por esta
formulado. Pelo que, a improcedência da demanda, determina necessariamente, a
inutilidade superveniente da lide da reconvenção.
54.
Ainda que assim não se entenda, sempre a reconvenção deveria ser julgada
totalmente procedente.
55.
Quanto a esta, salvo o devido respeito, errou manifestamente a Meritíssima Juiz
a quo na decisão sobre a matéria de facto.
56.
Com fundamento no depoimento da testemunha RM foi gravado através do sistema
integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no
Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 14:09:29 e terminou às 14:40:35
da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021 e porque resulta do mesmo
a demonstração que, efetivamente, a 1ª ré, aqui recorrente, ajustou verbalmente
com representantes da 2ª ré, a compra do prédio em causa nos presentes autos,
tendo pago o respectivo preço, conclui-se que a Meritíssima Juiz a quo errou na
decisão sobre a matéria de facto, ao dar como Não Provados os factos elencados
sob os números 1, 3, 4, 7, 8 e 9.
57.
Com fundamento depoimento desta testemunha deve ser alterada a decisão sobre a
matéria de facto e dados como PROVADOS os seguintes factos:
58.
O prédio em causa nos presentes autos, adveio à posse da 1ª ré por compra que
fez em 1992 ou 1993, em dia concreto não apurado, à Associação designada por C…,
aqui 2ª ré;
59.
Em 1992 ou 1993, a ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …,
a compra do descrito prédio.
60.
Durante as negociações para a compra do prédio, a 2ª ré encontrou-se com a MV na
pastelaria Garrett, sita no ….
61.
A 2ª ré e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil escudos
para a venda do prédio, que a 2ª ré entregou à MV.
62. Isto na presença
de uma outra senhora e de um amigo da ré de nome RM.
63.
Também é relevante o depoimento desta testemunha, no que se refere à
demonstração dos actos de posse, praticados pela recorrente após o pagamento do
preço.
64.
Com fundamento neste depoimento, mas também do depoimento das testemunhas JL, AP,
PL, JC, TB e nas próprias declarações de parte da 1ª ré, é legítimo concluir
que a Meritíssima Juiz a quo errou ao dar como não provados os factos elencados
sob os números 11, 12, 13, 14, 17, 18,
20, 21 e 22.
65.
Com fundamento nestes depoimentos, impõe-se a alteração da decisão sobre a
matéria de facto, dando-se com o PROVADO o seguinte:
66.
Desde 1992 ou 1993 vem a ré possuindo o descrito prédio, cuidando e vigiando.
67. O que sempre fez
à vista de toda a gente.
68. Sem violência e
oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico.
69. De forma continua
e ininterrupta.
70. Sempre na
convicção de usufruir coisa exclusivamente sua.
71. E que não lesava
o direito de quem quer que fosse.
72. Nesta convicção,
a ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio.
73.
Há cerca de 4 anos foi contactada por um construtor, que havia construído um
prédio em propriedade horizontal junto ao prédio em causa nos presentes autos,
que propôs a sua compra.
74.
No dia do pagamento do preço da compra, as representantes da … disseram à 1ª ré
que a partir daquele momento poderia fazer do terreno o que quisesse.
75.
Desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido prédio, promovendo-o
junto de potenciais compradores sem que tal actividade em vez alguma tivesse
qualquer oposição.
76.
Neste desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis
edificações e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio.
77.
A 1ª ré colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no
mercado imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca
foi impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia
fazer por não ser dona do mesmo, nomeadamente a autora.
78.
Com fundamento, também, nos documentos juntos sob o n.º 2, 3, 6 e 7; deverá ser
dado como PROVADO, o seguinte:
79.
Entre 2017 e 2018, decorrem negociações entre a ré a autora com vista à permuta
do prédio em causa nos presentes autos, consubstanciada na entrega, pela R. à
A. do prédio melhor identificado na petição inicial e recebendo esta em troca
outros prédios no Município de …
80.
Estas negociações estão corporizadas, além do mais, nos e-mails trocados entre
os representantes da ré e a Câmara de ….
81.
Em Agosto de 2017, pretendendo a ré vender o prédio em causa nos presentes
autos, promoveu a notificação da autora para efeitos do exercício do direito
legal de preferência.
82. A autora,
respondeu dizendo que ponderava exercer o direito de preferência.
83.
A ré solicitou a elaboração de parecer técnico sobre a viabilidade urbanística
do prédio de acordo com o PDM.
84.
E solicitou a avalização do prédio, para melhor rentabilização do negócio de
venda
85.
O registo do depoimento da testemunha JL foi gravado através do sistema
integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no
Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 10:26:37 e terminou às 10:41:15
da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.
86.
O registo do depoimento da testemunha AP foi gravado através do sistema
integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no
Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 10:41:17 e terminou às 10:10:45
da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.
87.
Conforme resulta expresso da douta sentença recorrida as testemunhas JC e TB,
foram contactados pela recorrente para, no âmbito das respectivas actividades
profissionais mediar a venda do prédio e elaborar um estudo de rentabilidade do
mesmo.
88.
O registo do depoimento da testemunha JC foi gravado através do sistema
integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no
Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 15:26:37 e terminou às 15:39:15 da
sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.
89.
O registo do depoimento da testemunha TB, foi gravado através do sistema
integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no
Tribunal, H@bilus Media Studio iniciou-se às 15:39:18 e terminou às 15:45:11 da
sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.
90.
Também dos seus depoimentos, conforme decorre do seu resumo exposto na sentença
recorrida, resulta a prática, pela recorrente, de actos de posse sobre o prédio
aqui em causa, mormente, diligências tendentes à sua venda.
91.
Resultando demonstrado o corpus e o animus possidendi sobre o prédio em
discussão nos presentes autos, deveria a reconvenção ser julgada totalmente
procedente.
92.
Com efeito, aplicando o Direito aos factos acima elencados, resulta a
aquisição, por usucapião e por parte da recorrente do prédio em discussão.
93.
A douta sentença recorrida violou o art.º 25º n.º 1 alínea i) da Lei 75/2013 de
12 de Setembro, o art.º 161º n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo; os
artigos 1258º, 1263º, 1264º, 1265º, 1287º e 1290º todos do Código Civil e o
artigo 266º n.º 6 do Código de Processo Civil.
O Autor-Reconvindo veio apresentar Contra-Alegações,
concluindo que:
A.
A Recorrente censura a douta sentença sindicada imputando-lhe erro de julgamento,
por entender que nela foi feita errada aplicação do Direito aos factos e se ter
incorrido em erro na decisão sobre a matéria de facto.
B.
Considera, por outro lado, que tal sentença é nula, quer porque, a seu ver, titula
a aquisição por usucapião, pelo Recorrido, de imóvel sem que o mesmo tenha
legitimidade substantiva para demandar, quer por insuficiência da matéria de
facto dada como provada para se ter concluído pela inversão do título da posse.
C.
Trata-se, contudo, de imputações totalmente improcedentes, que não encontram
qualquer suporte legal ou probatório na prova documental e testemunhal
produzida.
D.
As causas de nulidade da sentença são as que se encontram taxativamente previstas
nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, entre as quais não se
contam nem lhes são reconduzíveis a alegada titulação pela sentença sob recurso
da aquisição por usucapião de imóvel dos autos, nem a dita insuficiência da
matéria de facto dada como provada para se ter concluído pela inversão do
título da posse.
E.
A verificar-se in casu qualquer dessas circunstâncias – o que não se concede -,
elas seriam, quando muito, geradoras de erro de julgamento, e não da nulidade nem
da decisão sobre a matéria de facto, nem da sentença recorrida.
F.
Por outro lado, e no que se refere ao apontado erro de julgamento na aplicação do
Direito, por alegada falta de legitimidade substantiva do Recorrido para a requerer
no processo que lhe seja reconhecida a aquisição do prédio dos autos por
usucapião, importa ter presente que, contrariamente ao propugnado pela Recorrente,
a autorização do órgão deliberativo municipal prevista na alínea i) do n.º 1 do
artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, de 12/09, reporta-se às situações de aquisição,
alienação ou oneração de bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e
não à aquisição originária daqueles.
G.
Donde, a prévia autorização da assembleia municipal apenas é necessária nas situações
de aquisição derivada, alienação ou oneração de imóveis de valor superior a
1000 vezes a RMMG, e não quando está em causa a aquisição originária de imóvel
de valor superior a esse limiar, como no caso em apreço.
H.
Distintamente do que sucede em qualquer das modalidades de aquisição derivada,
a aquisição originária por usucapião constitui um efeito da posse reiterada de
um direito real, nomeadamente do direito de propriedade, e opera a aquisição
originária do direito correspondente à posse exercida.
I.
Conforme indica a epígrafe do artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, nele o legislador
estabelece o conjunto de competências de apreciação e fiscalização atribuídas à
assembleia municipal, relativamente à actividade do órgão executivo municipal -
designadamente no que se refere aos actos que envolvam a afectação de recursos
financeiros, como é o caso da aquisição derivada de imóveis.
J.
Daí a razão pela qual, na alínea i) do n.º 1 do artigo em questão, é fixado um limiar
quantitativo de 1000 RMMG a partir do qual a aquisição, alienação ou oneração
de imóveis deve ser precedida de autorização do órgão deliberativo municipal.
K.
Não tem, portanto, qualquer sustentação jurídica, o entendimento da Recorrente
segundo o qual a necessidade de prévia autorização da Assembleia Municipal
reporta-se a qualquer modalidade de aquisição de imóveis, sendo também
aplicável à aquisição originária por usucapião.
L.
Mas mesmo que assim não fosse, e que, por isso, também a aquisição originária estivesse
sujeita a prévia autorização da Assembleia Municipal, a inexistência dessa
autorização não seria determinante da nulidade da aquisição do imóvel em causa,
por usucapião, como sustentado pela Recorrente.
M.
A ser exigível tal autorização, a sua ausência antes seria geradora da anulabilidade
do acto administrativo determinante dessa aquisição, por incompetência relativa
do órgão municipal que a promoveu, acto esse, no entanto, que, em conformidade
com o disposto nos artigos 163.º e 164.º, n.º 3, do CPA, não só produziria os
seus efeitos até à sua impugnação e eventual anulação, como seria passível de
ratificação pelo órgão municipal competente.
N.
Nenhuma censura pode, pois, merecer a decisão tomada a este respeito pela Mm.ª
Juiz a quo, quando decidiu que, em face do disposto na alínea i) do n.º 1 do
artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, deve entender-se que a aquisição ali prevista se
trata de aquisição onerosa, pois só essa se compreende seja autorizada e escrutinada
pela assembleia municipal.
O.
No que concerne à pretensa insuficiência dos factos alegado pelo Recorrido para
que se concluísse, como acertadamente se concluiu, pela inversão do título da
posse, importa assinalar que foi provado pelo Recorrido que, em 09/06/1961, este
celebrou com a 2.ª Ré e Recorrida … escritura de compra e venda do imóvel em
causa nos autos, na qual ficou expressamente exarado que esse imóvel era
vendido para a construção de edifício para instalação dessa instituição.
P.
A Recorrida …reconheceu nos autos que embora fosse esse o objectivo da compra
do imóvel, ele nunca foi atingido, derivado à incapacidade financeira da mesma
entidade para instalar a sua sede no terreno em causa.
Q.
Razão pela qual, a Recorrida …nunca se comportou como dona do prédio.
R.
Na verdade, o Recorrido nunca deixou de ter o domínio do imóvel e de agir como
se ele nunca houvesse saído da sua titularidade.
S.
Perante a incapacidade financeira da Recorrida para assumir a construção de qualquer
obra no imóvel, foi o Recorrido quem continuou a tratá-lo e a administrá-lo
como se de prédio municipal se tratasse, sendo que, pelo menos a partir da
década de oitenta, passou a assumir-se não só como possuidor mas como
verdadeiro proprietário do mesmo, limpando-o, vedando-o, bem como reagindo
contra acções materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse,
tendo, inclusivamente, passado a incluir o imóvel nos seus planos municipais,
tudo com conhecimento da Recorrida e à vista de todos, sem oposição de quem
quer que fosse.
T.
Tal como consignado na motivação da decisão de facto, a veracidade destes factos
foi, de forma coerente e credível, confirmada pelo depoimento prestado pela
testemunha AF, bem como pela testemunha AG, cujo depoimento, corroborou, de
forma consistente e credível, o testemunho daquele.
U.
Ora, nos termos do disposto no artigo 1287.º do Código Civil, a posse do
direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo
lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a
aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: nisto
consiste o instituto da usucapião.
V.
A aquisição de um direito real de gozo por usucapião exige a ocorrência simultânea
de vários requisitos: posse prescricional, o decurso de certo lapso de tempo e
um acto de vontade de adquirir.
W.
A posse boa para usucapir é aquela que é pacífica, pública e efectiva, dizendo-se
posse pública e pacífica aquela que, a contrario do disposto no artigo 1297.º do
Cód. Civil, não é constituída com violência ou tomada ocultamente.
X.
A posse efectiva é, por seu turno, a que tem correspondência na situação de facto,
enquanto exercício efectivo de poderes de gozo sobre a coisa.
Y.
Para esse efeito, a posse deve manter-se de modo contínuo durante todo o período
de tempo necessário para a usucapião.
Z.
Nos termos do disposto no artigo 1258.º do Cód. Civil, a posse boa para usucapião
tanto pode ser causal como formal, variando o prazo para a sua operatividade
consoante as situações previstas nos artigos 1294.º a 1299.º do mesmo Código.
AA.
No caso em discussão, não obstante o Recorrido nunca tenha deixado de deter a
posse do prédio em causa mesmo depois da sua venda à Recorrida, estamos perante
uma situação em que não há registo do título ou da mera posse, pelo que, nos
termos do disposto no artigo 1296.º do Cód. Civil, a usucapião só poderia
dar-se ao fim de 15 anos, se aquele, enquanto possuidor, estivesse de boa-fé,
ou de 20 anos se estivesse de má-fé.
BB.
Atenta a prova produzida, afigura-se manifesta a posse de boa-fé por parte do Recorrido.
CC.
Assim sendo, nenhuma dúvida poderá subsistir quanto ao facto de que, ao fim de
15 anos com a posse pacífica, pública e efectiva do prédio em causa, o Recorrido
usucapiu o direito de propriedade sobre aquele.
DD.
Mesmo considerando que só a partir dos anos oitenta houve inversão do título da
posse, sempre o prazo de usucapião estaria há muito cumprido, atendendo a que a
posse do imóvel por parte do Recorrido desde essa data e até hoje, que é mantida,
de forma ininterrupta.
EE.
Consequentemente, não pode merecer qualquer censura o julgado nesta matéria
pelo Tribunal a quo, quando concluiu, e bem, “pela aquisição do imóvel pela A.
por usucapião, forma originária de aquisição da propriedade.”
FF.
Considerando, por outro lado, que a Recorrente não fez prova da aquisição do direito
por usucapião, pese embora o ónus de tal prova sobre si recaísse (cfr. n.º 1 do
art.º 343.º do Cód. Civil);
GG.
E que, por assim ser, não logrou provar os elementos essenciais da posse, antes
tendo resultado provado que as declarações produzidas no acto da escritura são
falsas, bem sabendo os outorgantes que estavam a prestar falsas declarações;
HH.
Outra decisão não poderia ter sido proferida pelo Tribunal a quo que não fosse julgar
totalmente procedente a acção, por provada, e improcedente a reconvenção
deduzida pela ora Recorrente, por não provada.
II.
Devem, por conseguinte, manter-se como factos provados os constantes dos n.ºs 10,
11, 12 e 14 da decisão sobre a matéria de facto.
JJ.
