quarta-feira, 11 de maio de 2022

O Município não necessita de autorização da Assembleia Municipal para adquirir por usucapião

 Processo n.º 20778/20.4T8LSB.L1

Tribunal a quo

Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa-Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 13

Recorrente

M (Ré-Reconvinte)

Recorrido

MUNICÍPIO… (Autor-Reconvindo)

C…

*

            Sumário:

 

I – À face do artigo 615.º do Código de Processo Civil invocar a insuficiência de factos alegados/provados, ou a falta de uma autorização para usucapir, não corresponde à invocação de uma nulidade, mas apenas ao manifestar de uma discordância (que, eventualmente, corresponderá a um erro de julgamento), que se enquadra numa prática comum, mas errada e irracional, de confundir inconformismo com a decisão, com os vícios formais previstos no n.º 1 do citado normativo

II - A impugnação da matéria de facto em sede de recurso é mais do que uma manifestação de inconformismo inconsequente exigindo, com seriedade, razoabilidade e proporcionalidade, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil:

                   -  a indicação motivada (sintetizada nas Conclusões) dos concretos factos incorrectamente julgados–n.º 1, alínea a);                     - a especificação dos concretos meios probatórios presentes no processo, registados ou gravados (com a indicação das concretas passagens relevantes) – n.º 2, alíneas a) e b) – que imporiam uma decisão diferente quanto a cada um dos factos em causa, propondo uma redacção alternativa – n.º 1, alíneas b) e c).

III – A usucapião é um instituto jurídico do qual decorre a aquisição originária de um direito real, a favor de quem detenha a sua posse (com “corpus” e “animus possidendi”) e por seu impulso, por um período de tempo determinado (dependendo de ser bem móvel ou imóvel, de boa ou de má fé), perante a total inacção do proprietário, sendo, como tal, não um ataque à propriedade, mas um tributo à posse.

IV – A usucapião tem funções de consolidação de uma situação de facto, de regularização da ordem jurídica e de prova.

V – No caso da usucapião, o Estado (em sentido amplo, abrangendo aqui o Município) está ao nível de qualquer particular, sujeito exactamente às mesmas regras.

VI – Para invocar a usucapião em juízo o Município não necessita de autorização da Assembleia Municipal, uma vez que o artigo 25.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, apenas se reporta a aquisições derivadas e onerosas e não a originárias e gratuitas, pois só aquelas implicam com encargos ou utilização de recursos financeiros que têm de ser controlados e fiscalizados.

VII – Pode usucapir quem possa possuir, pelo que o Estado, como qualquer particular ou pessoa colectiva, pode ser beneficiário de usucapião, desde que reúna todos os seus requisitos (praticando os actos de posse adequados e pelo tempo necessário).

VIII – A usucapião está justificada por interesses de ordem pública, ligados à certeza, definição, estabilidade e segurança jurídicas, permitindo harmonizar o direito com a realidade.

 

 


Relatório

MUNICÍPIO …intentou a presente acção declarativa contra as Rés M e C peticionando:

                              a) Seja declarado que a 1.ª Ré não é proprietária do lote de terreno para construção com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de …, concelho de …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 6.305.350, descrito na Conservatória de Registo Predial de …sob o número dois mil quatrocentos e oitenta e três da freguesia de …, objecto da escritura pública de justificação lavrada no dia 22.09.2017, no Cartório Notarial da Dra. R…, que consta a fls. 53 a 55 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 193-A do referido Cartório, tal como nela se arroga, por serem falsas as declarações da 1.ª Ré e dos declarantes constantes da referida escritura;

                              b) Ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, não podendo a 1.ª Ré, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nele identificados;

                              c) Seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da 1.ª Ré efectuado com base na mencionada escritura de justificação, mais concretamente a coberto da AP. 481 de 2017.12.13 e, em consequência,

                              d) Seja ordenado o cancelamento de todos os registos efectuados na dependência e sequência daquele, nomeadamente o registo das penhoras a favor da Fazenda Nacional, registadas a coberto das AP. 1613 de 2018.05.23 e AP. 121 de 2018.10.18;

                              e) Que seja reconhecido o direito de propriedade do Autor sobre o prédio urbano descrito na alínea a), composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de …, concelho de …, e, em consequência, sejam as Rés condenadas a reconhecer o seu direito, abstendo-se de praticar qualquer acto lesivo do mesmo.

Alegou, em suma, o Autor,    que:

                                               - a primeira Ré celebrou escritura de justificação notarial por via da qual foi declarada proprietária do imóvel descrito em sede de petição inicial, mas que as declarações feitas nesse âmbito eram falsas, porquanto o imóvel (originariamente propriedade do Autor) foi vendido à segunda Ré com o fim de esta aí construir a sua sede;

                                               - o dito imóvel nunca saiu da titularidade do Autor, porquanto a segunda Ré nunca aí fez construir a sua sede e sempre o Autor continuou a tratar do imóvel (como sempre o tinha feito), com o consentimento da primeira Ré (proprietária inscrita), tratando-se de posse/domínio consentido até que a segunda Ré tivesse meios para construir a sua sede, o que nunca aconteceu;

                                               - atenta a natureza da posse e as características da mesma o Autor já está constituído no direito de usucapi-lo;

                                                - as declarações da primeira Ré e demais outorgantes na escritura de justificação são falsas, já que a segunda Ré nunca vendeu o imóvel à primeira, nem esta nunca o administrou ou pagou ou exerceu sobre o mesmo qualquer domínio.                   

 

Citadas as Rés, veio:

                        - A Ré M apresentar Contestação-Reconvenção, terminando por peticionar que se declare a validade e eficácia da escritura pública, declarando-se que é proprietária e legítima possuidora do imóvel e se condene a Autora a abster-se de praticar qualquer acto perturbador da sua posse ou propriedade.

Para o efeito, a Ré alega que o imóvel veio à sua posse por compra que fez em 1992 ou 1993 à segunda Ré (pela quantia de trezentos mil escudos, que pagou), sendo que, desde essa altura que o vem possuindo, embora a escritura pública nunca tenha sido outorgada por comportamento imputável à referida segunda Ré (não se ter logrado localizar qualquer representante da Ré para a outorga da escritura), razão pela qual outorgou a escritura de justificação.

Pede a condenação do Autor como litigante de má fé uma vez que todos estes factos eram do seu conhecimento (chegou a negociar com a Ré a permuta do imóvel).

 

                        - A Ré C…apresentar Contestação, suscitando a questão prévia de ter proposto acção de simples apreciação negativa contra a primeira Ré (que se encontra a correr termos), na qual peticiona seja declarado que a mesma não é proprietária do imóvel e que se declare a ineficácia da escritura outorgada pela mesma.

Nesta Contestação alega nunca ter vendido o imóvel à primeira Ré, sendo verdade o alegado pelo Município no sentido de decorrerem negociações para que o imóvel regressasse à propriedade do Autor.

 

Foi apresentada Réplica e ainda um articulado superveniente.

 

A acção a que se refere a segunda Ré na Contestação corre termos no Juízo Central Cível de Lisboa - Processo n.º 6548/19.6T8LSB – encontrando-se suspensa a aguardar a decisão dos presentes autos.

 

Admitida a Reconvenção, realizou-se Audiência Prévia procedeu-se à elaboração de despacho saneador e fixaram-se o objecto do litígio e os temas da prova.

 

Realizada a Audiência Final foi prolatada Sentença, na qual se decidiu considerar a acção procedente por provada e a reconvenção improcedente por não provada e, em consequência:

            a) Declarar que a 1.ª Ré não é proprietária do lote de terreno para construção com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de …, concelho de …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 6.305.350,00, descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o número DOIS MIL QUATROCENTOS E OITENTA E TRÊS da freguesia de …, objecto da escritura pública de justificação lavrada no dia 22.09.2017, no Cartório Notarial da Dra. R…, que consta a fls. 53 a 55 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 193-A do referido Cartório;

            b) Declarar ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial;

            c) Ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor da 1.ª Ré efectuado com base na mencionada escritura de justificação, mais concretamente a coberto da AP. 481 de 2017.12.13;

            d) Ordenar o cancelamento de todos os registos efectuados na dependência e sequência daquele, nomeadamente o registo das penhoras a favor da Fazenda Nacional, registadas a coberto das AP. 1613 de 2018.05.23 e AP. 121 de 2018.10.18;

            e) Reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre o prédio urbano descrito na alínea a), composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de …, concelho de …, e, consequentemente, condenar as Rés a reconhecer o seu direito;

            f) Absolver o Autor do pedido reconvencional.

 

A Ré-Reconvinte recorreu desta decisão e apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:

1. O Tribunal a quo, realizou uma errada aplicação do Direito aos factos errou na decisão sobre a matéria de facto.

2. A douta sentença recorra é nula porquanto titula a aquisição por usucapião de um imóvel pela autora, estando a Câmara Municipal desprovida de legitimidade atenta a falta de autorização da Assembleia Municipal.

3. A sentença recorrida é nula por insuficiência da matéria de facto dada como provada porquanto não resulta dos factos provados qualquer um que permita concluir, como se conclui, pela inversão do título da posse em relação à autora.

4. O autor padece de legitimidade substantiva para os termos da presente acção, com a consequente absolvição do pedido.

5. Nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, na sua redacção actualmente em vigor, determina-se que compete à Assembleia Municipal, sob proposta da câmara municipal, “autorizar a câmara municipal a adquirir, alinear ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e fixar as respectivas condições gerais…”.

6. A Assembleia Municipal de …não autorizou a Câmara Municipal a adquirir o prédio em discussão nos presentes autos.

7. A usucapião não é uma aquisição gratuita. A usucapião, sendo uma forma de aquisição originária, destina-se a prover à ausência do título aquisitivo. A génese do acto translativo da propriedade pode, pois, ser onerosa (v.g. contrato de compra e venda) ou gratuita (v.g. partilha por morte). Apenas para efeitos fiscais, o legislador ficcionou a usucapião como transmissão gratuita de bens. Coisa diferente é o negócio que está na sua génese e cuja ausência de título a usucapião visa suprir, que tanto pode ser oneroso como gratuito.

8. Não resultou dos factos provados que em causa estivesse uma aquisição gratuita.

9. Conforme decorre da Lei 75/2013, do seu artigo 25º n.º 1 alínea i) bem como das antecedentes Lei 79/77 (art.º 48º n.º 1 alínea i), do DL 100/84 (art.º 39º n.º 2 alínea i) e Lei 169/99 (art.º 53º n.º 2 alínea i), a necessidade de prévia autorização da Assembleia Municipal reporta-se a qualquer tipo de aquisição, seja oneroso ou gratuito e independentemente da forma jurídica que o acto aquisitivo venha a revestir.

10. Qualquer aquisição que seja feita pela Câmara Municipal de prédios cujo valor exceda os montantes que foram sendo fixados pela citada evolução legislativa, carece de autorização e deliberação da Assembleia Municipal sob pena de nulidade do acto.

11. Não pode, pois, a Câmara Municipal, adquirir um prédio, ainda que seja com recurso à figura da usucapião cujo valor exceda 1000 vezes a RMMG, sem que tal acto seja deliberado previamente pela Assembleia Municipal.

12. No âmbito dos autos, decorre, pois, a ilegitimidade (substantiva) para a Câmara Municipal estar em juízo.

13. Ora, pressuposto desta relação material que a autora deixa alegada nos presentes autos, à luz do que vem dito, seria a deliberação da Assembleia Municipal a autorizar a aquisição do prédio em causa nos presentes autos. Na ausência desta deliberação, como resulta provado, decorre, pois, que esta relação material (o negócio ou acto aquisitivo do prédio) é inexistente, do que deriva a ilegitimidade substantiva do Município de … para a presente demanda.

14. Um dos pressupostos de facto para o nascimento da relação material tal qual vem alegada pela autora e que se consubstancia na alegada compra do prédio aqui em causa, seria a controvertida deliberação da Assembleia Municipal, que não existe!!!

15. Esta ausência de legitimidade, porque geradora da nulidade do acto, quer à luz do direito civil quer na óptica do direito administrativo, conduz à necessária e irremediável absolvição do pedido.

16. O que se deixou dito, reconduz-se à legitimidade directa ainda que, no caso dos autos, pudesse estar em causa uma situação de ilegitimidade indirecta, na vertente da Autorização.

17. A legitimidade vista neste prisma ganha particular acuidade nos presentes autos, porquanto, conforme já deixado transcrito supra, nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º1, alínea i) da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, na sua redacção actualmente em vigor, determina-se que compete à assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal, “autorizar a câmara municipal a adquirir, alinear ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e fixar as respectivas condições gerais…”.

18. Na ausência de autorização, há falta de legitimidade, pelo que o ato envolvido é nulo, salvo disposição legal que disponha em sentido diverso.

19. A falta de legitimidade gera, pois, a nulidade do acto com a consequente ilegitimidade (substantiva) da autora para os termos da presente acção.

20. Tudo isto analisado à luz do direito civil, sendo que não é diferente a solução no âmbito administrativo.

21. Com efeito, nos termos do art. 161º n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo são nulos os actos estranhos às atribuições do órgão e organismos aí elencados, onde se inclui, por remissão para o art.º 2º do mesmo diploma, a Câmara Municipal.

22. Não se encontram reunidos todos os pressupostos para que ocorra, por banda da autora, ora recorrida, a aquisição originária do prédio aqui em causa, por via da usucapião, incluindo a inversão do título da posse.

23. A inversão do título da posse é um conceito de direito, impondo-se, como tal, o seu preenchimento com factos alegados e demonstrados.

24. A autora não alegou factos que permitissem concluir pela inversão do título da posse, como não resulta dos factos dados como provados na sentença recorrida, qualquer um que permitisse concluir nesse sentido.

25. A posse da autora era precária, que era mero detentor do prédio aqui em causa (art.º 1253º al b) e c) do CC.

26. Para que o poder de facto assim exercido pudesse conduzir à aquisição por usucapião, era necessário que se verificasse a inversão do título da posse.

27. A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. Não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base; necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito.

28. Neste conspecto, é tão só alegado pela autora na sua petição inicial (art.º 12º e 13º) que estavam a ser entabuladas negociações com vista a uma eventual permuta com a 2ª ré. Nada mais!!!

29. A inversão do título de posse apenas se pode efectivar se o possuidor em nome de outrem demonstrar, perante as pessoas que directamente tem interesse no direito em questão, a sua intenção de passar a possuir investido de uma qualidade uti dominus, ou seja como verdadeiro possuidor em nome próprio, vale dizer como proprietário directo e imediato sobre a coisa possuída.

30. A inversão do título da posse tem de traduzir-se, para ser eficaz, em circunstâncias excecionais que permitam considerar que, na situação, a autora teria ultrapassado a mera detenção do imóvel, que alterou a normal situação de detenção, decorrente da simples tradição, convertendo-a em verdadeira e própria posse.

31. Não resultou alegado nem, naturalmente provado, que tivesse ocorrido por parte do detentor, autor nos presentes autos, uma oposição contra aquele em cujo nome alegadamente possuía, aqui 2ª ré.

32. A usucapião está, todavia, vedada aos detentores ou possuidores precários a não ser que ocorra a inversão do título da posse (art.º 1290º).

33. Resulta cristalino da alegação da autora, que a sua alegada posse era precária e que perduraria apenas até à 2ª ré adquirir os meios necessários à construção da sua sede, tendo esta, por mera tolerância consentido (sublinhado nosso e conforme expressamente alega a autora), que o Município mantivesse a alegada posse do prédio.

34. Na ocorrência de um contrato promessa de permuta, a posse é precária.

35. Inexiste, na esfera da autora, o animus possidendi, que se carateriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados.

36. Não tendo o autor alegado e demonstrado a inversão do título da posse, não podia, assim, o Tribunal a quo decidir nos termos em que decidiu, ocorrendo em manifesto erro de julgamento.

37. não resulta da douta sentença recorrida - e bem - que tenha sido dado como provado que o autor usufruiu do prédio em causa na convicção de possuir coisa exclusivamente sua. Ou seja, não resulta provado que o autor tenha actuado em relação ao prédio em causa nos presentes autos, na convicção de ser seu exclusivo proprietário.

38. Não resultando como facto provado o animus possidendi, não se pode concluir que o autor seja possuidor mas mero detentor.

39. Ainda quanto ao animus, não se vê como estivesse presente no autor, tendo em conta que, conforme decorre dos documentos juntos com a Contestação sob o número 2, equacionava adquirir o prédio aqui em questão à recorrente, oferecendo outros em troca ou quando, conforme decorre do documento 3, pondera exercer o seu direito legal de preferência na venda a terceiros do mesmo.

40. O autor, alias, nem tão pouco alega e, claro, demonstra, factos tendentes à consideração dos demais caracteres da posse (art.º 1258º), ou seja, se a posse é de boa ou má fé, pacifica ou violenta, pública ou oculta.

41. Errou, pois, o tribunal a quo na decisão sobre a matéria de facto e, por tudo quanto se deixou dito e no depoimento da testemunha AF, deverão ser excluídos dos factos provados os seguintes: 10º, 11º, 12º e 14º.