A Recorrente sustenta, por outro lado, ter sido feita errada apreciação dos depoimentos
prestados pelas testemunhas AF, RM, JL, AP, JC e TB, no que se refere,
respectivamente,
(a)
à sua valoração para efeitos de prova do hiato temporal necessário à aquisição
pelo Recorrido do imóvel em causa nos autos por usucapião (testemunha AF);
(b)
comprovação da compra do mesmo pela Recorrente (testemunha RM)
(c)
dos actos de posse por si alegadamente praticados sobre o imóvel (testemunhas JL,
AP, JC e TB).
KK.
Com tal fundamento, propugna que, o Tribunal a quo errou ao julgar procedente à
acção, dando como provadas a inversão do título da posse e a aquisição por
usucapião do imóvel dos autos pelo Recorrido, e como não provados os factos
elencados sob os n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22 da
decisão sobre a matéria de facto.
LL.
Também nesta matéria não se verificou, contudo, qualquer erro de julgamento.
MM.
Em primeiro lugar, não corresponde à verdade que a convicção da Mm.ª Juiz a
quo, relativamente à posse pelo Recorrido do imóvel dos autos, haja assentado,
como afirmado pela Recorrente, no depoimento da referida testemunha AF.
NN.
Conforme resulta quer da fundamentação de facto, quer da fundamentação de Direito
da sentença sob recurso, a decisão proferida relativamente ao pedido do Recorrido
de reconhecimento da sua aquisição, por usucapião, do prédio em causa, foi
produto da conjugação da posição expressamente declarada pelas partes nos seus
articulados e de toda a prova documental e testemunhal produzida nos autos, e
não apenas do depoimento da testemunha acima identificada.
OO.
O facto de no seu depoimento o dirigente do Recorrido visado ter esclarecido que
apenas em 2011 teve conhecimento directo da situação do imóvel, e que, por
isso, apenas a partir desse momento lhe era possível afirmar que “pelo menos a
partir de 2011, sempre foi feita a limpeza do terreno pela A., tendo de igual
modo esclarecido que aquele terreno encontrava-se rodeado por terrenos da A.
pelo que a limpeza se fazia “a eito”, não pode ser dissociado do facto de a 2.ª
Ré e também Recorrida …, ter expressamente reconhecido na sua contestação que
(a)
era o Recorrido que tinha, de facto, administrado e cuidado do imóvel, desde a
sua aquisição pela mesma em 1961, atenta a incapacidade dessa entidade para
destinar o imóvel ao propósito para o qual fora adquirido, e que,
(b)
a partir de meados dos anos oitenta, assumira, verdadeiramente, as vestes de
proprietário do imóvel, passando a inclui-lo nos planos municipais.
PP.
Tendo sido reconhecido nos autos pela 2.ª Ré e Recorrida …, que o imóvel em
causa não só nunca fora vendido à Recorrente como nunca, desde a sua compra ao
Recorrido em 1961, deixara de estar sob o domínio e a administração deste,
tendo passado, inclusivamente, a partir de meados dos anos oitenta, a ser
incluído nos planos municipais de gestão territorial, tal facto não podia ser
desconsiderado pela Mm.º Juiz a quo, pelo que, foram correctamente julgados
provados os n.ºs 10, 11, 12, 14 da matéria de facto.
QQ.
Também no que se refere aos factos julgados não provados n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9,
11, 12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22 da matéria de facto, a Recorrente sustenta,
sem razão, que, no que respeita à comprovação da compra do prédio dos autos, o Tribunal
desvalorizou o depoimento da testemunha RM, não tendo, por outro lado, valorado
correctamente os depoimentos das testemunhas JL, AP, JC e TB, no que se refere
aos actos de posse por si alegadamente praticados sobre o imóvel.
RR.
A testemunha RMfoi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o
seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação
informática em uso no Tribunal, com início às 14:09:29 e términus às 14:40:35.
SS.
A testemunha em questão declarou ser arquitecto aposentado e amigo da Recorrente
há mais de 30 anos, mas o seu depoimento não mereceu qualquer credibilidade.
TT.
Conforme assinalado na motivação da decisão de facto, esta testemunha “referiu
ter estado presente no alegado encontro em que se fez o negócio de compra e
venda. Referiu que o encontro deu-se numa pastelaria no …, que estavam
presentes duas senhoras, a 1ª R. e ele próprio. Referiu que sentaram-se os
quatro na mesa da pastelaria, para mais à frente dizer que ficou afastado na mesa
e não ouviu nada. Instado a comparar a mesa em que estava sentado o sr. funcionário
judicial na sala de audiências, com a da pastelaria declarou ser mais pequena
e, tornou-se então óbvio que sendo uma mesa mais pequena, a menos que a 1ª R e
as outras senhoras sussurrassem, a testemunha teria de ouvir a conversa. Afinal
não se lembra de quaisquer pormenores, não viu qualquer entrega de dinheiro e
nem sequer sabe o ano em que tal ocorreu. Para fazer ainda menos sentido o seu
depoimento, acabou por afirmar que em 30 anos encontrou-se com a Ré três ou
quatro vezes”.
UU.
Ou seja, a testemunha cujo depoimento a Recorrente alega ter sido desvalorizado
pelo Tribunal a quo e do qual, a seu ver, resulta “a demonstração que,
efetivamente, a 1ª ré, aqui recorrente, ajustou verbalmente com representantes
da 2ª ré, a compra do prédio em causa nos presentes autos, tendo pago o
respectivo preço”, na verdade, foi a mesma que, de forma contraditória, começou
por dizer em juízo que havia estado presente no encontro, numa pastelaria no
Estoril, em que a Recorrente havia feito o negócio de compra do prédio dos
autos com duas senhoras, tendo ficado sentados, os quatro – a Recorrente, a
testemunhas e as duas senhoras mencionadas -, na mesa da pastelaria, para logo
a seguir declarar que, afinal, ficara afastada da mesa e que nada ouvira do que
fora falado entre a Recorrente e as duas outras senhoras alegadamente
presentes.
VV.
A mesma testemunha, note-se, que, tendo inicialmente declarado ao Tribunal que
“sentei-me e assisti lá a fazer o negócio”, uma vez questionada pela Mm.ª Juiz
a quo sobre se sabia se fora estabelecido um preço para o imóvel, quanto é que
fora e se ouvira alguma coisa a esse respeito, afirmou, categoricamente, “Isso
não, não….soube que ela [Recorrente] me disse depois”.
WW.
Conjugada a falta de credibilidade do depoimento da testemunha em questão com o
facto de a Recorrente não ter apresentado nos autos qualquer documento
autêntico ou particular demonstrativo da compra do imóvel em causa, nem
qualquer recibo ou factura comprovativo do preço alegadamente pago, em
dinheiro, para esse efeito;
XX.
E tendo em consideração que a visada nesse alegado negócio MV, mediante
declaração escrita junta aos autos, sempre afirmou
(a)
serem falsas as declarações da Recorrente vertidas na escritura de
justificação;
(b)
que não a conhece, nem nunca dela ouviu falar; e que
(c) nunca foi por
esta contactada para qualquer assunto, fosse de que natureza fosse;
YY.
Outro juízo daí não se poderá extrair que não seja o feito pela Mm.ª Juiz a quo,
na decisão da matéria de facto, dando como não provados os factos constantes
dos n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9, 11, 12, 13 e 14, da matéria de facto.
ZZ.
Conclusão, aliás, necessariamente extensível à decisão pela qual também se julgaram
não provados os factos constantes dos n.ºs 17, 18, 20, 21 e 22 da matéria de
facto.
AAA.
Pois, contrariamente ao alegado pela Recorrente, não resultou provado quer das
declarações de parte por si prestadas, quer dos depoimentos das testemunhas JL,
AP, JC e TB, que hajam sido por si praticados quaisquer actos de posse sobre o prédio
em causa, mormente, diligências tendentes à sua venda.
BBB.
Conforme resulta das declarações de parte da Recorrente, esta limitou-se a
manter o alegado em sede de contestação, reiterando ter adquirido o imóvel à
pretensa representante da 2.ª Ré MV – a qual, como provado, sempre declarou
nunca ter estado com ela ou sido por ela contactada, fosse por que motivo
fosse.
CCC.
Declarou também a Recorrente ter feito tal negócio verbalmente, e pago a
totalidade do preço fixado de 300.000$00 (trezentos mil escudos) em dinheiro, tendo
ficado a 2.ª Ré de reunir os papéis necessários para marcar a escritura – embora
não tenha ficado com qualquer recibo ou comprovativo desse pagamento.
DDD.
Ora, como bem se refere na fundamentação da decisão, “não resultou convincente
que [a ora Recorrente] esteve vinte anos à procura das pessoas com quem fez o
negócio e que representavam a 2.ª R.. Atente-se por outro lado, a falta de
fundamento na alegação de que a 2.ª R. não correspondia à pessoa colectiva com
quem fez o negócio. De igual modo, a R. sequer sabia ou tinha qualquer registo
pessoal, como seria expectável, do dia em que fez o negócio, não sendo de igual
modo crível que tivesse procedido à entrega de trezentos mil escudos sem exigir
qualquer comprovativo”.
EEE.
A testemunha JLfoi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o
seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação
informática em uso no Tribunal, com início às 10:26:37 e términus às 10:41:15.
FFF.
À semelhança da testemunha RM, JL declarou ser amigo da Recorrente e intervindo
na escritura de justificação por esta promovida.
GGG.
Testemunha essa que, quando questionado se tinha ideia de quando é que a
Recorrente havia comprado o terreno em causa, respondeu que não sabia exactamente,
que não se lembrava, pois “já lá vão mais de trinta anos”.
HHH.
Embora, quando instado a esclarecer, disse que fora a Recorrente que lhe havia
dito que tinha comprado o imóvel, tendo declarado que não assistiu a qualquer
negócio, não conhecendo os alegados vendedores.
III.
Mais esclareceu que quando da celebração da escritura de justificação a Recorrente
lhe pediu que confirmasse o que lhe havia contado, tendo acedido confiando que
o que aquela lhe tinha contado relativamente à alegada compra do imóvel era
verdadeiro.
JJJ.
Referiu, ainda, que a Recorrente era casada com um grande amigo seu e que conhecia
o terreno em causa nos autos porque a sua irmã reside perto do mesmo.
KKK.
Tendo ainda declarado que sempre teve a noção de que o imóvel pertencia àquela,
tendo declarado saber que ela tentara vender o imóvel por várias vezes, tendo
chegado a perguntar ao seu patrão se queria comprá-lo, mas que este dissera não
estar interessado.
LLL.
Quando perguntado sobre se sabia quem limpava e quem vedou o terreno em causa,
declarou desconhecer.
MMM.
Em suma, todo o conhecimento manifestado pela testemunha em questão,
relativamente à alegada compra pela Recorrente do imóvel dos autos deriva,
exclusivamente, daquilo que a mesma lhe transmitiu e pediu para declarar em
sede de escritura de justificação, não tendo tido qualquer participação ou
conhecimento directo dos factos pela mesma alegados com esse fim.
NNN.
O mesmo se verificou com a testemunha AP, também interveniente na escritura de
justificação.
OOO.
AP foi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o seu depoimento
sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação informática em uso
no Tribunal, com início às 10:41:17 e términus às 11:10:45.
PPP.
Conforme resulta do depoimento desta testemunha, a mesma declarou conhecer a
Recorrente, profissionalmente, desde 1980/1985.
QQQ.
No entanto, conforme assinalado pela Mm.ª Juiz a quo, na motivação da decisão
de facto, resultou evidente que “a relação entre ambas excedia a mera relação
profissional, até porque, resultou do seu depoimento que declarou ter intervindo
na escritura porque sempre ouviu falar que o imóvel era da 1ª R..”, ou, nas
palavras da própria testemunha, “pelo menos foi o que me foi transmitido pela
própria”.
RRR.
Ao que acresce o facto de também esta testemunha ter admitido no seu depoimento
que interviera na escritura de justificação e feito declarações cuja veracidade
desconhecia, confiando, apenas, no que a Recorrente lhe dissera.
SSS.
Inquirida sobre se se recordava de ter requerido informação urbanística sobre o
terreno em causa à Câmara Municipal de …, e quem é que lhe pedira para o fazer,
AP referiu que o tinha feito a pedido da Recorrente, “…a M”, com vista a “poder
fazer qualquer coisa ali”.
TTT.
Mais referiu que a Recorrente se dedicava à compra e venda de imóveis, mas que
desconhecia se ela havia feito qualquer diligência com vista à venda do terreno
em causa.
UUU.
Ou seja, também no que se refere a esta testemunha, a sua razão de ciência,
relativamente à compra do imóvel pela Recorrente e aos actos de posse por esta
alegadamente praticados sobre o mesmo, decorre, exclusivamente, daquilo que a
Recorrente lhe transmitiu e pediu para declarar em sede de escritura de
justificação, não tendo qualquer conhecimento sobre esta alguma vez procurou
vender o prédio que lhe disse ser seu.
VVV.
Também no que respeita aos depoimentos das testemunhas PL, JC e TB nada
resultou que permitisse ou permita concluir como provado que a Recorrente haja
efectivamente comprado o prédio dos autos em 1992/1993, à 2.ª Ré e aqui também
Recorrida …, e que desde esse momento que tal prédio vem possuindo de forma
contínua e ininterrupta, à vista de todos.
WWW.
Do depoimento de PL, apenas resultou o esclarecimento de que é empresário
imobiliário e, à semelhança das demais testemunhas arroladas pela Recorrente,
amigo desta, tendo declarado saber que a mesma era proprietária do imóvel em
questão apenas porque lhe fora exibida a escritura de justificação.
XXX.
Quanto à testemunha JC, foi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021,
tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da
aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 15:26:37 e términus às
15:39:15.
YYY.
JC declarou ter sido contactado em 2018, por um parceiro de negócio, para
proceder à compra do prédio em causa, tendo então falado com a Recorrente;
porém, surgiu a informação da existência de um processo a correr na Câmara
Municipal de …, bem como da existência de penhoras sobre o imóvel, pelo que
considerou não valer a pena prosseguir com a tentativa de intermediação do
negócio.
ZZZ.
A testemunha TB foi igualmente ouvida na sessão de julgamento do dia
27/10/2021, tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de
gravação da aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 15:39:18 e
términus às 15:45:11.
AAAA.
Referiu ser arquitecto de profissão, e que conhecia a Recorrente porque fora
sua cliente, a qual lhe encomendara em 2019 um estudo para determinar o potencial
de construção no imóvel dos autos.
BBBB.
Mais declarou ter ido diversas vezes ao local, mas que as potenciais vendas não
se concretizaram devido às penhoras inscritas.
CCCC.
Em suma, nenhum dos depoimentos das testemunhas mencionadas permitia ou permite
concluir como provados os n.ºs 17 a 22 da matéria de facto, tanto mais quando,
como assinalado na fundamentação da decisão de facto, “não foi produzida prova
de quaisquer promoções concretas do imóvel no mercado, não tendo sido
apresentada prova documental a respeito, nem prova testemunhal, designadamente,
um potencial comprador”.
DDDD.
Por conseguinte, nenhum erro pode ser justamente apontado a tal decisão, a qual
deverá manter-se na sua integralidade.
Questões
a Decidir
São
as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4
e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera
de atuação do tribunal ad quem (exercendo
uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES
GERALDES[1]),
sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
(artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo
qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In
casu,
e na decorrência das Conclusões da Recorrente e da forma como se apresentam,
importará:
a)
Verificar da existência de uma arguida
nulidade da Sentença;
b)
Verificar se Tribunal a quo errou no julgamento dos:
-
Factos provados 10º, 11º, 12º e 14º;
-
Factos não provados 1, 3, 4, 7, 8 e 9, 11,
12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22
c)
Verificar se devem ser dados como PROVADOS os seguintes factos:
i.
O prédio em causa nos presentes autos, adveio à posse da 1ª ré por compra que
fez em 1992 ou 1993, em dia concreto não apurado, à Associação designada por …,
aqui 2ª ré;
ii.