42. Ainda que se considerasse demonstrada a inversão do título da posse (que nem alegada foi), o autor não fez qualquer prova directa, que a posse tenha perdurado o necessário hiato temporal, tendente à aquisição por usucapião.

43. Com efeito, neste âmbito, foi apenas ouvida a testemunha AF que, aos costumes, conforme resulta da acta de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021, disse ser Director Municipal de Gestão Patrimonial da Câmara Municipal …, ora recorrida, desde 2011. Questionado sobre esta questão, disse, aliás, que o que relatou é do seu conhecimento directo apenas desde 2011.

44. O registo do depoimento da testemunha AF foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 10:10:47 e terminou às 11:27:45 da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.

45. Tendo a convicção da Meritíssima Juiz a quo, no que aos alegados actos de posse diz respeito, assentado neste depoimento, existe manifesto erro de julgamento nomeadamente no que se refere ao prazo prescricional tendente à aquisição por usucapião.

46. Na verdade, ainda que se fizesse fé no que era conhecimento directo desta testemunha apenas haviam decorrido 10 anos, posse pois insuficiente para conduzir à pretendida aquisição pela via originária da usucapião.

47. Acresce que, conforme já se deixou alegado supra, fundando-se a posse – como expressamente alegado pelo autor - na inversão do título da posse, o prazo prescricional apenas tem o seu início, nos termos do art.º 1290º, desde a inversão do título da posse.

48. Ora, conforme alega a autor na sua petição inicial, tal inversão, na sua ótica, ocorreu quando se iniciaram as negociações, com a 2ª ré, com vista à permuta e consequente reversão do prédio aqui em causa ao domínio do Município.

49. Do depoimento da testemunha AF, contudo, resulta que as negociações com vista à permuta do prédio com a 2ª ré, ocorreram em final de 2017 ou princípio de 2018, do que deriva, assim, posse insuficiente à pretensão do autor em usucapir o prédio aqui em discussão.

50. O mesmo se diga em relação aos alegados atos de posse. Com efeito, do que foi relatado pela testemunha, o único acto que se poderia considerar possessório foi a colocação, pelo município de uma rede no prédio aqui em causa. Contudo, tal rede apenas foi colocada em 2018, do que deriva manifesta posse insuficiente.

51.Deveria o tribunal a quo ter julgado a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição do pedido.

52. Sendo a acção julgada improcedente perde a autora qualquer legitimidade para discutir o direito de propriedade da autora, ora recorrente, pelo que a improcedência daquela sempre determina a inutilidade superveniente da lide da Reconvenção, conforme se requer; tanto não seja, nos termos do n.º 6 do art.º 266º do CPC.

53. a reconvenção, porque se destina a contrapor o direito de propriedade da recorrente à autora, encontra-se manifestamente dependente do pedido por esta formulado. Pelo que, a improcedência da demanda, determina necessariamente, a inutilidade superveniente da lide da reconvenção.

54. Ainda que assim não se entenda, sempre a reconvenção deveria ser julgada totalmente procedente.

55. Quanto a esta, salvo o devido respeito, errou manifestamente a Meritíssima Juiz a quo na decisão sobre a matéria de facto.

56. Com fundamento no depoimento da testemunha RM foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 14:09:29 e terminou às 14:40:35 da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021 e porque resulta do mesmo a demonstração que, efetivamente, a 1ª ré, aqui recorrente, ajustou verbalmente com representantes da 2ª ré, a compra do prédio em causa nos presentes autos, tendo pago o respectivo preço, conclui-se que a Meritíssima Juiz a quo errou na decisão sobre a matéria de facto, ao dar como Não Provados os factos elencados sob os números 1, 3, 4, 7, 8 e 9.

57. Com fundamento depoimento desta testemunha deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto e dados como PROVADOS os seguintes factos:

58. O prédio em causa nos presentes autos, adveio à posse da 1ª ré por compra que fez em 1992 ou 1993, em dia concreto não apurado, à Associação designada por C…, aqui 2ª ré;

59. Em 1992 ou 1993, a ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …, a compra do descrito prédio.

60. Durante as negociações para a compra do prédio, a 2ª ré encontrou-se com a MV na pastelaria Garrett, sita no ….

61. A 2ª ré e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil escudos para a venda do prédio, que a 2ª ré entregou à MV.

62. Isto na presença de uma outra senhora e de um amigo da ré de nome RM.

63. Também é relevante o depoimento desta testemunha, no que se refere à demonstração dos actos de posse, praticados pela recorrente após o pagamento do preço.

64. Com fundamento neste depoimento, mas também do depoimento das testemunhas JL, AP, PL, JC, TB e nas próprias declarações de parte da 1ª ré, é legítimo concluir que a Meritíssima Juiz a quo errou ao dar como não provados os factos elencados sob os números 11, 12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22.

65. Com fundamento nestes depoimentos, impõe-se a alteração da decisão sobre a matéria de facto, dando-se com o PROVADO o seguinte:

66. Desde 1992 ou 1993 vem a ré possuindo o descrito prédio, cuidando e vigiando.

67. O que sempre fez à vista de toda a gente.

68. Sem violência e oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico.

69. De forma continua e ininterrupta.

70. Sempre na convicção de usufruir coisa exclusivamente sua.

71. E que não lesava o direito de quem quer que fosse.

72. Nesta convicção, a ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio.

73. Há cerca de 4 anos foi contactada por um construtor, que havia construído um prédio em propriedade horizontal junto ao prédio em causa nos presentes autos, que propôs a sua compra.

74. No dia do pagamento do preço da compra, as representantes da … disseram à 1ª ré que a partir daquele momento poderia fazer do terreno o que quisesse.

75. Desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido prédio, promovendo-o junto de potenciais compradores sem que tal actividade em vez alguma tivesse qualquer oposição.

76. Neste desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis edificações e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio.

77. A 1ª ré colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no mercado imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca foi impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia fazer por não ser dona do mesmo, nomeadamente a autora.

78. Com fundamento, também, nos documentos juntos sob o n.º 2, 3, 6 e 7; deverá ser dado como PROVADO, o seguinte:

79. Entre 2017 e 2018, decorrem negociações entre a ré a autora com vista à permuta do prédio em causa nos presentes autos, consubstanciada na entrega, pela R. à A. do prédio melhor identificado na petição inicial e recebendo esta em troca outros prédios no Município de …

80. Estas negociações estão corporizadas, além do mais, nos e-mails trocados entre os representantes da ré e a Câmara de ….

81. Em Agosto de 2017, pretendendo a ré vender o prédio em causa nos presentes autos, promoveu a notificação da autora para efeitos do exercício do direito legal de preferência.

82. A autora, respondeu dizendo que ponderava exercer o direito de preferência.

83. A ré solicitou a elaboração de parecer técnico sobre a viabilidade urbanística do prédio de acordo com o PDM.

84. E solicitou a avalização do prédio, para melhor rentabilização do negócio de venda

85. O registo do depoimento da testemunha JL foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 10:26:37 e terminou às 10:41:15 da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.

86. O registo do depoimento da testemunha AP foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 10:41:17 e terminou às 10:10:45 da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.

87. Conforme resulta expresso da douta sentença recorrida as testemunhas JC e TB, foram contactados pela recorrente para, no âmbito das respectivas actividades profissionais mediar a venda do prédio e elaborar um estudo de rentabilidade do mesmo.

88. O registo do depoimento da testemunha JC foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio e iniciou-se às 15:26:37 e terminou às 15:39:15 da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.

89. O registo do depoimento da testemunha TB, foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, H@bilus Media Studio iniciou-se às 15:39:18 e terminou às 15:45:11 da sessão de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021.

90. Também dos seus depoimentos, conforme decorre do seu resumo exposto na sentença recorrida, resulta a prática, pela recorrente, de actos de posse sobre o prédio aqui em causa, mormente, diligências tendentes à sua venda.

91. Resultando demonstrado o corpus e o animus possidendi sobre o prédio em discussão nos presentes autos, deveria a reconvenção ser julgada totalmente procedente.

92. Com efeito, aplicando o Direito aos factos acima elencados, resulta a aquisição, por usucapião e por parte da recorrente do prédio em discussão.

93. A douta sentença recorrida violou o art.º 25º n.º 1 alínea i) da Lei 75/2013 de 12 de Setembro, o art.º 161º n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo; os artigos 1258º, 1263º, 1264º, 1265º, 1287º e 1290º todos do Código Civil e o artigo 266º n.º 6 do Código de Processo Civil.

 


O Autor-Reconvindo veio apresentar Contra-Alegações, concluindo que:

A. A Recorrente censura a douta sentença sindicada imputando-lhe erro de julgamento, por entender que nela foi feita errada aplicação do Direito aos factos e se ter incorrido em erro na decisão sobre a matéria de facto.