Em 1992 ou 1993, a ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …,
a compra do descrito prédio;
iii.
Durante as negociações para a compra do prédio, a 2ª ré encontrou-se com a MV
na pastelaria Garrett, sita no …;
iv.
A 2ª ré e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil escudos
para a venda do prédio, que a 2ª ré entregou à MV;
v.
Isto na presença de uma outra senhora e de um amigo da ré de nome RM;
vi.
Desde 1992 ou 1993 vem a ré possuindo o descrito prédio, cuidando e vigiando;
vii.
O que sempre fez à vista de toda a gente;
viii.
Sem violência e oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico;
ix.
De forma continua e ininterrupta;
x.
Sempre na convicção de usufruir coisa exclusivamente sua;
xi. E que não
lesava o direito de quem quer que fosse;
xii.
Nesta convicção, a ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio;
xiii.
Há cerca de 4 anos foi contactada por um construtor, que havia construído um
prédio em propriedade horizontal junto ao prédio em causa nos presentes autos,
que propôs a sua compra;
xiv.
No dia do pagamento do preço da compra, as representantes da … disseram à 1ª ré
que a partir daquele momento poderia fazer do terreno o que quisesse;
xv.
Desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido prédio, promovendo-o
junto de potenciais compradores sem que tal actividade em vez alguma tivesse
qualquer oposição;
xvi.
Neste desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis
edificações e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio;
xvii.
A 1ª ré colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no
mercado imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca
foi impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia
fazer por não ser dona do mesmo, nomeadamente a autora;
xviii.
Entre 2017 e 2018, decorrem negociações entre a ré a autora com vista à permuta
do prédio em causa nos presentes autos, consubstanciada na entrega, pela R. à
A. do prédio melhor identificado na petição inicial e recebendo esta em troca
outros prédios no Município de …;
xix
- Estas negociações estão corporizadas, além do mais, nos e-mails trocados
entre os representantes da ré e a Câmara de ….
xx
- Em Agosto de 2017, pretendendo a ré vender o prédio em causa nos presentes
autos, promoveu a notificação da autora para efeitos do exercício do direito
legal de preferência;
xxi. A autora, respondeu
dizendo que ponderava exercer o direito de preferência;
xxii.
A ré solicitou a elaboração de parecer técnico sobre a viabilidade urbanística
do prédio de acordo com o PDM;
xxiii.
E solicitou a avalização do prédio, para melhor rentabilização do negócio de
venda.
d)
Verificar se se
mostram reunidos os pressupostos de funcionamento da usucapião a favor do Autor
(nomeadamente se era ou não necessária autorização da Assembleia Municipal e se
a inversão do título da posse estava bem configurada).
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação de Facto
Para
a decisão do recurso releva a seguinte factualidade:
1.
Em 22.09.2017, a 1.ª Ré, como primeira outorgante, e JL, residente na Av.ª..,
em …, AP, residente na Rua…, em …, e CA, residente na Rua…, em …, como segundos
outorgantes, assinaram a escritura pública de justificação lavrada no Cartório
Notarial da Dra. R…, sito na Rua …, pela respectiva Notária, que consta a fls.
53 a 55 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 193-A do referido
Cartório (cfr. doc. n.º 1).
2.
O prédio urbano justificado por via da escritura pública referida no facto 1. é
composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e
quarenta metros quadrados sito em E.., freguesia de…, concelho de … inscrito na
respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia de…, com o valor
patrimonial de 6.305.350€, descrito na Conservatória de Registo Predial de sob
o número DOIS MIL QUATROCENTOS E OITENTA E TRÊS da freguesia de … (aí como prédio
omisso e ainda com natureza de prédio rústico inscrito na respectiva matriz
predial sob parte dos artigos 142 e 147 que deu origem ao actual artigo urbano)
com a aquisição registada a favor da 2.ª Ré … pela inscrição apresentação um de
vinte e sete de Maio de mil novecentos e sessenta e seis (cfr. doc. 2).
3.
Por escritura pública de 9 de Junho de 1961, o Município de …, procedeu à venda
do imóvel à 2.ª R. para “a construção de edifício para instalação dessa
instituição” (cfr. doc. n.º 2).
4.
A escritura pública de justificação outorgada em 22.09.2017 tem o seguinte
teor:
“(…)E
PELA PRIMEIRA OUTORGANTE FOI DITO:
Que,
com exclusão de outrem é dona e legítima possuidora, do seguinte imóvel
actualmente com a seguinte composição:
Prédio
urbano composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e quarenta
metros quadrados sito em E…, freguesia de…, concelho de…, inscrito na
respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia de …, com o valor
patrimonial de 6.305.350€, descrito na Conservatória de Registo Predial de…, sob
o número DOIS MIL QUATROCENTOS E OITENTA E TRÊS da freguesia de --- (aí como
prédio omisso e ainda com natureza de prédio rústico inscrito na respectiva matriz
predial sob parte dos artigos 142 e 147 que deu origem ao atual artigo urbano)
com a aquisição registada a favor da … pela inscrição apresentação um de vinte
e sete de Maio de mil novecentos e sessenta e seis, a que atribui o valor de
seis milhões trezentos e cinco mil trezentos e cinquenta euros.
Que
a justificante comprou verbalmente o referido prédio à …, que também era
conhecida por … com sede na …, n.º 1 C, …, em meados dos anos noventa, garantidamente
antes de mil novecentos e noventa e seis, à data representada por MV, tendo
pago integralmente o preço.
Que
a justificante está na posse e fruição do dito prédio em nome próprio há cerca
de vinte e um anos, posse que sempre exerceu sem interrupção, utilizando-o e
administrando-o, ostensivamente, sem a menor oposição de quem quer que seja,
desde o seu início e com o conhecimento de toda a gente, na convicção de ser a
sua legítima proprietária.
Que
desde então a justificante, vem fruindo do mesmo prédio, sendo por ela
administrado, colocando à venda no mercado imobiliário, mostrando-o aos
clientes, tudo isto ininterruptamente sem violência ou oposição de quem quer
que seja e à vista de toda a gente, sendo assim, uma posse pacífica, contínua,
pública e de boa fé, pelo que adquiriu o dito prédio por usucapião.
Que
tentou por diversas vezes junto da referida MV, presidente da … formalizar a
compra, a qual foi adiando a sua concretização, invocando dificuldades na
angariação da documentação para a outorga da escritura.
Que
a justificante perdeu o contacto com a mesma não sabendo o seu paradeiro nem sequer
a existência da dita Casa, apesar das inúmeras pesquisas que efetuou ao longo
dos anos junto do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, Conservatória do
Registo Comercial e Serviço de Finanças.
Que
dado o modo da sua aquisição, não tem documentos que lhe permitam fazer a prova
do seu direito de propriedade plena sobre o indicado prédio, nem possibilidade
de a obter pelos motivos extrajudiciais normais.
PELOS
SEGUNDOS OUTORGANTES FOI DITO:
Que
confirmam, para todos os efeitos, as declarações prestadas pela primeira
outorgante, por serem inteiramente verdadeiras.
ASSIM
O DISSERAM E OUTORGARAM. (…)” (cfr. doc. n.º 1).
5.
A referida escritura de justificação foi publicada, por meio de extracto do
respectivo conteúdo, na edição do jornal “Diário de Notícias” do dia
23.09.2017.
6.
A 1.ª Ré procedeu ao registo do facto justificado na Conservatória do Registo Predial
de …, através da AP. 481, de 2017.12.13 (cfr. certidão predial permanente,
junta como doc. n.º 6).
7.
Através da AP. 1613 de 2018.05.23, foi também registada uma penhora sobre o
lote de terreno a favor da Fazenda Nacional, no âmbito processo de execução
fiscal n.º 3344201701180355 e apensos, que corre termos no Serviço de Finanças
de Lisboa – 11, em que é executada a 1.ª Ré, para garantia do pagamento da
quantia exequenda de €279.801,87.
8.
Através da AP. 1613 de 2018.05.23, foi registada uma outra penhora sobre o lote
de terreno a favor da Fazenda Nacional, no âmbito processo de execução fiscal
n.º 3344201801176692, que corre termos no Serviço de Finanças de Lisboa – 11,
em que é executada a 1.ª Ré, para garantia do pagamento da quantia exequenda de
€ 630.535,00 e no acrescido de € 4.524,67, nos juros de mora de € 2.349,32 e
custas processuais no valor de €2.175,35;
9.
A 2.ª R., nunca destinou o imóvel ao fim previsto no contrato de compra e venda
por via da incapacidade financeira para aí instalar a sua sede;
10. A partir de data
que não consegue precisar, mas na primeira metade da década de 80, o Autor
passou a assumir-se não apenas como mero possuidor do imóvel, mas como seu verdadeiro
proprietário, limpando, vedando e cuidando do mesmo, bem como reagindo contra acções
materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse;
11. Situação que se
manteve ininterruptamente até aos dias de hoje, de boa-fé, de forma sempre
pública e pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém;
12. Também a partir
de meados dos anos oitenta, o Município passou a incluir o imóvel nos planos
municipais, chegando a ocupá-lo com estaleiros municipais;
13.
O imóvel está integrado num conjunto de prédios titulados pelo Município de …,
a afectar a programas de habitação públicos;
14. Os factos
referidos de 10 a 13 ocorreram com conhecimento de toda a gente e também com o
conhecimento da 2.ª R., sem oposição de quem quer que seja;
15.
Em Agosto de 2017, pretendendo a Ré vender o prédio em causa nos presentes
autos, promoveu a notificação do Autor para efeitos do exercício do direito
legal de preferência;
16.
Em 21/08/2017 o A., respondeu dizendo que ponderava exercer o direito de
preferência;
17.
Na resposta do Autor à comunicação da 1.ª Ré para efeitos de exercício do direito
de preferência, convidou a mesma a esclarecer o facto de ter comunicado a
intenção de vender um prédio – o sito na E…, em causa nos autos – cuja
titularidade se encontrava registada a favor da 2.ª Ré … (Cfr. doc. nº3, junto com
a contestação);
18.
Na sequência dos factos dados como provados em 15 a 17, a 1.ª R. outorga escritura
de justificação em Setembro de 2017;
19.
Em 2017, AP, a pedido da 1.ª R. solicitou ao Autor informações acerca das condições
gerais para a realização de operações urbanísticas no prédio em causa nos
presentes autos;
20.
A este pedido foi atribuído o número de processo 5057/DOC/2017, tendo o Autor respondido
nos termos que resultam do documento que se junta sob o n.º 4 e cujo conteúdo
se dá por reproduzido;
21.
Refere-se que a operação urbanística deverá realizar-se através de uma unidade
de execução e que esta deverá englobar os terrenos municipais contíguos;
22.
Idêntico pedido foi feito por FM, tendo o Autor respondido nos termos que
decorrem do documento que se junta sob n.º 5 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;
23.
A 1.ª R. solicitou a elaboração de parecer técnico sobre a viabilidade urbanística
do prédio de acordo com o PDM, já após a outorga da escritura de justificação;
Cfr. doc. n.º 6);
24.
Solicitou a avalização do prédio, para melhor rentabilização do negócio de
venda (cfr. doc. n.º 7);
25.
Em 2018, houve troca de e-mails versando sobre uma eventual permuta do prédio em
causa nos presentes autos, consubstanciada na entrega, pela R. à A. do prédio
melhor identificado na petição inicial e recebendo esta em troca outros prédios
no Município de …(cfr. documento n.º 2);
26.
No âmbito dos contactos referidos em 25, a 1.ª Ré mostra-se mostra disponível para
proceder a permuta pois, segundo a mesma, tal teria “a vantagem de resolver definitivamente
a questão registral do Lote da E…” (cfr. doc. n.º 2, junto com a contestação).
27.
Os Estatutos da Ré …foram aprovados por Despacho do Secretário de Estado da
Assistência Social de 19/03/1948, publicado no Diário do Governo n.º 147, II
Série de 26/06/1948 (cfr. doc. n.º 1, junto com a Réplica);
28.
Tendo a mesma assumido a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública administrativa
– instituição particular de assistência (cfr. artigos 32.º, 33.º e parte final
do parágrafo 1.º do artigo 35.º Código Civil (“Código de Seabra”); Título VIII
– artigos 416.º e seguintes, 422.º, n.º 1, do Código Administrativo 1940; Lei
n.º 1998, de 15/05/1944 e DL n.º 35108, de 07/11/1945);
29.
A 2.ª R. reconhece o Autor, desde a data da escritura de compra e venda como possuidora
consentida sempre tendo administrado e cuidado do imóvel;
30.
À data em que a 1.ª R. celebrou a escritura, o Autor e a 2.ª R. estavam a
ultimar os preparativos para formalizar o regresso do prédio à titularidade
formal do Município;
31.
No dia 17 de Junho de 2021 foi requerida ao senhor Presidente da Assembleia
Municipal de …, certidão da deliberação da Assembleia Municipal que autoriza a
Câmara Municipal a adquirir por usucapião o prédio sito na E…, descrito na Conservatória
do Registo Predial de …sob o número 2483 e inscrito na matriz predial urbana da
freguesia de sob o artigo 3583 (cfr. doc. n.º 1, 2 e 3).
32.
No dia 24 de Junho de 2021 foi emitida a referida certidão negativa, assinada pelo
presidente da Assembleia Municipal de…, o senhor Dr. J…, não existindo
deliberação da Assembleia Municipal a autorizar a Câmara Municipal a adquirir o
referido prédio por usucapião (cfr. doc. n.º 4).
Por
seu turno, foram considerados Não Provados os seguintes factos:
1. O prédio adveio à
posse da primeira Ré por compra que fez em 1992 ou 1993, em dia concreto que
não consegue precisar, à Associação designada por ……;
2. …que não
a 2.ª Ré, visto que, apesar de ter o mesmo nome, apenas foi constituída em 19
de Outubro de 2018;
3. Em 1992 ou 1993, a
Ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …, a compra do descrito
prédio;
4. Durante as
negociações para a compra do prédio, a ré encontrou-se em diversas ocasiões com
a MV na pastelaria Garrett, sita no …;
5. A MV transmitiu
à Ré, que o prédio tinha sido adquirido à Câmara Municipal de…, aqui autora,
para a construção das instalações destinadas a prosseguir a actividade da obra
a que se dedicava;
6. Porém, uma
vez que naquele momento já não estava nos planos da Associação construir as
ditas instalações, pois que praticamente já não tinham qualquer actividade, era
sua intenção vender o prédio;
7. Na sequência do
que, a Autora e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil
escudos para a venda do prédio;
8. Em novo encontro e
porque tinha interesse em garantir o negócio, a ré entregou à MV a totalidade
do preço acordado, ou seja, os trezentos mil escudos (1500 euros);
9. Isto na presença
de uma outra senhora que se identificou como Dra. MR e de um amigo da ré de
nome RM;
10. Nesse
mesmo dia, as sobreditas MV e MR referiram que marcariam a escritura logo que
estivesse reunida toda a documentação para o efeito;
11. Dizendo, porém,
que sendo a ré a proprietária do terreno a partir daquela data, poderia fazer
dele o que entendesse;
12. Assim, desde 1992
ou 1993 a Ré vem cuidando, vigiando, limpando e capinando esporádica vegetação
que ali nasce;
13. O que sempre fez
à vista de toda a gente, sem violência e oposição de pessoa alguma, antes de
modo pacífico de forma continua e ininterrupta;
14. Sempre na
convicção de usufruir coisa exclusivamente sua e que não lesava o direito de
quem quer que fosse;
15. Uma vez
que era intenção da ré revender o prédio, foi por diversas vezes solicitando à
Maria Joana Bernard a celebração da escritura pública;
16. Dizendo
sempre esta, que estavam a ultimar os pormenores, que a escritura se faria em
breve e que seria outorgada pela agora representante da Associação, a Dra. MR;
17. Nesta convicção,
a Ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio;
18. Em 1996 foi
contactada por um construtor, que havia construído um prédio junto ao prédio em
causa nos presentes autos, que propôs a sua compra, não avançando o negócio uma
vez que a Ré ainda não tinha escriturado o terreno;
19. Entre
1996 e 1997 a Ré foi contactada igualmente por um grupo retalhista, que pretendia
comprar o prédio para ali erigir uma loja, negócio que acabou por se frustrar,
porque a Ré não tinha escriturado o prédio;
20. Na convicção de
se tratar de coisa sua, desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido
prédio, promovendo-o junto de potenciais compradores sem que tal actividade em
vez alguma tivesse qualquer oposição;
21. Neste desígnio,
solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis edificações e para a
assistir na promoção e rentabilidade do prédio;
22. A Ré colocou
publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no mercado
imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca foi impedida
de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia fazer por não
ser dona do mesmo;
23.
Previamente à celebração da escritura, a Ré pesquisou junto do registo nacional
de pessoas colectivas, conservatórias do registo comercial e serviços de
finanças da existência e localização da …, porém, não existia qualquer dado.
Da putativa Nulidade da Sentença
Começa a
Recorrente por invocar uma nulidade da Sentença “porquanto titula a aquisição por usucapião
de um imóvel pela autora, estando a Câmara Municipal desprovida de legitimidade
atenta a falta de autorização da Assembleia Municipal”.
Mais
acrescentando que a “sentença
recorrida é nula por insuficiência da matéria de facto dada como provada
porquanto não resulta dos factos provados qualquer um que permita concluir,
como se conclui, pela inversão do título da posse em relação à autora”.
Trata-se de
um caso ostensivo, daqueles a que o Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes se
refere quando diz que
é “frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a
racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objeto do
recurso que deve ser centrado nos aspetos de ordem substancial. Com não menos
frequência a arguição de nulidades da sentença ou do acórdão da Relação acaba
por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o
inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam
tais nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1”[2].
Ora, este referido
artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, prevê que seja nula a
sentença quando:
“a) Não contenha a
assinatura do juiz;
b) Não especifique os
fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em
oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a
decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de
pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que
não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em
quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
Daqui
decorre com clareza meridiana (tal como já sucedia, à face
do CPC anterior, no artigo 668.º),
que estas nulidades correspondem a deficiências formais da sentença, que não
podem (nem devem) confundir-se com um erro no
julgamento (entendido este como a desconformidade entre a decisão e o direito
substantivo ou adjetivo, aplicável à situação sub judice, ou seja, o sentido em que o Tribunal decidiu foi errado
à luz do Direito).
Ora, a
arguição da Recorrente, no sentido de existir uma nulidade na Sentença, por
esta ter decidido existir uma situação de usucapião a favor do Autor sem
que este tenha seu favor uma autorização da Assembleia Municipal, nada tem que
ver com qualquer das alíneas do artigo 615.º, n.º 1, ou com “qualquer vício
formal do silogismo judiciário relativo à harmonia formal entre premissas e
conclusão”[3], mas apenas
com uma discordância em termos de Direito, quanto à decisão e os seus
pressupostos.
E
o mesmo vale para a pretensa nulidade “por insuficiência da matéria de facto
dada como provada porquanto não resulta dos factos provados qualquer um que
permita concluir, como se conclui, pela inversão do título da posse em relação
à autora”.
A
Recorrente discorda da decisão tomada na Sentença (e isso a seu tempo será
abordado), mas a sua discordância, em face da lei processual vigente, não a
torna nula…
Caso
a Recorrente tenha razão quanto à necessidade de autorização da Assembleia
Municipal, ou caso se verifique alguma insuficiência factual para decidir como
decidiu o Tribunal a quo, terá
existido um erro de julgamento e a decisão será revogada.
Mas
não é disso que se trata quando se invoca a nulidade de uma Sentença.
Improcede,
em conformidade, esta alegação da Recorrente, inexistindo quaisquer nulidades
na Sentença recorrida.
Apreciação da Matéria de Facto
O artigo
607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia
livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção
que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para
a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em
que esta não pode ser dispensada.
Quando uma
parte, em sede de recurso, pretenda impugnar a matéria de facto[4],
nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1)
indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente
julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2)
especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo
ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º
2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos,
propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).
Está aqui em
causa, como sublinha com pertinência Abrantes
Geraldes, o “princípio
da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da
matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente
inconformismo”[5], sempre temperado pela necessária
proporcionalidade e razoabilidade[6],
sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do
objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos
pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios
de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado
pretendido)”[7].
Verificadas
as Alegações e Conclusões da Ré-Recorrente vejamos em que consistem as
divergências desta e se lhe assiste razão.
I –
Quanto à errada apreciação dos Factos Provados 10. (A partir de data
que não consegue precisar, mas na primeira metade da década de 80, o Autor
passou a assumir-se não apenas como mero possuidor do imóvel, mas como seu verdadeiro
proprietário, limpando, vedando e cuidando do mesmo, bem como reagindo contra acções
materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse), 11. (situação que se manteve
ininterruptamente até aos dias de hoje, de boa-fé, de forma sempre pública e
pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém), 12. (Também a partir de meados dos anos
oitenta, o Município passou a incluir o imóvel nos planos municipais, chegando
a ocupá-lo com estaleiros municipais) e
14.
(Os factos referidos de 10 a 13 ocorreram com conhecimento de toda a gente e também
com o conhecimento da 2ª R., sem oposição de quem quer que seja).
Sobre
esta matéria referiu o Tribunal a quo
que “Do
conjunto da prova produzida, dúvidas não restaram que o A. sempre exerceu o seu
domínio sobre o imóvel sem oposição de quem quer que fosse e à vista de todos
tendo ficado provado a factualidade dada como provada de 10 a 14. A tal
actuação não pode ser oposto que os serviços do município informaram a
arquitecta AP, conhecida da 1ª R. e que até veio a intervir na escritura de
justificação, sobre as condicionantes jurídico-urbanísticas a observar para a
realização de operações urbanísticas na área de localização do prédio em causa,
porquanto pela própria foi esclarecido tratar-se de informação que o A. teria
de dar sempre que por alguém lhe fosse solicitada.
Decorre
até dos docs. juntos pela 1.ª Ré sob os Docs. 4 e 5 que tais informações foram
requeridas e prestadas pelos serviços municipais no quadro do direito à
informação.
Já
a prova testemunhal apresentada pela A., resultou totalmente descredibilizada,
com depoimentos confusos, titubeantes e que após insistências de
esclarecimentos resultou em contradições insanáveis. Anote-se que as próprias
testemunhas que outorgaram a escritura concluíram dizendo que apenas sabiam o
que a 1ª R. lhes disse e foi assim que intervieram no acto, atestando algo cujo
conhecimento de facto afinal não tinham”.
Por
seu turno, a Recorrente entende que esses factos devem ser considerados não
provados por, quanto a eles, ter sido “apenas ouvida a testemunha AF que, aos
costumes, conforme resulta da acta de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021,
disse ser Director Municipal de Gestão Patrimonial da Câmara Municipal de …,
ora recorrida, desde 2011” e que o seu conhecimento directo é apenas a
partir daí, sendo tudo o demais provindo de conhecimento indirecto, que, como
tal, não pode ser valorado (“assentando a convicção da Meritíssima Juiz a quo, no que
aos alegados actos de posse diz respeito num manifesto erro de julgamento,
nomeadamente no que se refere ao prazo prescricional tendente à aquisição por usucapião”).
Já
o Autor-Recorrido entende que “Tal como consignado na Motivação da Decisão de Facto, a
veracidade dos factos acima referenciados foi, de forma coerente e credível,
confirmada pelo depoimento prestado pela testemunha AF, bem como pela
testemunha Ana Gamboa, cujo depoimento, corroborou, de forma consistente e
credível, o testemunho daquele”.
O
Tribunal teve o cuidado de ouvir a prova gravada produzida em audiência e
compulsar com a prova documental junta aos autos.
Ora,
quer a testemunha AF, quer a testemunha AG, pelas actividades que desenvolvem
no Município de … e pelo seu directo conhecimento, deram conta de forma clara,
assertiva, coerente de todas as diligências e actuação do Autor relativamente
ao referido prédio[8].
Acresce
que nas questões que lhes foram colocadas, acabaram por deixar toda a actuação
do Município devidamente esclarecida e contextualizada (quer quanto ao
espoletar da situação decorrente do exercício da preferência, quer da
existência das penhoras, quer no que respeita a mails trocados, quer a reuniões
havidas e do porquê das negociações, quer no relacionamento com a primeira Ré,
quer nas acções do Município quanto ao terreno, quer quanto à sua inclusão nos
planos de urbanização do …).
Estes
depoimentos apresentaram uma enorme credibilidade, face à forma objectiva,
serena e conhecedora com que foram prestados, sendo que a sua razão de ciência
é evidente e decorre do seu conhecimento e participação directa quanto a parte
dos factos e do conhecimento do processo dentro dos serviços do Município
quanto aos factos anteriores à sua presença na CM….
Junto
da proprietária do imóvel (a quem o Município o tinha alienado para um
determinado fim por alturas de 1960) o Município sempre se entendeu e, pelo
menos desde a década de 80 do século passado (já duas décadas depois da
alienação ter ocorrido), passou a assumir-se como proprietário do terreno em
causa (passando a fazer limpezas do terreno, integrando-o em planos de
urbanização municipal, fazendo acessos, tudo de forma pública e sem notícia de
oposição por parte de quem quer que seja), uma vez que aquela não iria lá
construir a sua sede (e aceitou essa situação, o que aliás é perfeitamente compreensível
e racional entre entidades de boa fé: o terreno foi cedido para um fim e
qualquer outro teria de ser licenciado pelo Município; a primeira Ré nunca fez
nem faz qualquer tenção desde 1960 de construir a sua sede naquele local;
passou a aceitar que o Município actuasse como se proprietário fosse).
Ou
seja, entre Autor e segunda Ré, a inversão do título de posse estava assente
(vd., desde logo, o artigo 11.º da Contestação desta) e, em termos públicos,
nada existiu em momento algum que contrariasse a situação (o que aliás seria
fácil de comprovar pois o terreno encontra-se no meio de outros terrenos
municipais).
A
justificação notarial é completamente anómala e, sobre ela, a propósito dos
factos que a ela respeitam, adiante se escreverá.
A
conclusão óbvia, assim, é a de que o Tribunal a quo, quanto a estes factos 10., 11., 12. e 14., fundamentou e
decidiu adequadamente, nada havendo a alterar.
I –
Quanto à errada apreciação dos Factos Não Provados 1. (O
prédio adveio à posse da primeira Ré por compra que fez em 1992 ou 1993, em dia
concreto que não consegue precisar, à Associação designada por …), 3. (Em 1992
ou 1993, a Ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …, a
compra do descrito prédio), 4. (Durante as negociações para a compra do prédio, a ré
encontrou-se em diversas ocasiões com a MV na pastelaria Garret, sita no …), 7. (Na
sequência do que, a Autora e a MV, representando a …, acordaram no preço de
trezentos mil escudos para a venda do prédio),
8. (Em novo encontro e porque tinha
interesse em garantir o negócio, a ré entregou à MV a totalidade do preço
acordado, ou seja, os trezentos mil escudos (1500 euros)) e 9. (Isto na
presença de uma outra senhora que se identificou como Dra. MR e de um amigo da
ré de nome RM), 11. (Dizendo, porém, que sendo a ré a proprietária do terreno
a partir daquela data, poderia fazer dele o que entendesse), 12. (Assim,
desde 1992 ou 1993 a Ré vem cuidando, vigiando, limpando e capinando esporádica
vegetação que ali nasce), 13. (O que sempre fez à vista de toda a gente, sem violência e
oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico de forma continua e
ininterrupta), 14. (Sempre na convicção de usufruir coisa exclusivamente sua
e que não lesava o direito de quem quer que fosse), 17. (Nesta
convicção, a Ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio), 18. (Em 1996
foi contactada por um construtor, que havia construído um prédio junto ao
prédio em causa nos presentes autos, que propôs a sua compra, não avançando o
negócio uma vez que a Ré ainda não tinha escriturado o terreno), 20. (Na
convicção de se tratar de coisa sua, desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e
cuidou o referido prédio, promovendo-o junto de potenciais compradores sem que
tal actividade em vez alguma tivesse qualquer oposição), 21. (Neste
desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis edificações
e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio) e 22. (A Ré
colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no mercado
imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca foi
impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia fazer
por não ser dona do mesmo).
Quanto
a esta matéria, o Tribunal a quo
fundamentou a decisão de “não provado” nos seguintes termos:
“Foi
ouvida a. em depoimento de parte que mantendo o alegado em sede de contestação
reiterou ter adquirido o imóvel à representante da 2ª Ré. Declarou ter feito o
negócio verbalmente, ficando a 2ª R. de reunir os papéis para marcar a
escritura, porém, logo no acto afirmou ter pago a totalidade do preço fixado em
300.000$00 (trezentos mil escudos).
Atente-se
que afirmou ter pago em dinheiro e referiu, de modo que não resultou
convincente que esteve vinte anos à procura das pessoas com quem fez o negócio
e que representavam a 2ª R.. Atente-se por outro lado, a falta de fundamento na
alegação de que a 2ª R. não correspondia à pessoa colectiva com quem fez o
negócio. De igual modo, a R. sequer sabia ou tinha qualquer registo pessoal,
como seria expectável, do dia em que fez o negócio, não sendo de igual modo
crível que tivesse procedido à entrega de trezentos mil escudos sem exigir
qualquer comprovativo.
Relativamente
à prova testemunhal, foi ouvida a testemunha JC, amigo da Ré e que interveio na
escritura de justificação. Segundo as suas palavras, na altura –já lá vão mais
de trinta anos– falou-se que a Ré tinha adquirido o terreno. Porém, instado a
esclarecer disse que foi a Ré que lhe disse que tinha comprado o imóvel.
Declarou não ter assistido a qualquer negócio, não conhecendo os alegados
vendedores. Admite que no acto da escritura a Ré lhe pediu que confirmasse o
que lhe havia contado e fê-lo confiando que o que a Ré lhe tinha contado a
respeito era verdadeiro. Referiu que a Ré era casada com um grande amigo seu e
que conhece o terreno porque a sua irmã reside ali perto. A instâncias do
mandatário da Ré, disse que sempre teve a noção de que o imóvel pertencia à Ré
tendo esclarecido saber que ela tentou vender o imóvel por várias vezes, sendo
que chegou a propor o negócio a patrão.
Perguntado
quem limpou e quem vedou o imóvel, declarou desconhecer.
A
outra interveniente na escritura de justificação foi AP, arquitecta.
Referiu
conhecer a R. profissionalmente, conhecendo-a desde 1980/1985, tendo porém, este
tribunal ficado convencido de que a relação entre ambas excedia a mera relação
profissional, até porque, resultou do seu depoimento que declarou ter
intervindo na escritura porque sempre ouviu falar que o imóvel era da 1ª R..
Também esta testemunha admitiu ter intervindo na escritura e feito declarações
das quais desconhece em concreto a veracidade, confiando, afinal, no que a 1ª
R. lhe dizia.
Confirmou
ter requerido informação urbanística sobre o terreno à CM… a pedido da 1ª R.,
que lhe afirmou querer fazer “qualquer coisa ali”. Referiu que a R. M tinha em
seu poder uma brochura com o levantamento do terreno e informação com as áreas.
Esclareceu, ainda, que a 1ª R. se dedicava à compra e venda de imóveis,
desconhecendo que ela tivesse encetado qualquer diligência de venda ali.