B. Considera, por outro lado, que tal sentença é nula, quer porque, a seu ver, titula a aquisição por usucapião, pelo Recorrido, de imóvel sem que o mesmo tenha legitimidade substantiva para demandar, quer por insuficiência da matéria de facto dada como provada para se ter concluído pela inversão do título da posse.

C. Trata-se, contudo, de imputações totalmente improcedentes, que não encontram qualquer suporte legal ou probatório na prova documental e testemunhal produzida.

D. As causas de nulidade da sentença são as que se encontram taxativamente previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, entre as quais não se contam nem lhes são reconduzíveis a alegada titulação pela sentença sob recurso da aquisição por usucapião de imóvel dos autos, nem a dita insuficiência da matéria de facto dada como provada para se ter concluído pela inversão do título da posse.

E. A verificar-se in casu qualquer dessas circunstâncias – o que não se concede -, elas seriam, quando muito, geradoras de erro de julgamento, e não da nulidade nem da decisão sobre a matéria de facto, nem da sentença recorrida.

F. Por outro lado, e no que se refere ao apontado erro de julgamento na aplicação do Direito, por alegada falta de legitimidade substantiva do Recorrido para a requerer no processo que lhe seja reconhecida a aquisição do prédio dos autos por usucapião, importa ter presente que, contrariamente ao propugnado pela Recorrente, a autorização do órgão deliberativo municipal prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, de 12/09, reporta-se às situações de aquisição, alienação ou oneração de bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e não à aquisição originária daqueles.

G. Donde, a prévia autorização da assembleia municipal apenas é necessária nas situações de aquisição derivada, alienação ou oneração de imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e não quando está em causa a aquisição originária de imóvel de valor superior a esse limiar, como no caso em apreço.

H. Distintamente do que sucede em qualquer das modalidades de aquisição derivada, a aquisição originária por usucapião constitui um efeito da posse reiterada de um direito real, nomeadamente do direito de propriedade, e opera a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida.

I. Conforme indica a epígrafe do artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, nele o legislador estabelece o conjunto de competências de apreciação e fiscalização atribuídas à assembleia municipal, relativamente à actividade do órgão executivo municipal - designadamente no que se refere aos actos que envolvam a afectação de recursos financeiros, como é o caso da aquisição derivada de imóveis.

J. Daí a razão pela qual, na alínea i) do n.º 1 do artigo em questão, é fixado um limiar quantitativo de 1000 RMMG a partir do qual a aquisição, alienação ou oneração de imóveis deve ser precedida de autorização do órgão deliberativo municipal.

K. Não tem, portanto, qualquer sustentação jurídica, o entendimento da Recorrente segundo o qual a necessidade de prévia autorização da Assembleia Municipal reporta-se a qualquer modalidade de aquisição de imóveis, sendo também aplicável à aquisição originária por usucapião.

L. Mas mesmo que assim não fosse, e que, por isso, também a aquisição originária estivesse sujeita a prévia autorização da Assembleia Municipal, a inexistência dessa autorização não seria determinante da nulidade da aquisição do imóvel em causa, por usucapião, como sustentado pela Recorrente.

M. A ser exigível tal autorização, a sua ausência antes seria geradora da anulabilidade do acto administrativo determinante dessa aquisição, por incompetência relativa do órgão municipal que a promoveu, acto esse, no entanto, que, em conformidade com o disposto nos artigos 163.º e 164.º, n.º 3, do CPA, não só produziria os seus efeitos até à sua impugnação e eventual anulação, como seria passível de ratificação pelo órgão municipal competente.

N. Nenhuma censura pode, pois, merecer a decisão tomada a este respeito pela Mm.ª Juiz a quo, quando decidiu que, em face do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, deve entender-se que a aquisição ali prevista se trata de aquisição onerosa, pois só essa se compreende seja autorizada e escrutinada pela assembleia municipal.

O. No que concerne à pretensa insuficiência dos factos alegado pelo Recorrido para que se concluísse, como acertadamente se concluiu, pela inversão do título da posse, importa assinalar que foi provado pelo Recorrido que, em 09/06/1961, este celebrou com a 2.ª Ré e Recorrida … escritura de compra e venda do imóvel em causa nos autos, na qual ficou expressamente exarado que esse imóvel era vendido para a construção de edifício para instalação dessa instituição.

P. A Recorrida …reconheceu nos autos que embora fosse esse o objectivo da compra do imóvel, ele nunca foi atingido, derivado à incapacidade financeira da mesma entidade para instalar a sua sede no terreno em causa.

Q. Razão pela qual, a Recorrida …nunca se comportou como dona do prédio.

R. Na verdade, o Recorrido nunca deixou de ter o domínio do imóvel e de agir como se ele nunca houvesse saído da sua titularidade.

S. Perante a incapacidade financeira da Recorrida para assumir a construção de qualquer obra no imóvel, foi o Recorrido quem continuou a tratá-lo e a administrá-lo como se de prédio municipal se tratasse, sendo que, pelo menos a partir da década de oitenta, passou a assumir-se não só como possuidor mas como verdadeiro proprietário do mesmo, limpando-o, vedando-o, bem como reagindo contra acções materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse, tendo, inclusivamente, passado a incluir o imóvel nos seus planos municipais, tudo com conhecimento da Recorrida e à vista de todos, sem oposição de quem quer que fosse.

T. Tal como consignado na motivação da decisão de facto, a veracidade destes factos foi, de forma coerente e credível, confirmada pelo depoimento prestado pela testemunha AF, bem como pela testemunha AG, cujo depoimento, corroborou, de forma consistente e credível, o testemunho daquele.

U. Ora, nos termos do disposto no artigo 1287.º do Código Civil, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: nisto consiste o instituto da usucapião.

V. A aquisição de um direito real de gozo por usucapião exige a ocorrência simultânea de vários requisitos: posse prescricional, o decurso de certo lapso de tempo e um acto de vontade de adquirir.

W. A posse boa para usucapir é aquela que é pacífica, pública e efectiva, dizendo-se posse pública e pacífica aquela que, a contrario do disposto no artigo 1297.º do Cód. Civil, não é constituída com violência ou tomada ocultamente.

X. A posse efectiva é, por seu turno, a que tem correspondência na situação de facto, enquanto exercício efectivo de poderes de gozo sobre a coisa.

Y. Para esse efeito, a posse deve manter-se de modo contínuo durante todo o período de tempo necessário para a usucapião.

Z. Nos termos do disposto no artigo 1258.º do Cód. Civil, a posse boa para usucapião tanto pode ser causal como formal, variando o prazo para a sua operatividade consoante as situações previstas nos artigos 1294.º a 1299.º do mesmo Código.

AA. No caso em discussão, não obstante o Recorrido nunca tenha deixado de deter a posse do prédio em causa mesmo depois da sua venda à Recorrida, estamos perante uma situação em que não há registo do título ou da mera posse, pelo que, nos termos do disposto no artigo 1296.º do Cód. Civil, a usucapião só poderia dar-se ao fim de 15 anos, se aquele, enquanto possuidor, estivesse de boa-fé, ou de 20 anos se estivesse de má-fé.

BB. Atenta a prova produzida, afigura-se manifesta a posse de boa-fé por parte do Recorrido.

CC. Assim sendo, nenhuma dúvida poderá subsistir quanto ao facto de que, ao fim de 15 anos com a posse pacífica, pública e efectiva do prédio em causa, o Recorrido usucapiu o direito de propriedade sobre aquele.

DD. Mesmo considerando que só a partir dos anos oitenta houve inversão do título da posse, sempre o prazo de usucapião estaria há muito cumprido, atendendo a que a posse do imóvel por parte do Recorrido desde essa data e até hoje, que é mantida, de forma ininterrupta.

EE. Consequentemente, não pode merecer qualquer censura o julgado nesta matéria pelo Tribunal a quo, quando concluiu, e bem, “pela aquisição do imóvel pela A. por usucapião, forma originária de aquisição da propriedade.”

FF. Considerando, por outro lado, que a Recorrente não fez prova da aquisição do direito por usucapião, pese embora o ónus de tal prova sobre si recaísse (cfr. n.º 1 do art.º 343.º do Cód. Civil);

GG. E que, por assim ser, não logrou provar os elementos essenciais da posse, antes tendo resultado provado que as declarações produzidas no acto da escritura são falsas, bem sabendo os outorgantes que estavam a prestar falsas declarações;

HH. Outra decisão não poderia ter sido proferida pelo Tribunal a quo que não fosse julgar totalmente procedente a acção, por provada, e improcedente a reconvenção deduzida pela ora Recorrente, por não provada.