Esclareceu que quando apresentou o pedido à CM… o fez apenas como técnica e não
invocando qualquer qualidade de requerer a informação em nome da alegada
proprietária.
Foi
ouvida a testemunha RM, arquitecto aposentado e que apresentou um depoimento
que não mereceu qualquer credibilidade. Com efeito, referiu ter estado presente
no alegado encontro em que se fez o negócio de compra e venda. Referiu que o
encontro deu-se numa pastelaria no …, que estavam presentes duas senhoras, a 1ª
R. e ele próprio. Referiu que sentaram-se os quatro na mesa da pastelaria, para
mais à frente dizer que ficou afastado na mesa e não ouviu nada. Instado a
comparar a mesa em que estava sentado o sr. Funcionário judicial na sala de
audiências, com a da pastelaria declarou ser mais pequena e, tornou-se então
óbvio que sendo uma mesa mais pequena, a menos que a 1ª R e as outras senhoras
sussurrassem, a testemunha teria de ouvir a conversa. Afinal não se lembra de
quaisquer pormenores, não viu qualquer entrega de dinheiro e nem sequer sabe o
ano em que tal ocorreu.
Para
fazer ainda menos sentido o seu depoimento, acabou por afirmar que em 30 anos
encontrou-se com a Ré três ou quatro vezes. O seu depoimento não mereceu a este
tribunal qualquer credibilidade.
Ouvido
PL, empresário imobiliário é amigo da 1ª R. e declarou saber que o imóvel é
dela porque viu a escritura de justificação. Tanto bastou para concluir que o
seu depoimento em nada servia para apuramento do que está em causa nos autos.
JC
foi contactado em 2018, por um parceiro de negócio para proceder à venda do
imóvel. Depois falou com a 1ª R. para proceder à venda do imóvel mas surgiu a
informação do processo a correr na CM…, a informação de penhoras sobre o imóvel,
pelo que considerou não valer a pena prosseguir com a tentativa de venda do
imóvel.
TB,
arquitecto que conhece a 1ª R. porque foi sua cliente, encomendando-lhe em 2019
um estudo de para determinar o potencial de construção do imóvel. Foi diversas
vezes ao local tendo as visitas sido feitas à vista de todos. Não se
concretizaram potenciais vendas, considerando as penhoras inscritas.
Analisados
estes depoimentos o tribunal concluiu dando como não provados os pontos 1 a 16
da matéria de facto. Com efeito a história contada é inverosímil à luz da
experiência comum e do mais médio dos cidadãos. Não é crível que alguém pague
em dinheiro um imóvel, nunca faça a escritura pública, nunca o registe a seu
favor. O conjunto das declarações da Ré resultaram para o tribunal como
inverdades, inverdades estas que afinal, foram corroboradas pelas testemunhas
outorgantes na escritura de justificação que só declararam o que a R. lhes
vinha dizendo. Tais inverdades de igual modo resultaram dos depoimentos das restantes
testemunhas arroladas pela Ré que prestaram depoimentos confusos, titubeantes,
contraditórios.
No
que se refere aos pontos 17 a 22 não foi produzida prova de quaisquer promoções
concretas do imóvel no mercado, não tendo sido apresentada prova documental a
respeito, nem prova testemunhal, designadamente, um potencial comprador”.
O
Tribunal a quo acrescentou ainda na parte final da
fundamentação, que “a
prova testemunhal apresentada pela A., resultou totalmente descredibilizada,
com depoimentos confusos, titubeantes e que após insistências de
esclarecimentos resultou em contradições insanáveis. Anote-se que as próprias
testemunhas que outorgaram a escritura concluíram dizendo que apenas sabiam o
que a 1ª R. lhes disse e foi assim que intervieram no acto, atestando algo cujo
conhecimento de facto afinal não tinham”.
A
Recorrente pretende que se dê relevância ao depoimento da testemunha RM,
“desculpando” as suas imprecisões com a sua idade e o tempo decorrido, isto de
forma a que se considerasse provado que a primeira Ré ajustou verbalmente com
representantes da segunda Ré, a compra do prédio em causa nos presentes autos,
tendo pago o respectivo preço.
Depois
de ouvido o depoimento em causa, chega a ser constrangedora a sua pobreza
probatória.
Pela
inconsistência. Pela falta de rigor espacial e temporal. Pelas contradições.
Pelo que diz e a seguir desdiz. Pelo que diz que assistiu e a seguir já diz que
foi o que a primeira Ré lhe contou (a testemunha não sabe o que sabia, nem o
que disse, nem se comprometeu com o que quer que seja)
De
aproveitável, eventualmente, apenas que esteve presente - há uns anos - numa
pastelaria no Estoril, com a primeira Ré, num encontro não sabe com quem,
assistindo não sabe a quê, mas que esta última lhe disse que era um negócio,
mas só diz qual pelo que ela lhe transmitiu e não por ter a ele assistido
(nomeadamente à pretensa entrega do dinheiro…).
Dir-se-á
apenas, numa perspectiva benévola, que a idade da testemunha e o tempo
decorrido justificarão a inaproveitablidade probatória do depoimento.
A
apreciação do Tribunal a quo sobre
este depoimento é clara e objectiva, sendo que, a pecar, peca por não ter sido
ainda mais descredibilizadora da sua valia probatória.
Por
outro lado, a própria história em si é inverosímil, desrazoável e sem sentido
para qualquer cidadão médio: ninguém faz um contrato daqueles, daquela forma,
com pessoas que mal conhece e está vinte anos à espera que se faça uma
escritura, sem um recibo, uma mínima formalização, uma tentativa de contacto
com a entidade que a pretensa representante representava. Nada é consistente,
nada é lógico, nada se provou.
A
realidade nem sempre é lógica ou racional, é certo, mas quando assim é, o
essencial é que a prova seja minimamente consistente e segura, com depoimentos
imparciais e sabedores. Tudo o que não apresentou a primeira Ré.
Nada
a apontar, portanto, quanto ao acerto da colocação como não provados dos
referidos factos 1., 3., 4, 7., 8. e 9.
**
Do
mesmo modo, no que concerne “à demonstração dos actos de posse”, a prova
produzida pela primeira Ré foi totalmente inconsistente.
Quer
por banda da testemunha RM (que, para este efeito, nenhum conhecimento directo
sequer tinha), quer pela das testemunhas JL, AP, PL, JC, TB(sendo certo que, só
quanto às duas primeiras, a Recorrente se deu ao trabalho de indicar os
concretos pontos dos seus testemunhos em audiência que poderiam infirmar a
apreciação do Tribunal, o que desde logo a faz incumprir o preceituado pelo
artigo 640.º, n.º 2, alínea a),
tornando a inaproveitável o que a elas respeita).
Ouvidos
os depoimentos em causa (incluindo os das testemunhas PL, JC e TB), só podemos
concluir que a apreciação feita pelo Tribunal a quo e espelhada na fundamentação apresentada é certeira.
Os
extractos dos depoimentos que a Recorrente transcreve são insuficientes para a
conclusão que pretende, sendo certo que, efectivamente, apenas a própria
primeira Ré no seu depoimento de parte faz afirmações conclusivas (ainda que
sem qualquer credibilidade ou verosimilhança), sendo as “suas” testemunhas como
que o eco do que ela lhes teria dito.
Nenhuma
das testemunhas indicadas pela primeira Ré apresentou um grau de imparcialidade
e distanciamento (nomeadamente em termos de conhecimento sobre o que depunham),
que permitisse dar-lhes a credibilidade necessária para sustentar a versão
apresentada e que o Tribunal a quo
considerou não provada (há como que um circuito fechado entre elas: as
testemunhas sabem e actuam em função do que a Ré lhes disse).
Diga-se
e sublinhe-se – neste ponto – que a forma como foi celebrada a justificação
notarial suscita as maiores dúvidas quer em termos criminais, quer em termos
disciplinares, face ao tipo de prova que aí foi produzida, nomeadamente depois
de ouvidas em audiência as testemunhas que a fundamentaram.
Não
há, assim, nada a alterar quanto aos Factos Não Provados 11., 12., 13., 14., 17.,
18., 20., 21. e 22., que o Tribunal apreciou bem e melhor fundamentou.
*
Do
mesmo modo, quanto aos Factos que a Ré-Recorrente pretende ver acrescentados
(i. a xxiii.) dir-se-á que quanto aos i. a xvii. correspondem ao reverso dos
Factos Não Provados 11., 12., 13., 14., 17., 18., 20., 21., 22. (alguns,
decompostos), sendo que, quanto aos xviii. a xxiii, em face dos depoimentos já
acima contextualizados e valorados das testemunhas AF e AG, nunca poderiam ser
dados como provados: as conversas havidas decorreram no âmbito da tentativa de
resolver o imbróglio jurídico criado com a actuação da primeira Ré, com a
existência de penhoras sobre o terreno e com a posição sempre assumida de
proprietário efectivo deste por parte do Município (xviii. e xix.), sendo que,
quanto aos restantes, apenas o xx. seria susceptível de poder passar a constar
da factualidade apurada (uma vez que foi esse facto que determinou a reacção do
Autor perante a actuação que agora se constata ilegítima da primeira Ré). Mas,
em face de toda a restante matéria já apurada e não apurada qualquer destes
factos é absolutamente irrelevante para a decisão da causa, pelo que nada se
determina em conformidade.
**
Tudo
ponderado o que dos autos ressalta é que a primeira Ré construiu uma situação
jurídica com base em factos falsos e tentou dela fazer-se valer.
Haverá
mesmo aqui, eventualmente a prática de uma tentativa de burla, relativamente à
qual caberá ao Município apresentar a respectiva queixa no Ministério Público,
se assim o entender.
**
FUNDAMENTAÇÃO
DE DIREITO
O
Tribunal a quo seguiu o seguinte
processo de raciocínio na Sentença sob recurso:
I
- na presente acção coincidem uma acção de simples apreciação (a impugnação da
escritura de justificação corresponde a uma típica acção de simples apreciação
negativa) e acção de apreciação positiva (declaração de propriedade) e, ainda,
acção de condenação (reconhecimento da propriedade);
II
- no que diz respeito ao pedido de apreciação positiva o ónus da prova dos
factos constitutivos do direito recai sobre quem do mesmo se pretende fazer
valer (artigo 342.º do CC)
III
- quanto ao pedido de apreciação negativa rege o disposto no artigo 343.º, n.º 1,
recaindo o ónus da parte da Ré e reconvindo;
IV - a escritura de justificação
notarial é utilizada quando o titular de um imóvel, ou de um bem móvel sujeito
a registo, não dispõe de um título formal bastante que lhe permita registar a
aquisição a seu favor, sendo pela via da outorga de escritura de justificação
notarial que se vai suprir a falta daquele título;
V
- trata-se de mecanismo utilizado por quem detém a posse, em nome próprio de um
imóvel para legitimar o seu direito de propriedade, sempre que não tenha
documentos que o provem;
VI
- o que está na origem da ausência de documento é o facto de no passado, terem
sido efectuados negócios meramente verbais, sendo que, não estando o bem
registado em nome do proprietário não pode ser vendido, hipotecado ou mesmo
arrendado e acrescendo que a inscrição do bem nas Finanças e o pagamento dos
impostos devidos, não prova a aquisição do direito de propriedade;
VII
- Para este efeito relevam o artigo 116.º do Código do Registo Predial e o artigo
89.º, 96.º e 101.º do Código do Notariado;
VIII
- no caso, a primeira Ré, invocando uma aquisição por compra e venda há pelo
menos vinte anos, sem ter feito escritura pública por razões imputáveis à
vendedora (segunda Ré), outorgou escritura de justificação notarial que lhe
permitiu proceder ao registo no seu nome, na Conservatória do Registo Predial,
estando registada como forma de aquisição, a usucapião;
IX
- nos termos do artigo 1316.º do Código Civil, a usucapião é uma das formas de
aquisição do direito de propriedade, sendo considerada pela doutrina como forma
de aquisição originária;
X
- a usucapião faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo
correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do
proprietário;
XI
- a posse compreende dois elementos essenciais, quais sejam a actuação de facto
sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a
vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” -
como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa
posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal);
XII
- para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. artigos
1258.º, 1297.º e 1293.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil), já que a posse
violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência
ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da
inércia do instituto);
XIII
- a posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física
ou moral (artigo 1261.º) ao invés a posse pública é definida pela lei como
aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos
quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache
registada (artigo 1262.º);
XIV
- o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é
definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem
objecto da posse e a existência de título para a posse;
XV
- a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava
direito alheio ao adquiri-la, presumindo-se de má fé quando não seja titulada (artigo
1260.º);
XVI
– Em face da prova produzida, a primeira Ré não fez a prova da aquisição do
direito por usucapião, não sofrendo dúvidas que o ónus de tal prova sobre si
recaía (cabia-lhe a prova dos factos em que baseou a invocação do direito real
objecto da escritura de justificação (n.º 1 do artigo 343.º) e, a este
respeito, nenhuma prova logrou fazer (nem a actuação de facto sobre a coisa
possuída -corpus- nem a vontade de a possuir -animus- comportando-se como se fosse titular do direito real de
gozo a cujo exercício corresponde essa posse - posse formal);
XVII
– a primeira Ré não provou o uso de imóvel como se fosse seu, à vista de toda a
gente e sem oposição de ninguém, nos termos do n.º 2 do artigo 1252.º, ficando
sim provado à evidência que as declarações produzidas no acto da escritura eram
falsas, bem sabendo os outorgantes que estavam a prestar falsas declarações,
pelo que, ao contrário do declarado na escritura, não adquiriu o prédio objecto
da mesma, por usucapião.
XVIII
- acresce que a Ré não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base
na escritura de justificação, como decorre do Acórdão de Uniformização de
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008[9];
XIX
- a primeira Ré não logrou provar os factos tendentes à prova da aquisição por
usucapião, pelo que a pretensão do Autor em ver impugnada a escritura de
justificação e declarada a sua ineficácia, resulta, desde logo, da falta de
cumprimento do ónus probatório por parte daquela, sendo certo que este, sem
margem para dúvidas, provou a falsidade das declarações constantes na escritura;
XX
– no que respeita ao pedido do Autor quanto à sua propriedade sobre o terreno
ficou provado que em 9 de Junho de 1961, celebrou com a segunda Ré escritura de
compra e venda do imóvel em causa nos autos ficando expressamente nela exarado
“vende à …, para a construção de edifício para instalação dessa instituição…”;
XXI
- era esse o objectivo da compra do imóvel, o qual nunca foi alcançado, pelo
que a segunda Ré nunca se comportou como dona do terreno: o Município nunca
deixou de ter o domínio do imóvel continuou a tratar e a administrá-lo como se fosse
seu, sendo que, pelo menos a partir da década de oitenta passou a assumir-se
não apenas como possuidor mas como verdadeiro proprietário, passando a incluí-lo
nos seus planos municipais, tudo com conhecimento da proprietária inscrita no
Registo Predial e à vista de todos, sem oposição de quem quer que fosse;
XXII
- nos termos do disposto no artigo 1287.º a posse do direito de propriedade ou
de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao
possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo
exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião;
XXIII
- In casu, estamos perante um caso
sem registo do título ou da mera posse, pelo que, e nos termos do disposto no
artigo 1296.º, a usucapião só pode dar-se ao fim de 15 anos se o possuidor
estiver de boa fé e de 20 anos se estiver de má fé;
XXIV
- sendo manifesta a boa fé do Autor, dir-se-á que ao fim de 15 anos se deu a
aquisição do direito de propriedade por usucapião (mesmo considerando que só a
partir dos anos oitenta, houve inversão do título da posse, sempre o prazo de
usucapião estaria há muito cumprido, sendo certo que a posse foi mantida
ininterruptamente até aos dias de hoje e sempre de forma pacífica);
XXV
- a escritura de justificação realizada pela primeira Ré foi lavrada com base
em falsas declarações sendo ineficaz e o registo da aquisição a seu favor,
tendo sido lavrado com base em escritura de justificação falsa e ineficaz,
haverá de ser cancelado nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Código
de Registo Predial (e, como tal, cancelados todos os registos deste dependentes);
XXVI
– quanto à pretenda ilegitimidade (substancial) para o Município de …propor a
presente acção a fim de fazer valer a aquisição do direito de propriedade, por
falta de autorização para o efeito da Assembleia Municipal, a Lei n.º 75/2013,
de 12 de Setembro - no artigo 25.º, n.º 1, alínea i) - apenas estabelece que é da competência desta, em matéria de
competências de apreciação e fiscalização “Autorizar a câmara municipal a
adquirir, alienar ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG,
e fixar as respectivas condições gerais(…)”, abrangendo, portanto, apenas as
aquisições onerosas (só essas fazendo sentido sejam autorizadas e escrutinadas
pela Assembleia Municipal).
O
raciocínio é claro, estruturado, fundamentado na lei e na prova produzida.
A
primeira Ré, todavia, e em termos de Direito (no mais já se decidiu quanto às
suas discordâncias relativas à matéria factual apurada), vem - nas suas
Alegações - insistir em dois pontos que importa abordar, verificando a bondade
dos seus argumentos.
Em
causa:
-
por um lado a necessidade de autorização da Assembleia Municipal para que um
Município adquira um prédio por usucapião, o que retiraria legitimidade substantiva
ao Autor para intentar a presente acção;
-
por outro, a ausência de factos alegados e provados quanto à inversão do título
da posse por parte do Autor, para permitir o início do prazo para usucapir.
**
Como
pano de fundo temos os institutos da Posse e da Usucapião[10].
“A
posse do direito de propriedade, ou de outros direitos reais de gozo, mantida
por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário,
a aquisição do direito a cujo exercício corresponde à sua actuação : é o que se
chama usucapião”[11]:
eis o artigo 1287.º do Código Civil, que define o que é a usucapião, a figura jurídica que está em causa no presente
litígio e que impõe uma apreciação que a enquadre, para permitir conclusões
sólidas.
Menezes
Cordeiro,
aponta - com pertinência – que a definição deveria ser corrigida, porque “não se possuem
direitos, mas sim coisas”, definindo este instituto, como “a constituição,
facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que
esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo
determinado na lei”[12].
Puig Brutau define-o
como “a
aquisição do domínio ou de outro direito real susceptível de posse, mediante o
uso da coisa como se fosse própria durante o tempo fixado pela Lei”[13],
sublinhando Luís Carvalho Fernandes[14] que a “aquisição por
usucapião é (…) um efeito da posse reiterada de um direito real”[15].
Acresce
aqui dizer – e este é um factor decisivo – que a “usucapião determina a aquisição originária do direito
correspondente à posse exercida”[16], uma vez
que “’o
direito’ que se adquire é originário, ‘novo’ neste sentido. Pois a sua causa é
a posse”[17] [18]: ou seja, “o direito usucapido
surge ex novo na esfera jurídica do
possuidor, independentemente e apesar do titular anterior, que se extingue por
incompatibilidade, uma vez corrido o prazo legalmente exigido”[19] e, por isso
- como assertivamente concluía Oliveira
Ascensão, o “novo titular recebe o seu direito
independentemente do direito do titular antigo”[20].
E
esta aquisição é originária
porque decorre do uso do bem (e da falta dele…): a propriedade só é protegida
se é exercida e, no caso da usucapião, só o é por quem dela beneficia (“A aquisição
originária de um direito real reclama publicidade, de forma a proteger o
interesse do verdadeiro titular. Nas palavras da lei (cfr. art. 1262.º), a
posse é pública quando puder ser conhecida pelos interessados; a posse
adquire-se pela prática reiterada, com publicidade (cfr. art. 1263.º, al.a)),
isto é, à vista de toda a gente. Em ambos os casos, embora não apenas nestes, a
publicidade é feita através da posse”[21]).
Jose Antonio
Alvarez-Caperochipi assinala que a “usucapião é um meio
de identificação (…) da propriedade e dos direitos reais pela concatenação de
dois elementos”[22]: “a posse a título de
proprietário e o tempo”[23], podendo
definir-se como “uma investidura
formal mediante a qual uma posse se transforma em propriedade. É, pois, algo
mais que um mero meio de prova da propriedade ou um mero instrumento ao serviço
da segurança do tráfego jurídico, é a identidade mesma da propriedade como
investidura formal ligada à posse”[24], assumindo
assim duas funções particularmente relevantes, assim descritas por José Alberto C. Vieira:
-
uma “função consolidativa da situação
fáctica em que as coisas se encontram, sempre que o possuidor usucapiente não é
o titular do direito a que a posse se reporta”, que se traduz num “papel regularizador na ordem jurídica, dando azo a que a
exteriorização de um direito através da posse possa vir a consolidar-se com a
aquisição do direito exteriorizado e evitando a multiplicação de actos de
disposição feridos de ilegitimidade, cuja nulidade poderia ser arguida a todo o
tempo (art. 286º), com a forte insegurança jurídica daí decorrente”;
-
e uma função probatória “permitindo ao
possuidor titular do direito real de gozo provar este por um facto jurídico
diverso daquele através do qual o adquiriu”[25] (carregados
nossos).
Na
síntese de Fernando Pereira Rodrigues,
a usucapião é, pois, “a
constituição facultativa do direito de propriedade, ou de outro direito real de
gozo, a favor de quem detenha a correspondente posse, durante certo lapso de
tempo, em determinadas condições, dentro dos limites previstos na lei e por via
de triunfante invocação.
A
usucapião pressupõe a verificação, em termos gerais, dos seguintes requisitos:
-
Uma posse – com “corpus” e com “animus possidendi”;
-
Uma posse à semelhança do direito de propriedade ou de outro direito real de
gozo;
-
Uma posse prolongada – durante relevante espaço de tempo, maior ou menor,
consoante o bem possuído seja imóvel ou móvel, e atentas as características que
aquela revista;
-
Uma posse vencedora – que aniquile ou restrinja o eventual direito de outro
titular do bem”[26].
Há
ainda acrescentar um outro pressuposto, lembrado por Durval Ferreira, “resultante do seu conteúdo normativo e da sua razão de
ser. Qual seja o de que “ao titular do direito que vai ser aniquilado (ou
restringido parcialmente) pelo direito originado por usucapião lhe possa ser
imputável a inércia de não ter reivindicado a restituição da coisa ao
possuidor” (dormientibus non sucurrit jus)”[27]: é por isso
que, por exemplo, Santos Justo,
afirma que “o
usucapiente adquire o seu direito não por causa do direito do proprietário
anterior, mas apesar dele”[28].
É,
pois, neste enquadramento, que se pode perguntar se há algum obstáculo a que o
Estado possa ser sujeito activo da usucapião, ou seja, se pode usucapir bens de
privados.
O
Código Civil de Seabra, tinha um artigo - o 516.º - que, expressamente, dizia
que o “estado,
as camaras municipaes e quaesquer estabelecimentos publicos ou pessoas moraes,
são considerados como particulares, relativamente à prescripção dos bens e
direitos susceptíveis de domínio privado”, sendo que essa norma não passou qua tale para o Código Civil vigente.
Mas
apenas por desnecessidade e redundância, porque
nenhuma especificidade têm estas entidades que as coloque de fora da
possibilidade de usucapir, motivo pelo qual o artigo 1289.º, n.º 1, dispõe
que a “usucapião aproveita a todos os que podem adquirir”.
A
questão coloca-se, portanto, a montante: se têm possibilidade de ter posse, têm
possibilidade de usucapir.
E,
como se tem por evidente, o Estado pode possuir[29].
*
Ultrapassada
esta questão de saber se o Município (enquanto Estado em sentido amplo) pode
usucapir, é também o momento de verificar se, para o fazer, necessita de
autorização da Assembleia Municipal.
A
Recorrente interpreta o artigo 25.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 75/2013, de
12 de Setembro (acima transcrito), no sentido de que compete à Assembleia
Municipal, sob proposta da câmara municipal, “autorizar a câmara municipal a
adquirir, alinear ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG,
e fixar as respectivas condições gerais(…)”, aqui incluindo a aquisição por via
da usucapião.
Sobre
esta questão, o Tribunal a quo
expressamente referiu entender “que a aquisição aqui prevista se trata de aquisição
onerosa, só essa fazendo sentido seja autorizada e escrutinada pela assembleia
municipal. Nenhum sentido faria querer conter aí a aquisição originária, que
nenhum encargo traz para a autarquia, pelo que a argumentação da 1ª Ré não pode
proceder”.
A
Recorrente discorda e reforça, em sede de alegações, a ideia de que “em rigor, a
usucapião não é uma aquisição gratuita. A usucapião, sendo uma forma de aquisição
originária, destina-se a prover à ausência do título aquisitivo. A génese do
acto translativo da propriedade pode, pois, ser onerosa (v.g. contrato de
compre a venda) ou gratuita ( v.g. partilha por morte).
Apenas
para efeitos fiscais, o legislador ficcionou a usucapião como transmissão
gratuita de bens. Coisa diferente é, como se disse, o negócio que está na sua
génese e cuja ausência de título a usucapião visa suprir, que tanto pode ser
oneroso como gratuito”.
E
prossegue, acrescentando que “não resultou dos factos provados que em causa estivesse
uma aquisição gratuita” e que “o que vem alegado pela autora até se infere” que “na base da usucapião
estaria (…) uma permuta que não veio a ser formalizada. Era, pois, uma
transmissão onerosa”.
Daqui
retira a Recorrente, que existe uma ilegitimidade substantiva do Município,
gerando a nulidade do seu acto e implicando a absolvição do pedido.
Quanto
a este ponto, o Autor-Recorrido concordando com o decidido, sublinha que o
normativo citado se reporta “às situações de aquisição, alienação ou oneração de bens
imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG (Remuneração Mínima Mensal
Garantida), e não à aquisição originária daqueles”, assinalando
que “Diversamente
do que acontece em qualquer das modalidades de aquisição derivada, que não são
constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas do mesmo, a
aquisição originária por usucapião constitui um efeito da posse reiterada de um
direito real, nomeadamente do direito de propriedade, e opera a aquisição
originária do direito correspondente à posse exercida”.
Não
assiste razão à Recorrente, nem o seu entendimento faz qualquer sentido.
O
aludido artigo 25.º, n.º 1, alínea i), visa controlar e fiscalizar o assumir de
encargos financeiros ou a afectação de recursos financeiros, por parte do
Município (e, daí, o “adquirir,
alinear ou onerar bens”) e, portanto, apenas aquisições derivadas, onerosas.
Ora,
a usucapião é - como vimos - uma aquisição originária de património em que
essas exigências se não fazem sentir
Repare-se,
por outro lado e só para referir dois exemplos, que em situações relativamente
semelhantes como as que foram julgadas nos processos que deram origem aos
Acórdãos STJ 07/06/2018 (Processo n.º 2592/16.3T8SNT.L1.S1-Maria da Graça Trigo), 05/05/2020 (Processo n.º
12708/17.7T8PRT.P1.S1-Fernando Jorge Dias,
disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/09/2020_ecli_1270817.7_t8prt.p1.s1.pdf)
a questão nem sequer foi colocada em nenhuma das instâncias.
Aliás,
a Recorrente, pretendendo fugir a esta conclusão óbvia, chega a fazer
afirmações carecidas de sentido, como de que na usucapião a “génese do acto
translativo da propriedade pode, pois, ser onerosa (v.g. contrato de compre a
venda) ou gratuita (v.g. partilha por morte)”.
Não!
Na usucapião não há acto translactivo, seja ele contratual ou sucessório, não
tem negócio na génese: há uma aquisição originária e gratuita, que deriva da
posse. Apenas[30].
Como
refere o Juiz Conselheiro Silva Gonçalves
no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2017 (Processo n.º
460/11.4TVLSB.L1.S2), a “usucapião
constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição
de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, a propriedade
conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro
circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo
aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de
consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso
do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as
incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido”.
Assim
sendo, assenta-se em que o Autor não tinha que pedir qualquer autorização
prévia à Assembleia Municipal, nada obstando, por esta via, à invocação da
usucapião por si feita.
**
Resta saber se a
invocação foi feita com sucesso.
Já sabemos que a
usucapião faz com que alguém adquira um bem sobre o qual exerce posse
publicamente, como se proprietário fosse (quando se reporta ao direito de
propriedade, claro), durante um largo período de tempo e perante uma total
inacção/desinteresse/apagamento do proprietário.
Como diz
lapidarmente Fernando
Pereira Rodrigues,
a “usucapião não pode ser vista como um
ataque ao direito de propriedade, mas antes como um tributo à posse, tanto
assim que apenas opera na condução de se verificar uma posse de longa duração,
exercida contra quem, embora titular do direito de propriedade, se colocou em
relação a ela numa posição de inércia, deixando que outrem lhe desse uso,
conferindo-lhe função social e económica mais relevante”[31].
Tudo
começa, assim, pela exteriorização dada pela posse: a “usucapião
baseia-se numa situação de posse”[32], pelo que
se começa por exigir a posse
da coisa[33] nos termos de um direito
real de gozo (artigo 1287.º do Código Civil e os artigos 1316º - respeitante à
propriedade; 1417.º, n.º 1 – respeitante à propriedade horizontal; 1440.º -
respeitante ao usufruto; 1528.º - respeitante à superfície; e 1547.º, n.º 1 –
respeitantes às servidões prediais) - a chamada “posse boa para a usucapião”[34] - sendo
que, para “poder conduzir à usucapião exige-se uma
posse pública e pacífica, sendo por isso a posse oculta ou violenta inidónea
para a usucapião”[35], como
resulta dos artigos 1297.º (quanto a imóveis) e 1300.º, n.º 1, do Código Civil
(quanto a móveis).
E isto vale para
particulares, para pessoas colectivas e para o Estado.
Ou seja, se o
Estado (incluindo uma autarquia local) tem a posse de um terreno e sobre ele
actua publicamente como se proprietário fosse, durante largo período de tempo,
sem qualquer reacção do proprietário (registal, por exemplo), está exactamente
na mesma situação que um qualquer particular que tenha a posse de um terreno e
sobre ele actue como proprietário, sem reacção do proprietário, durante o mesmo
largo período de tempo.
Em face do já citado artigo 1289.º, n.º 1, do Código Civil,
a usucapião aproveita, sem distinções, a todos/as os/as que podem adquirir[36],
pelo que, o poder potestativo de usucapir (como lhe chama José Alberto C. Vieira[37])
é simplesmente “atribuído ao possuidor que tenha uma
posse boa para usucapião e haja mantido a mesma ininterruptamente durante o
prazo estabelecido. O exercício deste poder, que está unicamente dependente da
vontade do seu titular, ocorre com a invocação da usucapião”[38],
não havendo razão curial para fazer qualquer diferenciação, pelo que, dentro da
capacidade de gozo do Estado e outras entidades públicas, nada impede o “ingresso de bens particulares no domínio do Estado e das
Pessoas Coletivas Públicas através da usucapião”[39].
J.Dias
Marques afirma-o expressamente, no sentido de nada obstar a que,
nesse quadro da capacidade de gozo, “venham
elas a ter a autoria da posse prescricional ou a adquirir ou perder direitos
por via de aquisição”[40],
concluindo, mais à frente, que “ao Estado não
está vedada a aquisição do direito de propriedade por prescrição aquisitiva
(usucapião), praticando actos de posse susceptíveis de a ela conduzir”[41].