II. Devem, por conseguinte, manter-se como factos provados os constantes dos n.ºs 10, 11, 12 e 14 da decisão sobre a matéria de facto.

JJ. A Recorrente sustenta, por outro lado, ter sido feita errada apreciação dos depoimentos prestados pelas testemunhas AF, RM, JL, AP, JC e TB, no que se refere, respectivamente,

                             (a) à sua valoração para efeitos de prova do hiato temporal necessário à aquisição pelo Recorrido do imóvel em causa nos autos por usucapião (testemunha AF);

                             (b) comprovação da compra do mesmo pela Recorrente (testemunha RM)

 (c) dos actos de posse por si alegadamente praticados sobre o imóvel (testemunhas JL, AP, JC e TB).

KK. Com tal fundamento, propugna que, o Tribunal a quo errou ao julgar procedente à acção, dando como provadas a inversão do título da posse e a aquisição por usucapião do imóvel dos autos pelo Recorrido, e como não provados os factos elencados sob os n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22 da decisão sobre a matéria de facto.

LL. Também nesta matéria não se verificou, contudo, qualquer erro de julgamento.

MM. Em primeiro lugar, não corresponde à verdade que a convicção da Mm.ª Juiz a quo, relativamente à posse pelo Recorrido do imóvel dos autos, haja assentado, como afirmado pela Recorrente, no depoimento da referida testemunha AF.

NN. Conforme resulta quer da fundamentação de facto, quer da fundamentação de Direito da sentença sob recurso, a decisão proferida relativamente ao pedido do Recorrido de reconhecimento da sua aquisição, por usucapião, do prédio em causa, foi produto da conjugação da posição expressamente declarada pelas partes nos seus articulados e de toda a prova documental e testemunhal produzida nos autos, e não apenas do depoimento da testemunha acima identificada.

OO. O facto de no seu depoimento o dirigente do Recorrido visado ter esclarecido que apenas em 2011 teve conhecimento directo da situação do imóvel, e que, por isso, apenas a partir desse momento lhe era possível afirmar que “pelo menos a partir de 2011, sempre foi feita a limpeza do terreno pela A., tendo de igual modo esclarecido que aquele terreno encontrava-se rodeado por terrenos da A. pelo que a limpeza se fazia “a eito”, não pode ser dissociado do facto de a 2.ª Ré e também Recorrida …, ter expressamente reconhecido na sua contestação que

                                            (a) era o Recorrido que tinha, de facto, administrado e cuidado do imóvel, desde a sua aquisição pela mesma em 1961, atenta a incapacidade dessa entidade para destinar o imóvel ao propósito para o qual fora adquirido, e que,

                                            (b) a partir de meados dos anos oitenta, assumira, verdadeiramente, as vestes de proprietário do imóvel, passando a inclui-lo nos planos municipais.

PP. Tendo sido reconhecido nos autos pela 2.ª Ré e Recorrida …, que o imóvel em causa não só nunca fora vendido à Recorrente como nunca, desde a sua compra ao Recorrido em 1961, deixara de estar sob o domínio e a administração deste, tendo passado, inclusivamente, a partir de meados dos anos oitenta, a ser incluído nos planos municipais de gestão territorial, tal facto não podia ser desconsiderado pela Mm.º Juiz a quo, pelo que, foram correctamente julgados provados os n.ºs 10, 11, 12, 14 da matéria de facto.

QQ. Também no que se refere aos factos julgados não provados n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22 da matéria de facto, a Recorrente sustenta, sem razão, que, no que respeita à comprovação da compra do prédio dos autos, o Tribunal desvalorizou o depoimento da testemunha RM, não tendo, por outro lado, valorado correctamente os depoimentos das testemunhas JL, AP, JC e TB, no que se refere aos actos de posse por si alegadamente praticados sobre o imóvel.

RR. A testemunha RMfoi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 14:09:29 e términus às 14:40:35.

SS. A testemunha em questão declarou ser arquitecto aposentado e amigo da Recorrente há mais de 30 anos, mas o seu depoimento não mereceu qualquer credibilidade.

TT. Conforme assinalado na motivação da decisão de facto, esta testemunha “referiu ter estado presente no alegado encontro em que se fez o negócio de compra e venda. Referiu que o encontro deu-se numa pastelaria no …, que estavam presentes duas senhoras, a 1ª R. e ele próprio. Referiu que sentaram-se os quatro na mesa da pastelaria, para mais à frente dizer que ficou afastado na mesa e não ouviu nada. Instado a comparar a mesa em que estava sentado o sr. funcionário judicial na sala de audiências, com a da pastelaria declarou ser mais pequena e, tornou-se então óbvio que sendo uma mesa mais pequena, a menos que a 1ª R e as outras senhoras sussurrassem, a testemunha teria de ouvir a conversa. Afinal não se lembra de quaisquer pormenores, não viu qualquer entrega de dinheiro e nem sequer sabe o ano em que tal ocorreu. Para fazer ainda menos sentido o seu depoimento, acabou por afirmar que em 30 anos encontrou-se com a Ré três ou quatro vezes”.

UU. Ou seja, a testemunha cujo depoimento a Recorrente alega ter sido desvalorizado pelo Tribunal a quo e do qual, a seu ver, resulta “a demonstração que, efetivamente, a 1ª ré, aqui recorrente, ajustou verbalmente com representantes da 2ª ré, a compra do prédio em causa nos presentes autos, tendo pago o respectivo preço”, na verdade, foi a mesma que, de forma contraditória, começou por dizer em juízo que havia estado presente no encontro, numa pastelaria no Estoril, em que a Recorrente havia feito o negócio de compra do prédio dos autos com duas senhoras, tendo ficado sentados, os quatro – a Recorrente, a testemunhas e as duas senhoras mencionadas -, na mesa da pastelaria, para logo a seguir declarar que, afinal, ficara afastada da mesa e que nada ouvira do que fora falado entre a Recorrente e as duas outras senhoras alegadamente presentes.

VV. A mesma testemunha, note-se, que, tendo inicialmente declarado ao Tribunal que “sentei-me e assisti lá a fazer o negócio”, uma vez questionada pela Mm.ª Juiz a quo sobre se sabia se fora estabelecido um preço para o imóvel, quanto é que fora e se ouvira alguma coisa a esse respeito, afirmou, categoricamente, “Isso não, não….soube que ela [Recorrente] me disse depois”.

WW. Conjugada a falta de credibilidade do depoimento da testemunha em questão com o facto de a Recorrente não ter apresentado nos autos qualquer documento autêntico ou particular demonstrativo da compra do imóvel em causa, nem qualquer recibo ou factura comprovativo do preço alegadamente pago, em dinheiro, para esse efeito;

XX. E tendo em consideração que a visada nesse alegado negócio MV, mediante declaração escrita junta aos autos, sempre afirmou

                             (a) serem falsas as declarações da Recorrente vertidas na escritura de justificação;

                             (b) que não a conhece, nem nunca dela ouviu falar; e que

(c) nunca foi por esta contactada para qualquer assunto, fosse de que natureza  fosse;

YY. Outro juízo daí não se poderá extrair que não seja o feito pela Mm.ª Juiz a quo, na decisão da matéria de facto, dando como não provados os factos constantes dos n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9, 11, 12, 13 e 14, da matéria de facto.

ZZ. Conclusão, aliás, necessariamente extensível à decisão pela qual também se julgaram não provados os factos constantes dos n.ºs 17, 18, 20, 21 e 22 da matéria de facto.

AAA. Pois, contrariamente ao alegado pela Recorrente, não resultou provado quer das declarações de parte por si prestadas, quer dos depoimentos das testemunhas JL, AP, JC e TB, que hajam sido por si praticados quaisquer actos de posse sobre o prédio em causa, mormente, diligências tendentes à sua venda.

BBB. Conforme resulta das declarações de parte da Recorrente, esta limitou-se a manter o alegado em sede de contestação, reiterando ter adquirido o imóvel à pretensa representante da 2.ª Ré MV – a qual, como provado, sempre declarou nunca ter estado com ela ou sido por ela contactada, fosse por que motivo fosse.

CCC. Declarou também a Recorrente ter feito tal negócio verbalmente, e pago a totalidade do preço fixado de 300.000$00 (trezentos mil escudos) em dinheiro, tendo ficado a 2.ª Ré de reunir os papéis necessários para marcar a escritura – embora não tenha ficado com qualquer recibo ou comprovativo desse pagamento.

DDD. Ora, como bem se refere na fundamentação da decisão, “não resultou convincente que [a ora Recorrente] esteve vinte anos à procura das pessoas com quem fez o negócio e que representavam a 2.ª R.. Atente-se por outro lado, a falta de fundamento na alegação de que a 2.ª R. não correspondia à pessoa colectiva com quem fez o negócio. De igual modo, a R. sequer sabia ou tinha qualquer registo pessoal, como seria expectável, do dia em que fez o negócio, não sendo de igual modo crível que tivesse procedido à entrega de trezentos mil escudos sem exigir qualquer comprovativo”.

EEE. A testemunha JLfoi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 10:26:37 e términus às 10:41:15.

FFF. À semelhança da testemunha RM, JL declarou ser amigo da Recorrente e intervindo na escritura de justificação por esta promovida.

GGG. Testemunha essa que, quando questionado se tinha ideia de quando é que a Recorrente havia comprado o terreno em causa, respondeu que não sabia exactamente, que não se lembrava, pois “já lá vão mais de trinta anos”.

HHH. Embora, quando instado a esclarecer, disse que fora a Recorrente que lhe havia dito que tinha comprado o imóvel, tendo declarado que não assistiu a qualquer negócio, não conhecendo os alegados vendedores.

III. Mais esclareceu que quando da celebração da escritura de justificação a Recorrente lhe pediu que confirmasse o que lhe havia contado, tendo acedido confiando que o que aquela lhe tinha contado relativamente à alegada compra do imóvel era verdadeiro.

JJJ. Referiu, ainda, que a Recorrente era casada com um grande amigo seu e que conhecia o terreno em causa nos autos porque a sua irmã reside perto do mesmo.

KKK. Tendo ainda declarado que sempre teve a noção de que o imóvel pertencia àquela, tendo declarado saber que ela tentara vender o imóvel por várias vezes, tendo chegado a perguntar ao seu patrão se queria comprá-lo, mas que este dissera não estar interessado.

LLL. Quando perguntado sobre se sabia quem limpava e quem vedou o terreno em causa, declarou desconhecer.

MMM. Em suma, todo o conhecimento manifestado pela testemunha em questão, relativamente à alegada compra pela Recorrente do imóvel dos autos deriva, exclusivamente, daquilo que a mesma lhe transmitiu e pediu para declarar em sede de escritura de justificação, não tendo tido qualquer participação ou conhecimento directo dos factos pela mesma alegados com esse fim.

NNN. O mesmo se verificou com a testemunha AP, também interveniente na escritura de justificação.

OOO. AP foi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 10:41:17 e términus às 11:10:45.

PPP. Conforme resulta do depoimento desta testemunha, a mesma declarou conhecer a Recorrente, profissionalmente, desde 1980/1985.

QQQ. No entanto, conforme assinalado pela Mm.ª Juiz a quo, na motivação da decisão de facto, resultou evidente que “a relação entre ambas excedia a mera relação profissional, até porque, resultou do seu depoimento que declarou ter intervindo na escritura porque sempre ouviu falar que o imóvel era da 1ª R..”, ou, nas palavras da própria testemunha, “pelo menos foi o que me foi transmitido pela própria”.

RRR. Ao que acresce o facto de também esta testemunha ter admitido no seu depoimento que interviera na escritura de justificação e feito declarações cuja veracidade desconhecia, confiando, apenas, no que a Recorrente lhe dissera.

SSS. Inquirida sobre se se recordava de ter requerido informação urbanística sobre o terreno em causa à Câmara Municipal de …, e quem é que lhe pedira para o fazer, AP referiu que o tinha feito a pedido da Recorrente, “…a M”, com vista a “poder fazer qualquer coisa ali”.

TTT. Mais referiu que a Recorrente se dedicava à compra e venda de imóveis, mas que desconhecia se ela havia feito qualquer diligência com vista à venda do terreno em causa.

UUU. Ou seja, também no que se refere a esta testemunha, a sua razão de ciência, relativamente à compra do imóvel pela Recorrente e aos actos de posse por esta alegadamente praticados sobre o mesmo, decorre, exclusivamente, daquilo que a Recorrente lhe transmitiu e pediu para declarar em sede de escritura de justificação, não tendo qualquer conhecimento sobre esta alguma vez procurou vender o prédio que lhe disse ser seu.

VVV. Também no que respeita aos depoimentos das testemunhas PL, JC e TB nada resultou que permitisse ou permita concluir como provado que a Recorrente haja efectivamente comprado o prédio dos autos em 1992/1993, à 2.ª Ré e aqui também Recorrida …, e que desde esse momento que tal prédio vem possuindo de forma contínua e ininterrupta, à vista de todos.

WWW. Do depoimento de PL, apenas resultou o esclarecimento de que é empresário imobiliário e, à semelhança das demais testemunhas arroladas pela Recorrente, amigo desta, tendo declarado saber que a mesma era proprietária do imóvel em questão apenas porque lhe fora exibida a escritura de justificação.

XXX. Quanto à testemunha JC, foi ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 15:26:37 e términus às 15:39:15.

YYY. JC declarou ter sido contactado em 2018, por um parceiro de negócio, para proceder à compra do prédio em causa, tendo então falado com a Recorrente; porém, surgiu a informação da existência de um processo a correr na Câmara Municipal de …, bem como da existência de penhoras sobre o imóvel, pelo que considerou não valer a pena prosseguir com a tentativa de intermediação do negócio.

ZZZ. A testemunha TB foi igualmente ouvida na sessão de julgamento do dia 27/10/2021, tendo o seu depoimento sido gravado pelo sistema integrado de gravação da aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 15:39:18 e términus às 15:45:11.

AAAA. Referiu ser arquitecto de profissão, e que conhecia a Recorrente porque fora sua cliente, a qual lhe encomendara em 2019 um estudo para determinar o potencial de construção no imóvel dos autos.

BBBB. Mais declarou ter ido diversas vezes ao local, mas que as potenciais vendas não se concretizaram devido às penhoras inscritas.

CCCC. Em suma, nenhum dos depoimentos das testemunhas mencionadas permitia ou permite concluir como provados os n.ºs 17 a 22 da matéria de facto, tanto mais quando, como assinalado na fundamentação da decisão de facto, “não foi produzida prova de quaisquer promoções concretas do imóvel no mercado, não tendo sido apresentada prova documental a respeito, nem prova testemunhal, designadamente, um potencial comprador”.

DDDD. Por conseguinte, nenhum erro pode ser justamente apontado a tal decisão, a qual deverá manter-se na sua integralidade.

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente e da forma como se apresentam, importará:

a)     Verificar da existência de uma arguida nulidade da Sentença;

b)     Verificar se Tribunal a quo errou no julgamento dos:

                                   - Factos provados 10º, 11º, 12º e 14º;

                                   - Factos não provados 1, 3, 4, 7, 8 e 9, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 22

c) Verificar se devem ser dados como PROVADOS os seguintes  factos:

                                                           i. O prédio em causa nos presentes autos, adveio à posse da 1ª ré por compra que fez em 1992 ou 1993, em dia concreto não apurado, à Associação designada por …, aqui 2ª ré;

                                                           ii. Em 1992 ou 1993, a ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …, a compra do descrito prédio;

                                                           iii. Durante as negociações para a compra do prédio, a 2ª ré encontrou-se com a MV na pastelaria Garrett, sita no …;

                                                           iv. A 2ª ré e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil escudos para a venda do prédio, que a 2ª ré entregou à MV;

                                                           v. Isto na presença de uma outra senhora e de um amigo da ré de nome RM;

                                                           vi. Desde 1992 ou 1993 vem a ré possuindo o descrito prédio, cuidando e vigiando;

                                                           vii. O que sempre fez à vista de toda a gente;

                                                           viii. Sem violência e oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico;

                                                           ix. De forma continua e ininterrupta;

                                                           x. Sempre na convicção de usufruir coisa exclusivamente sua;

                                                           xi. E que não lesava o direito de quem quer que fosse;

                                                           xii. Nesta convicção, a ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio;

                                                           xiii. Há cerca de 4 anos foi contactada por um construtor, que havia construído um prédio em propriedade horizontal junto ao prédio em causa nos presentes autos, que propôs a sua compra;

                                                           xiv. No dia do pagamento do preço da compra, as representantes da … disseram à 1ª ré que a partir daquele momento poderia fazer do terreno o que quisesse;

                                                           xv. Desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido prédio, promovendo-o junto de potenciais compradores sem que tal actividade em vez alguma tivesse qualquer oposição;

                                                           xvi. Neste desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis edificações e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio;

                                                           xvii. A 1ª ré colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no mercado imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca foi impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia fazer por não ser dona do mesmo, nomeadamente a autora;

                                               xviii. Entre 2017 e 2018, decorrem negociações entre a ré a autora com vista à permuta do prédio em causa nos presentes autos, consubstanciada na entrega, pela R. à A. do prédio melhor identificado na petição inicial e recebendo esta em troca outros prédios no Município de …;

                                               xix - Estas negociações estão corporizadas, além do mais, nos e-mails trocados entre os representantes da ré e a Câmara de ….