Por fim, Fernando
Pereira Rodrigues, é ainda mais expressivo, quando afirma que “pode verificar-se o ingresso de bens privados no domínio
público através de usucapião se tiver havido uma convergência de actos
administrativos que revelem a intenção de destinar os bens ao uso público.
Designadamente o Estado e as pessoas colectivas de direito público podem
adquirir bens particulares através da usucapião.
Quer dizer: sobre as coisas do domínio
privado das pessoas e entidades privadas podem as Pessoas Colectivas Públicas
exercer posse e beneficiar da usucapião, quer as destinem ao domínio privado
dessas Pessoas, quer as destinem ao domínio público, como também sobre as
coisas do domínio privado dessas mesmas Pessoas Colectivas podem os
particulares exercer posse e beneficiar da usucapião”[42].
O
que é necessário, portanto, é lograr ter “uma posse boa para efeito de usucapião”[43], a qual tem
de se revelar, desde logo, a partir do momento da inversão do título de posse
(que “tem
que consistir numa oposição expressa através de atos positivos (materiais ou
jurídicos), inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da
oposição, atuar como proprietário) e praticados na presença ou com o
consentimento daquele a quem os atos se opõem”[44]).
É a partir deste momento, desta inversão, da publicidade e
visibilidade desta actuação depois prolongada no tempo, que se conseguem
justificar as gravosas consequências da usucapião e retirar-lhe qualquer sombra
de arbitrariedade, pois esta só se consolidará se a posse sobre o bem for
verdadeiramente demonstrativa do exercício desse poder: usando as palavras de Paula Costa e Silva, podemos dizer que “a posse, pela sua natureza, mais do que supor
comportamentos significativos integrados por símbolos supõe comportamentos não
integrados por esses símbolos. A posse não vive de palavras, mas de actuações,
conforme resulta claramente, dos artigos 1251.º a 1263.º, alínea a). Sabemos
quem tem posse das coisas não por aquilo que alguém nos diga, mas antes por
aquilo que vemos. O que equivale a dizer que é da natureza das coisas que o
comportamento significativo por excelência, na posse, não seja a declaração
integrada por signos, mas o comportamento concludente”[45].
O poder de facto (corpus)
consolida-se assim como uma acção sobre a coisa disputada (ou sua parcela na
zona de disponibilidade do interessado), com determinada estabilidade
condizente com a afectação funcional concreta do bem (nomeadamente se de
utilização esporádica ou precária se tratar).
A chamada “intenção de
domínio” (animus), vem-se a inferir
do próprio modo de actuação ou da utilização que o mesmo interessado dará a
essa mesma coisa ou parcela, com referência aos poderes correspondentes ao
exercício de um dado direito real.
Nesta lógica, os actos materiais
praticados sobre um imóvel poderão consubstanciar uma aquisição originária da
posse por prática reiterada ou aquisição paulatina, na previsão do artigo
1263.º, alínea a], do Código Civil[46].
Ou
seja - e transcrevendo um extracto do já citado Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 05/05/2020 (onde se descreve o entendimento correcto nesta matéria)
- o “Ac.
do STJ de 20-03-2014, no proc. nº 3325/07.0TJVNF.P1S2 refere, “III-Quem exerce
a posse em nome alheio só poderá adquirir o direito de propriedade se,
entretanto, ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos arts. 1265 e
1290 do CC. IV- A eficácia da oposição referida no art. 1265 do CC depende da
prática de atos inequivocamente reveladores de que o detentor quer atuar, a
partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa. V- A oposição deve,
além disso, ser dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detinha a
coisa e tornar-se dela conhecida”.
Como
refere o Acórdão do STJ de 09/02/2012 (Processo n.º 3208/04.6TBBRR.L1.S1), “A
oposição que aquele preceito legal [art. 1265 do CC] reclama implica uma
contraposição ostensiva revelada por atitudes ou comportamentos que evidenciem
uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica”. E acrescenta;
“Mister é que o detentor de uma coisa, em nome alheio, se apresente perante
aquele em nome de quem detinha com uma atitude ou um comportamento diverso
daquele que havia assumido até esse momento, isto é, confrontando o titular do
direito com um comportamento típico de quem passou a possuir sem qualquer
constrangimento ou liberto de peias que tolhessem o uso, a fruição e a
disposição plenas da coisa”. No mesmo sentido, o Prof. Santos Justo, in
“Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.ª edição, pág. 194. “Trata-se, portanto, de
uma conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma
que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a ser detido a
título de animus possidendi”, ou nas palavras de Orlando de Carvalho, citado
por este autor, “a inversão do título de posse é uma inversão do animus: o
animus não relevante transforma-se em animus relevante”).
É
aqui que entra a última questão que falta abordar sobre as divergências
assumidas pela Recorrente.
Afirma
esta última que o Auto apenas alegou o que consta nos artigos 12.º e 13.º da
Petição Inicial e que, portanto, quanto à inversão do título da posse apenas
seria referido que estavam a ser entabuladas negociações com vista a uma
eventual permuta com a segunda Ré: “Nada mais !!!”, chega a acrescentar.
E
daqui conclui que nunca a acção poderia chegar a proceder e ser validada a
usucapião a seu favor.
Mas,
pura e simplesmente, a sua asserção não corresponde à realidade.
Significativamente,
a primeira Ré e ora Recorrente omite o que consta descrito nos artigos 16.º a
19.º da Petição Inicial onde se refere:
16º
Com
efeito, a partir de meados dos anos 80, o Autor inverteu o título da sua posse
e passou a comportar-se como verdadeiro proprietário do imóvel, sem qualquer
oposição da 2.ª Ré.
17º
A
partir de data que não consegue precisar, mas certamente na primeira metade da
década de 80, o Autor passou a assumir-se não apenas como mero possuidor do
imóvel, mas como seu verdadeiro proprietário, limpando, vedando e cuidando do
mesmo, bem como reagindo contra ações materiais de terceiros que pudessem pôr
em causa a sua posse.
18º
Esta
posse manteve-se até aos dias de hoje, nos seus mesmíssimos termos, apesar da
celebração da escritura e justificação ora impugnada.
19º
Certo
é que, com exceção da escritura em crise, a 1.ª Ré nunca praticou qualquer ato
contrário à posse do autor”.
Daqui
resulta, portanto, que o Autor teve o cuidado de factualizar que a partir da
primeira metade da década de 80, passou a assumir-se não apenas como um mero
possuidor ou detentor do imóvel (em nome da segunda Ré), mas já como seu
verdadeiro proprietário (passando, assim, a possuir em nome próprio), indicando
factos em que concretiza essa actuação e o tempo em que ela passou a ocorrer: “limpando”,
“vedando”, “cuidando do mesmo”, “reagindo contra acções materiais de terceiros
que pudessem pôr em causa a sua posse”[47].
E,
sublinhe-se esta inversão da situação que existia (materialmente o terreno
esteve sempre sob a alçada do Município, apesar da venda feita à segunda Ré que
nunca o utilizou, nem teve capacidade e vontade de utilizar), foi feita perante
aquela contra quem esse título foi invertido (a dita segunda Ré, que tinha o
registo predial a seu favor, na altura), a qual o aceita e confirma na sua
Contestação (9º - Tem sido o Município de …, desde a aquisição do
prédio por parte da …, que tem, de facto, administrado e cuidado do imóvel, do
qual nunca perdeu o domínio de facto. ; 10º Isto em face da incapacidade da … destinar
o imóvel para o propósito para o qual foi adquirido. ; 11º A partir de meados
dos anos oitenta, o Município assumiu, verdadeiramente, as vestes de proprietário
do imóvel, que passou inclusivamente a incluir nos planos municipais.).
A
questão da permuta que esteve em equação entre Autor e segunda Ré tem uma
explicação que em nada afecta nem a conclusão pela inversão do título da posse,
nem a actuação do primeiro relativamente ao terreno: é que, independentemente
de ter passado a agir como proprietário e de a proprietária o saber, havia que resolver
a questão formal de o registo de propriedade continuar em nome desta última e,
daí, o ter havido conversas nesse sentido. Sem pressas, porque não havia
discordâncias.
A
alegação da primeira Ré faz, pois, pouco sentido pois a factualidade respeitante
à inversão do título da posse consta provada na Sentença (Factos 10., 11., 12.
e 14.) e consta-o, porque o Autor a alegou.
Assim,
não se suscitam dúvidas quer sobre a inversão do título da posse, a partir de
meados da década de 80 do século passado (o que é reconhecido pela própria
proprietária, à data), com comportamentos expressivos e concludentes (como
ocorre com a limpeza do terreno, a sua vedação e mesmo a sua inclusão nos
Planos de Urbanização da zona), o que foi feito de forma pública e sem a oposição
visível de quem quer que seja (nomeadamente da primeira Ré).
Neste contexto, e
face ao tempo decorrido, desde meados/final do ano 2000 que o Autor consolidou
o prazo para a sua aquisição por usucapião do terreno em causa : a sua boa
fé é evidente e o tempo decorrido também[48]. Este, “encurta-se (…) com a existência de justo título e
boa fé, pela maior aparência de legitimidade com que o título e a boa fé
rodeiam a posse”[49], pois, seguindo
Gayo, “a propriedade das coisas não há-de
ficar na incerteza demasiado tempo”[50]: são os interesses de ordem pública[51] que fazem justificar este instituto
jurídico, como sublinha Rodrigues Bastos[52] e que se
ligam inseparavelmente à certeza e segurança jurídicas[53], que Durval Ferreira melhor concretiza, no “assegurar, no tráfego
das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas
e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança
que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do
usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a
confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade”[54].
A usucapião, pode dizer-se, é um espelho do que é viver em sociedade,
com o que isso implica em termos de inter-relacionamentos, adaptações e
confiança. Para gerar segurança. Como diz João Manuel Coelho Baptista, a “dúvida sobre a titularidade ou identidade dos direitos sobre as coisas
é algo com que a sociedade humana não convive bem, já que, as relações
sócio-económicas devem ser tão estáveis e claras quanto possível e como se sabe
a dúvida cria instabilidade e indefinição.
A indefinição criada pela
dúvida sobre matéria tão relevante como seja o estatuto dos bens, é algo que,
dificilmente, a dinâmica sócio-económica em que os mesmos se integram,
permitiria que subsistisse a longo prazo, pois a estabilidade de que as
relações sócio-económicas carecem para progredirem não se compatibiliza
facilmente, ou de todo, com indefinições ad
aeternum relativamente à
titularidade ou identidade dos direitos sobre as coisas”[55].
Lucidamente, Luís Filipe Pires de Sousa conclui que subjacente “a esta orientação está a prevalência de interesses ligados
à estabilidade e segurança jurídica que conduzem à consideração de que não faz
sentido que, perante um longo período de tempo, se eternizem situações de
incerteza pelo que se permite a realização das expectativas criadas à luz de
uma prolongada configuração factual. Em suma, o sistema jurídico admite que
certas situações de facto adquiram tutela jurídica e possam dar lugar ao
reconhecimento de direitos em homenagem a interesses de natureza social e
económica que acolhe como relevantes”[56].
Permitindo a invocação da usucapião, o
legislador fomenta a segurança jurídica, “harmonizando
o direito com a realidade física”[57].
Foi essa harmonia que saiu como resultado deste processo:
- por um lado, fazendo
corresponder a realidade (a propriedade do terreno por parte do Autor) ao Direito
(estava registado a favor da primeira Ré e, antes, da segunda), no que à
propriedade do terreno concerne;
- por outro, terminar com
uma situação de desconformidade gerada por um comportamento da segunda Ré que
procurou – sem fundamento – registar a seu favor uma aquisição originária, por
usucapião, através de uma justificação judicial baseada em declarações falsas.
O Tribunal a quo decidiu bem todas as questões que lhe foram
colocadas, de forma clara, estruturada e (bem) fundamentada.
A Sentença será, pois, confirmada in totum.
**
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar improcedente a apelação,
confirmando a Decisão recorrida.
Custas
a cargo da Recorrente.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 26 de Abril de 2022
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1]
António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo
Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição
Atualizada, Almedina, 2020, página 213.
No mesmo sentido, Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código
de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 762,
reforçam a ideia de ser “verdadeiramente
impressionante a frequência com que, em sede de recurso, são invocadas
nulidades da sentença ou de acórdãos, denotando um número significativo de
situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter
uma correta apreciação do mérito da causa, mas de «anular» a toda a força a sentença
com que foi confrontada”. E acrescentam, que é “claro que certas decisões poderão estar eivadas de nulidades, mas
ainda assim seria bom que se interiorizasse que, atento o disposto no art.
665º, nº 1, que regula os poderes da Relação no âmbito do recurso de apelação,
a sua verificação não determina necessariamente a remessa dos autos ao tribunal
de 1ª instância, antes implica a substituição imediata por parte da Relação, a
não ser que alguma questão tenha sido considerada prejudicada e haja necessidade
de recolher outros elementos(…)”.
[3] Expressão usada no
Acórdão da Relação de Guimarães de 05/04/2018 (Processo n.º 1716/17.8VNF.G–Eugénia Cunha).
[4]
Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos…,
cit., páginas 193 a 210.
[5] António Abrantes
Geraldes,
Recursos…, cit., página 200.
[6] António Abrantes
Geraldes,
Recursos…, páginas 201 a 205.
[7] António Abrantes
Geraldes,
Recursos…, páginas 206-207.
[8] Em concreto sobre
estas testemunhas, o Tribunal a quo
refere ainda, com interesse, o seguinte: “Foram
também ouvidas testemunhas ligadas aos serviços da Câmara Municipal de ….
Assim,
foi ouvida a testemunha AF que reuniu com a 1ª R. por uma ocasião, tendo
conhecimento do objecto dos autos por ter estado directamente ligado à
situação.
Esta
testemunha, que prestou um depoimento exaustivo e revelador de conhecimento
directo explicou que a A. tem direito legal de preferência na transmissão de
imóveis nas áreas de reabilitação urbana e o seu departamento é quem aprecia as
situações relacionadas com o exercício do direito de preferência. Deste
depoimento resultaram provados os pontos 15, 16 e 17. Conforme explicou, o
processo deste imóvel chegou-lhe às mãos para apreciação do direito de
preferência pois estava em vias de ser alienado e a testemunha, estranhando,
solicita informação sobre a titularidade do imóvel tendo sido transmitido que o
mesmo tinha sido vendido à 2ª R. para aí construir a sua sede mas como tal não
havia sucedido, o imóvel mantinha-se na posse do município. Explicou que esse
imóvel sempre esteve abrangido pelo plano de urbanização do …, sempre tendo
sido a A. quem o administrou e tratou.
Esta
testemunha explicou que era comum à época o Município transmitir os terrenos
quase a custo zero vinculando os adquirentes a um fim e como os projectos têm
de dar entrada na Câmara esta por essa via controlava se estava a ser cumprido
o fim a que se destinava. Neste caso a 2ª R. nunca teve condições para aí fazer
erigir a sua sede, tendo resultado pois provado o ponto 9 da matéria de facto.
Esclareceu que a 2ª R. nunca chegou sequer a entrar na posse do imóvel pelo que
a câmara continuou a administra-lo, esclarecimento que levou à prova do ponto
29 da matéria de facto. No imóvel está projectada a construção de casas de
renda acessível, assim e para esse efeito fez o pedido do cadastro do imóvel e
ficou a saber que o Patriarcado nunca tinha autorizado a 2ª R. a construir no
terreno, esta não tinha meios para o fazer. Não tem qualquer conhecimento de
intenção da 2ª R. querer proceder à venda do imóvel. Deu conta de iniciativas
de particulares averiguarem junto da secção do urbanismo, tentando saber o que
poderia ser construído ali. Este esclarecimento vai de encontro ao explicado
pela testemunha AP (prova dos pontos 19, 20 e 21). Assim e quando viu o
processo de apreciação para o exercício do direito de preferência, identificou
o comprador que era uma empresa de construção civil, entrou em contacto com a
mesma e foi essa entidade que o esclareceu que se estava à espera do registo de
propriedade por via de uma escritura de usucapião. Esta circunstância também
levou o tribunal a considerar provado o ponto 18.
Após tal
conhecimento contactou o Cartório Notarial de …onde havia sido pedida a
escritura, a autoridade tributária, o patriarcado e o advogado da 2ª R.. No
Cartório Notarial foi explicado que quem requeria a realização da escritura era
uma cliente não habitual e que tal lhe suscitou muitas dúvidas e pediu
documentos adicionais aos que a 1ª R. trazia. Mais tarde informou esta testemunha
que não lavraria a escritura. tinha lá ido solicitando a realização da
escritura de justificação. Veio a saber mais tarde que a escritura foi mesmo
lavrada num Cartório Notarial em ….
Houve
então reuniões entre as três partes. Nessas reuniões veio a ser apurado que
foram registadas duas penhoras sobre o imóvel (garantia de mais de um milão de
euros), porque à proprietária registada tinha dívidas superiores a esse
montante. Esclareceu que os contactos que houve com a 1ª R não poderiam ser
para negociar qualquer permuta que só poderia ser negociada com a 2ª R. e foi
em contactos com o patriarcado que essa questão se colocou. Estes
esclarecimentos levaram à prova dos pontos 25, 26.
Esta
testemunha esclareceu que o conhecimento directo da situação adveio-lhe a
partir de 2011, data em que começou a trabalhar para a Câmara. Esclareceu que a
reunião com o patriarcado a fim de se formalizar a compra pela A. à 2ª Ré,
ocorreu em finais de 2017, princípios de 2018, pelo que considerou-se provado
os pontos 29 e 30 da matéria de facto.
Esclareceu
que pelo menos a partir de 2011, sempre foi feita a limpeza do terreno pela A.,
tendo de igual modo esclarecido que aquele terreno encontrava-se rodeado por
terrenos da A. pelo que a limpeza se fazia “a eito”. Foi peremptório ao afirmar
que uma eventual permuta nunca seria feita com a 1ª R.
Confrontado
com os e-mails juntos aos autos a fls.43 e 44 esclareceu que a questão da
permuta seria para permitir levantar as penhoras deste imóvel, porque a A-
sabia que nenhuma das RR. o faria.
Quanto à
testemunha AG, jurista chefe de divisão de notariado da CM… desde Março de
2019, exercendo funções anteriormente igualmente como jurista mas na direcção
municipal de gestão patrimonial, referiu que a primeira vez que foi confrontada
com o nome da R. foi quando apareceu como vendedora do imóvel a propósito da
notificação para exercer o direito de preferência. Esse processo não andou
porque sabiam que esse prédio pertencia à 2ª R. e não tinha sido adquirido por
ninguém. Contactaram a 2ª R. que confirmou desconhecerem a 1ª R. e afirmando
que nunca aquele imóvel havia sido vendido a quem quer que fosse. Este
depoimento corroborou pois o depoimento da anterior testemunha designadamente
quanto aos pontos 15, 16 e 17 da matéria de facto.
Confirmou
a reunião com representantes das RR.. A dado momento a 1ª R. assume existir
execução fiscal que não podia pagar pelo que a A. disponibilizou-se mediante a
declaração desta de que a escritura era inválida e a 2ª R. assumisse que não ia
proceder a qualquer construção no imóvel, a identificar activos imobiliários
que passariam para a 2ª R. para esta depois da recepção do terreno justificado,
dar à 1ª R. para pagar as dívidas. Tal procedimento foi suscitado porque afirma
que mesmo que a escritura fosse reconhecida como inválida, nunca voltaria para
a CM… por causa das penhoras. Referiu mesmo que a CM… estava disposta a perder
mais de um milhão de euros para reaver o imóvel sem quaisquer penhoras
registadas. Este depoimento explicou os pontos 24, 25 e 26. Tal explicou os
encontros e e-mails trocados entre as partes”.
[9] “Na acção de
impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º,
n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado,
tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de
propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor,
com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu
direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo
7.º do Código do Registo Predial” - Acórdão n.º 1/2008, de 04/12/2007 (Azevedo Ramos), Diário da República n.º
63, I série, de 31 de Março de 2008.
[10]
Seguir-se-á de
perto o que já se teve oportunidade de se escrever no âmbito do Acórdão desta
Relação de 09/11/2021 (Processo n.º 163/20.9T8VLS.A-L1-7-decidido por este
mesmo Colectivo).
[11]
“Usucapião,
etimologicamente, significa, precisamente, uma aquisição (capio) pela posse (usu)”
(Durval Ferreira, Posse e Usucapião,
Almedina, 2002, página 439), continuando, em face da definição legal,
transcrita, a manter “indiscutível actualidade a clássica definição do
jurisconsulto romano Modestino que ensinou consistir a usucapio na adjectio domini
per continuationem possessionis temporis lege difinti” (Penha Gonçalves, Curso de Direitos
Reais, Universidade Lusíada, Lisboa,
1992, página 291.
[12] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1979, página 670; também, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, Almedina,
1997, páginas 128-131.
[13]
Puig Brutau, Caducidad, Prescripción Extintiva y
Usucapión, 3ª edición actualizada y ampliada, Bosch, 1996, página 12.
[14]
Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos
Reais, Quid Juris, 1996, páginas 202 e 203.
[15]
Não “existindo no domínio dos direitos de crédito qualquer
possibilidade de usucapião” (Mota Pinto,
Direitos Reais -prelecções ao 4.º ano Jurídico de 1970-71, recolhidas por Álvaro Moreira-Carlos Fraga-, Almedina,
página 89), uma vez que nestes, “ao contrário do que sobrevém nos direitos
reais, não existe qualquer esfera de domínio sobre uma coisa, não existe,
portanto, corpus. Os direitos de
crédito não traduzem uma relação de soberania exclusiva de uma pessoa sobre uma
coisa, como ocorre nos direitos reais, baseiam-se, antes, numa relação
intersubjectiva que confere a faculdade ao credor de exigir do devedor uma
prestação, de conteúdo positivo ou negativo (relação essa que não existe na
usucapião!). Também não há animus
juridicamente relevante, não há qualquer intenção jurídico-real (estamos no polo
oposto ao da realidade)” (Luciana Ribau
Lourenço, O Instituto da Usucapião: produto imutável o passado ou
necessária reavaliação no presente, on
line, Dissertação de Mestrado em Direito Civil, Coimbra 201, página 57 [consultado
a 20/04/2022] disponível na internet em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/41804/2/O%20Instituto%20da%20Usucapi%C3%A3o_pdf.pdf.
[16] Luís Carvalho Fernandes,
Lições…, cit., página 207; Oliveira
Ascensão, Direito Civil-Reais, 4.ª edição refundida, Coimbra Editora, 1983,
páginas 294-295.
[17] Durval Ferreira,
Posse…, cit., página 462.
[18]
Com um entendimento distinto, embora apenas em termos
dogmáticos, o recente Manual de Direitos Reais, de José Luís Bonifácio Ramos (2.ª edição, AAFDL, 2020, páginas
177-184) defende que se trata de um “tertium
genus aquisitivo”: “Também a identificamos na usucapião, dado que os seus
requisitos, designadamente o decurso de período temporal e a prescrição
positiva, revelam extrema dificuldade, senão mesmo impossibilidade, de a
prefigurar enquanto aquisição originária. Na verdade, além da verificação da
posse, em detrimento da mera detenção, sequer basta o decurso do tempo para
adquirir o direito real correspondente. Será necessário invocar,
potestativamente, o direito, atendendo às regras da capacidade de exercício, ao
invés do simples uso da razão, susceptível de fundar a aquisição por ocupação
ou por achamento. Acresce que nem toda a posse será boa para usucapião. Também
nem todos os direitos de gozo são adquiríveis por usucapião, de acordo com o
artigo 1293º CC. Ademais, interessa referir que os efeitos aquisitivos da
usucapião não implicam a correlativa extinção de outros direitos, entretanto
constituídos sobre a mesma coisa, ao contrário do que sucede na ocupação ou no
achamento. Destarte, os direitos menores que, eventualmente, incidam sobre a
coisa e subsistam aquando do momento aquisitivo, podem caracterizar a
usucapião, enquanto figura intermédia entre uma aquisição originária e uma
aquisição derivada” (ob. cit., página 179).
[19] Penha Gonçalves, Curso…, cit., página 295.
Assinalando que só será um facto aquisitivo originário,
“quando beneficia um possuidor formal, permitindo-lhe justamente constituir a
seu favor um direito que até aí não existia na ordem jurídica”, vd., José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Direitos
Reais, Coimbra Editora, 2008, página 432.
[20]
Oliveira Ascensão, Direitos Reais…, cit., páginas 294-295.
[21]
Luciana Ribau
Lourenço, O Instituto…, cit., página 45.
[22]
Jose Antonio Alvarez-Caperochipi, Curso
de Derechos Reales, I, Propiedad y Posesion, Civitas, 1986, página 147.
[24] Jose Antonio
Alvarez-Caperochipi, Curso…, cit., página 143.
[25]
José Alberto C.
Vieira, Direitos Reais, cit., páginas 430-431.
[26]
Fernando Pereira
Rodrigues, Usucapião-Constituição Originária de
Direitos Através da Posse, Almedina, 2008, páginas 12-13.
[27]
Durval Ferreira, Posse…, cit., páginas 436 e 451-452.
[28]
Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007,
página 273.
[29]
Ao contrário do
que sucede na expropriação (em que o Estado não tem a posse do bem e
surge com ius imperii, em nome do
interesse público, ficando com o bem do particular e pagando por ele uma justa indemnização), no caso da usucapião,
o Estado (nos mesmos termos que qualquer particular e sujeito às mesmas regras)
há muito tempo que tem uma posse e com características específicas e necessárias
(pública, pacífica, de boa ou de má-fé, por tempo determinado).
[30]
A Recorrente
chega mesmo a dizer que do que o Autor alega a aquisição até teria uma base
onerosa, por este se ter referido a uma permuta não formalizada, o que não
corresponde nem ao que o Autor alegou, nem que provado resultou, nem sequer ao
que a própria segunda Ré defendeu.
[31]
Usucapião…, cit., página 14.
[32]
STJ 24/06/2010 (Processo n.º 106/06.2TBFCR.C1.S1-Alberto Sobrinho).
[33] E quando falamos em posse, falamos numa situação de facto, materialmente
estruturada, de corpus, caracterizada legalmente como “o poder que se manifesta
quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de
propriedade ou de outro direito real” (artigo 1251.º e que, nos termos do
artigo 1258.º “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica
ou violenta, pública ou oculta”.
[34]
José Alberto C. Vieira, Direitos
Reais, cit., página 409; Carvalho
Fernandes, Lições…, cit., página 203.
[35] Luís Menezes Leitão,
Direitos Reais, Almedina, 2009, página 234; Também, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, cit., página 676; Manuel Henrique Mesquita, Direitos
Reais, Coimbra, 1967, página 112.
[36]
“Quanto às pessoas colectivas, deve entender-se que podem
aproveitar da usucapião todas as que tenham capacidade de gozo” – Miguel Ricardo Machado Oliveira, A Posse
na Doutrina e na Jurisprudência, Portugal Jurídico Económico, Porto, 1981,
página 97.
[37]
Direitos Reais, ob. cit., páginas 427-428.
[38]
Ob. loc. cit..
[39]
Luciana Ribau
Lourenço, O Instituto…, cit., páginas 56-57;
expressamente, também, Luís Menezes
Leitão, Direitos Reais, cit., páginas 302-303.
[40]
Prescrição Aquisitiva, Volume I, Lisboa, 1960, páginas
130-131.
[41]
Ob. cit., páginas 136-137.
[42]
Fernando Pereira
Rodrigues, Usucapião…, cit., páginas 34 e 35.
[43] Expressão usada no
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2014-12-17 (Processo nº
1313/11.1TBCTB.C1.S1-Maria Clara
Sottomayor) e repetida no de 05/05/2020 (Processo n.º
12708/17.7T8PRT.P1.S1-Fernando Jorge Dias),
este último disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/09/2020_ecli_1270817.7_t8prt.p1.s1.pdf.
[44]
STJ 2014-12-17 e
05/05/2020, citados na nota de rodapé que antecede.
[45]
Paula Costa e
Silva, Posse ou Posses?, Coimbra Editora,
2004, página 47.
[46]
Vd., por todos, Orlando Carvalho, Introdução à Posse,
cit., Revista de Legislação e Jurisprudência, 123.º e 124.º, páginas 354-355 e
259-261.
[47]
Estes eram os
factos que constituíam a causa de pedir da acção, no que respeita à usucapião
(“se o autor invocar a usucapião, formam a causa de pedir os factos atinentes à
posse do direito real de gozo e ao tempo por que ela perdurou, nos termos do
art. 1287.º do CC, sendo complementares os factos qualificados nos artigos
1294.º ss.” – Nuno Andrade Pissarra,
Das Ações Reais, Volume II, Imprensa FDUL, 2021, página 1901).
[48]
Repare-se que a
boa fé e o justo título não são “elementos de usucapião, mas apenas aparências
de legitimidade que aconselham a redução ou o encurtamento do tempo para a
investidura formal da posse” (Jose
Antonio Alvarez-Caperochipi, Curso…, cit., página 149; também, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais,
cit., página 407), relevando apenas os caracteres da posse (titulada, de boa ou
má fé, etc.) apenas quanto ao prazo (assim, STJ 05/03/2009, Revista n.º
148/09-2.ª Secção - Santos Bernardino - disponível
em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=28776&codarea=1).
Também, Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, cit., página 112).
[49]
Jose Antonio
Alvarez-Caperochipi, Curso…, cit., página 149.
[50]
Puig Brutau, ob. cit., página 12.
[51] Este
tem sido também o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça:
-
a “usucapião visa satisfazer o
interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da
existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular,
quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é
aduzido pela posse” – STJ 01/03/2018 (Processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1.S2-Rosa Tching);
-
“a usucapião serve também, além do mais, para «“legalizar” situações de facto
ilegais» mantidas durante longos períodos de tempo (…) inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa” – STJ
06/04/2017 (Processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1-Nunes
Ribeiro).
[52] Rodrigues Bastos,
Notas ao Código Civil, II, Lisboa, 1988, página 63.
[53]
"Uma consideração de certeza ou segurança jurídica, a
qual exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por
muito tempo, sobre a base delas se criando expectativas e se organizando planos
de vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por antijurídicas" - Manuel de Andrade, Teoria Geral da
Relação Jurídica, Volume II, Coimbra, 1987 (7.ª reimpressão), página 446.
[54]
Durval Ferreira, Posse…, cit., página 440.
[55]
João
Manuel Coelho Baptista, A
usucapião e o registo predial na sociedade da informação, a (in)alteração do
epicentro da ordem jurídica imobiliária, Dissertação de Mestrado em Direito
Civil, on line, Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, 2018, página 46 [consultado a 20/04/2022],
disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/38378/1/ulfd138265_tese.pdf
.
E acrescenta: é “neste contexto, de falibilidade ou de
imperfeição da ordem dominial definitiva, em que o direito se apresenta
subtraído do poder de facto que lhe é inerente, que a posse se afirma com
autonomia face ao direito, prosseguindo uma função que tende a ordenar o
domínio provisoriamente, evitando por um lado a capitulação da ordenação
dominial definitiva e por outro, trilhando o caminho para o seu reatamento,
proporcionando a criação do próprio direito ex
novo” (ob. loc. cIt.).
[56] Acções Especiais de
Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1.ª edição, Coimbra Editora,
2011, página 62.
[57]
Expressão usada por João
Manuel Coelho Pereira (ob. cit., páginas 47, 70 e 141).
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