                                               xx - Em Agosto de 2017, pretendendo a ré vender o prédio em causa nos presentes autos, promoveu a notificação da autora para efeitos do exercício do direito legal de preferência;

                                               xxi. A autora, respondeu dizendo que ponderava exercer o direito de preferência;

                                               xxii. A ré solicitou a elaboração de parecer técnico sobre a viabilidade urbanística do prédio de acordo com o PDM;

                                               xxiii. E solicitou a avalização do prédio, para melhor rentabilização do negócio de venda.

d)     Verificar se se mostram reunidos os pressupostos de funcionamento da usucapião a favor do Autor (nomeadamente se era ou não necessária autorização da Assembleia Municipal e se a inversão do título da posse estava bem configurada).

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 


Fundamentação de Facto

Para a decisão do recurso releva a seguinte factualidade:

1. Em 22.09.2017, a 1.ª Ré, como primeira outorgante, e JL, residente na Av.ª.., em …, AP, residente na Rua…, em …, e CA, residente na Rua…, em …, como segundos outorgantes, assinaram a escritura pública de justificação lavrada no Cartório Notarial da Dra. R…, sito na Rua …, pela respectiva Notária, que consta a fls. 53 a 55 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 193-A do referido Cartório (cfr. doc. n.º 1).

2. O prédio urbano justificado por via da escritura pública referida no facto 1. é composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E.., freguesia de…, concelho de … inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia de…, com o valor patrimonial de 6.305.350€, descrito na Conservatória de Registo Predial de sob o número DOIS MIL QUATROCENTOS E OITENTA E TRÊS da freguesia de … (aí como prédio omisso e ainda com natureza de prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob parte dos artigos 142 e 147 que deu origem ao actual artigo urbano) com a aquisição registada a favor da 2.ª Ré … pela inscrição apresentação um de vinte e sete de Maio de mil novecentos e sessenta e seis (cfr. doc. 2).

3. Por escritura pública de 9 de Junho de 1961, o Município de …, procedeu à venda do imóvel à 2.ª R. para “a construção de edifício para instalação dessa instituição” (cfr. doc. n.º 2).

4. A escritura pública de justificação outorgada em 22.09.2017 tem o seguinte teor:

“(…)E PELA PRIMEIRA OUTORGANTE FOI DITO:

Que, com exclusão de outrem é dona e legítima possuidora, do seguinte imóvel actualmente com a seguinte composição:

Prédio urbano composto por terreno para construção, com área de três mil oitocentos e quarenta metros quadrados sito em E…, freguesia de…, concelho de…, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3583, da freguesia de …, com o valor patrimonial de 6.305.350€, descrito na Conservatória de Registo Predial de…, sob o número DOIS MIL QUATROCENTOS E OITENTA E TRÊS da freguesia de --- (aí como prédio omisso e ainda com natureza de prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob parte dos artigos 142 e 147 que deu origem ao atual artigo urbano) com a aquisição registada a favor da … pela inscrição apresentação um de vinte e sete de Maio de mil novecentos e sessenta e seis, a que atribui o valor de seis milhões trezentos e cinco mil trezentos e cinquenta euros.

Que a justificante comprou verbalmente o referido prédio à …, que também era conhecida por … com sede na …, n.º 1 C, …, em meados dos anos noventa, garantidamente antes de mil novecentos e noventa e seis, à data representada por MV, tendo pago integralmente o preço.

Que a justificante está na posse e fruição do dito prédio em nome próprio há cerca de vinte e um anos, posse que sempre exerceu sem interrupção, utilizando-o e administrando-o, ostensivamente, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início e com o conhecimento de toda a gente, na convicção de ser a sua legítima proprietária.

Que desde então a justificante, vem fruindo do mesmo prédio, sendo por ela administrado, colocando à venda no mercado imobiliário, mostrando-o aos clientes, tudo isto ininterruptamente sem violência ou oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente, sendo assim, uma posse pacífica, contínua, pública e de boa fé, pelo que adquiriu o dito prédio por usucapião.

Que tentou por diversas vezes junto da referida MV, presidente da … formalizar a compra, a qual foi adiando a sua concretização, invocando dificuldades na angariação da documentação para a outorga da escritura.

Que a justificante perdeu o contacto com a mesma não sabendo o seu paradeiro nem sequer a existência da dita Casa, apesar das inúmeras pesquisas que efetuou ao longo dos anos junto do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, Conservatória do Registo Comercial e Serviço de Finanças.

Que dado o modo da sua aquisição, não tem documentos que lhe permitam fazer a prova do seu direito de propriedade plena sobre o indicado prédio, nem possibilidade de a obter pelos motivos extrajudiciais normais.

PELOS SEGUNDOS OUTORGANTES FOI DITO:

Que confirmam, para todos os efeitos, as declarações prestadas pela primeira outorgante, por serem inteiramente verdadeiras.

ASSIM O DISSERAM E OUTORGARAM. (…)” (cfr. doc. n.º 1).

5. A referida escritura de justificação foi publicada, por meio de extracto do respectivo conteúdo, na edição do jornal “Diário de Notícias” do dia 23.09.2017.

6. A 1.ª Ré procedeu ao registo do facto justificado na Conservatória do Registo Predial de …, através da AP. 481, de 2017.12.13 (cfr. certidão predial permanente, junta como doc. n.º 6).

7. Através da AP. 1613 de 2018.05.23, foi também registada uma penhora sobre o lote de terreno a favor da Fazenda Nacional, no âmbito processo de execução fiscal n.º 3344201701180355 e apensos, que corre termos no Serviço de Finanças de Lisboa – 11, em que é executada a 1.ª Ré, para garantia do pagamento da quantia exequenda de €279.801,87.

8. Através da AP. 1613 de 2018.05.23, foi registada uma outra penhora sobre o lote de terreno a favor da Fazenda Nacional, no âmbito processo de execução fiscal n.º 3344201801176692, que corre termos no Serviço de Finanças de Lisboa – 11, em que é executada a 1.ª Ré, para garantia do pagamento da quantia exequenda de € 630.535,00 e no acrescido de € 4.524,67, nos juros de mora de € 2.349,32 e custas processuais no valor de €2.175,35;

9. A 2.ª R., nunca destinou o imóvel ao fim previsto no contrato de compra e venda por via da incapacidade financeira para aí instalar a sua sede;

10. A partir de data que não consegue precisar, mas na primeira metade da década de 80, o Autor passou a assumir-se não apenas como mero possuidor do imóvel, mas como seu verdadeiro proprietário, limpando, vedando e cuidando do mesmo, bem como reagindo contra acções materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse;

11. Situação que se manteve ininterruptamente até aos dias de hoje, de boa-fé, de forma sempre pública e pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém;

12. Também a partir de meados dos anos oitenta, o Município passou a incluir o imóvel nos planos municipais, chegando a ocupá-lo com estaleiros municipais;

13. O imóvel está integrado num conjunto de prédios titulados pelo Município de …, a afectar a programas de habitação públicos;

14. Os factos referidos de 10 a 13 ocorreram com conhecimento de toda a gente e também com o conhecimento da 2.ª R., sem oposição de quem quer que seja;

15. Em Agosto de 2017, pretendendo a Ré vender o prédio em causa nos presentes autos, promoveu a notificação do Autor para efeitos do exercício do direito legal de preferência;

16. Em 21/08/2017 o A., respondeu dizendo que ponderava exercer o direito de preferência;

17. Na resposta do Autor à comunicação da 1.ª Ré para efeitos de exercício do direito de preferência, convidou a mesma a esclarecer o facto de ter comunicado a intenção de vender um prédio – o sito na E…, em causa nos autos – cuja titularidade se encontrava registada a favor da 2.ª Ré … (Cfr. doc. nº3, junto com a contestação);

18. Na sequência dos factos dados como provados em 15 a 17, a 1.ª R. outorga escritura de justificação em Setembro de 2017;

19. Em 2017, AP, a pedido da 1.ª R. solicitou ao Autor informações acerca das condições gerais para a realização de operações urbanísticas no prédio em causa nos presentes autos;

20. A este pedido foi atribuído o número de processo 5057/DOC/2017, tendo o Autor respondido nos termos que resultam do documento que se junta sob o n.º 4 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;

21. Refere-se que a operação urbanística deverá realizar-se através de uma unidade de execução e que esta deverá englobar os terrenos municipais contíguos;

22. Idêntico pedido foi feito por FM, tendo o Autor respondido nos termos que decorrem do documento que se junta sob n.º 5 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;

23. A 1.ª R. solicitou a elaboração de parecer técnico sobre a viabilidade urbanística do prédio de acordo com o PDM, já após a outorga da escritura de justificação; Cfr. doc. n.º 6);

24. Solicitou a avalização do prédio, para melhor rentabilização do negócio de venda (cfr. doc. n.º 7);

25. Em 2018, houve troca de e-mails versando sobre uma eventual permuta do prédio em causa nos presentes autos, consubstanciada na entrega, pela R. à A. do prédio melhor identificado na petição inicial e recebendo esta em troca outros prédios no Município de …(cfr. documento n.º 2);

26. No âmbito dos contactos referidos em 25, a 1.ª Ré mostra-se mostra disponível para proceder a permuta pois, segundo a mesma, tal teria “a vantagem de resolver definitivamente a questão registral do Lote da E…” (cfr. doc. n.º 2, junto com a contestação).

27. Os Estatutos da Ré …foram aprovados por Despacho do Secretário de Estado da Assistência Social de 19/03/1948, publicado no Diário do Governo n.º 147, II Série de 26/06/1948 (cfr. doc. n.º 1, junto com a Réplica);

28. Tendo a mesma assumido a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública administrativa – instituição particular de assistência (cfr. artigos 32.º, 33.º e parte final do parágrafo 1.º do artigo 35.º Código Civil (“Código de Seabra”); Título VIII – artigos 416.º e seguintes, 422.º, n.º 1, do Código Administrativo 1940; Lei n.º 1998, de 15/05/1944 e DL n.º 35108, de 07/11/1945);

29. A 2.ª R. reconhece o Autor, desde a data da escritura de compra e venda como possuidora consentida sempre tendo administrado e cuidado do imóvel;

30. À data em que a 1.ª R. celebrou a escritura, o Autor e a 2.ª R. estavam a ultimar os preparativos para formalizar o regresso do prédio à titularidade formal do Município;

31. No dia 17 de Junho de 2021 foi requerida ao senhor Presidente da Assembleia Municipal de …, certidão da deliberação da Assembleia Municipal que autoriza a Câmara Municipal a adquirir por usucapião o prédio sito na E…, descrito na Conservatória do Registo Predial de …sob o número 2483 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de sob o artigo 3583 (cfr. doc. n.º 1, 2 e 3).

32. No dia 24 de Junho de 2021 foi emitida a referida certidão negativa, assinada pelo presidente da Assembleia Municipal de…, o senhor Dr. J…, não existindo deliberação da Assembleia Municipal a autorizar a Câmara Municipal a adquirir o referido prédio por usucapião (cfr. doc. n.º 4).


Por seu turno, foram considerados Não Provados os seguintes factos:

1. O prédio adveio à posse da primeira Ré por compra que fez em 1992 ou 1993, em dia concreto que não consegue precisar, à Associação designada por ……;

2. …que não a 2.ª Ré, visto que, apesar de ter o mesmo nome, apenas foi constituída em 19 de Outubro de 2018;

3. Em 1992 ou 1993, a Ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …, a compra do descrito prédio;

4. Durante as negociações para a compra do prédio, a ré encontrou-se em diversas ocasiões com a MV na pastelaria Garrett, sita no …;

5. A MV transmitiu à Ré, que o prédio tinha sido adquirido à Câmara Municipal de…, aqui autora, para a construção das instalações destinadas a prosseguir a actividade da obra a que se dedicava;

6. Porém, uma vez que naquele momento já não estava nos planos da Associação construir as ditas instalações, pois que praticamente já não tinham qualquer actividade, era sua intenção vender o prédio;

7. Na sequência do que, a Autora e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil escudos para a venda do prédio;

8. Em novo encontro e porque tinha interesse em garantir o negócio, a ré entregou à MV a totalidade do preço acordado, ou seja, os trezentos mil escudos (1500 euros);

9. Isto na presença de uma outra senhora que se identificou como Dra. MR e de um amigo da ré de nome RM;

10. Nesse mesmo dia, as sobreditas MV e MR referiram que marcariam a escritura logo que estivesse reunida toda a documentação para o efeito;

11. Dizendo, porém, que sendo a ré a proprietária do terreno a partir daquela data, poderia fazer dele o que entendesse;

12. Assim, desde 1992 ou 1993 a Ré vem cuidando, vigiando, limpando e capinando esporádica vegetação que ali nasce;

13. O que sempre fez à vista de toda a gente, sem violência e oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico de forma continua e ininterrupta;

14. Sempre na convicção de usufruir coisa exclusivamente sua e que não lesava o direito de quem quer que fosse;

15. Uma vez que era intenção da ré revender o prédio, foi por diversas vezes solicitando à Maria Joana Bernard a celebração da escritura pública;

16. Dizendo sempre esta, que estavam a ultimar os pormenores, que a escritura se faria em breve e que seria outorgada pela agora representante da Associação, a Dra. MR;

17. Nesta convicção, a Ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio;

18. Em 1996 foi contactada por um construtor, que havia construído um prédio junto ao prédio em causa nos presentes autos, que propôs a sua compra, não avançando o negócio uma vez que a Ré ainda não tinha escriturado o terreno;

19. Entre 1996 e 1997 a Ré foi contactada igualmente por um grupo retalhista, que pretendia comprar o prédio para ali erigir uma loja, negócio que acabou por se frustrar, porque a Ré não tinha escriturado o prédio;

20. Na convicção de se tratar de coisa sua, desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido prédio, promovendo-o junto de potenciais compradores sem que tal actividade em vez alguma tivesse qualquer oposição;

21. Neste desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis edificações e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio;

22. A Ré colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no mercado imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca foi impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia fazer por não ser dona do mesmo;

23. Previamente à celebração da escritura, a Ré pesquisou junto do registo nacional de pessoas colectivas, conservatórias do registo comercial e serviços de finanças da existência e localização da …, porém, não existia qualquer dado.

 

Da putativa Nulidade da Sentença

Começa a Recorrente por invocar uma nulidade da Sentença “porquanto titula a aquisição por usucapião de um imóvel pela autora, estando a Câmara Municipal desprovida de legitimidade atenta a falta de autorização da Assembleia Municipal”.

Mais acrescentando que a “sentença recorrida é nula por insuficiência da matéria de facto dada como provada porquanto não resulta dos factos provados qualquer um que permita concluir, como se conclui, pela inversão do título da posse em relação à autora”.

Trata-se de um caso ostensivo, daqueles a que o Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes se refere quando diz que é “frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objeto do recurso que deve ser centrado nos aspetos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença ou do acórdão da Relação acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1”[2].

Ora, este referido artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, prevê que seja nula a sentença quando:

“a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

Daqui decorre com clareza meridiana (tal como já sucedia, à face do CPC anterior, no artigo 668.º), que estas nulidades correspondem a deficiências formais da sentença, que não podem (nem devem) confundir-se com um erro no julgamento (entendido este como a desconformidade entre a decisão e o direito substantivo ou adjetivo, aplicável à situação sub judice, ou seja, o sentido em que o Tribunal decidiu foi errado à luz do Direito).

Ora, a arguição da Recorrente, no sentido de existir uma nulidade na Sentença, por esta ter decidido existir uma situação de usucapião a favor do Autor sem que este tenha seu favor uma autorização da Assembleia Municipal, nada tem que ver com qualquer das alíneas do artigo 615.º, n.º 1, ou com “qualquer vício formal do silogismo judiciário relativo à harmonia formal entre premissas e conclusão”[3], mas apenas com uma discordância em termos de Direito, quanto à decisão e os seus pressupostos.

E o mesmo vale para a pretensa nulidade “por insuficiência da matéria de facto dada como provada porquanto não resulta dos factos provados qualquer um que permita concluir, como se conclui, pela inversão do título da posse em relação à autora”.

A Recorrente discorda da decisão tomada na Sentença (e isso a seu tempo será abordado), mas a sua discordância, em face da lei processual vigente, não a torna nula…

Caso a Recorrente tenha razão quanto à necessidade de autorização da Assembleia Municipal, ou caso se verifique alguma insuficiência factual para decidir como decidiu o Tribunal a quo, terá existido um erro de julgamento e a decisão será revogada.

Mas não é disso que se trata quando se invoca a nulidade de uma Sentença.

Improcede, em conformidade, esta alegação da Recorrente, inexistindo quaisquer nulidades na Sentença recorrida.  

 

 

Apreciação da Matéria de Facto

O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

Quando uma parte, em sede de recurso, pretenda impugnar a matéria de facto[4], nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:

            1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);

            2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).

 

Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[5], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[6], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[7].

 

Verificadas as Alegações e Conclusões da Ré-Recorrente vejamos em que consistem as divergências desta e se lhe assiste razão.

               I – Quanto à errada apreciação dos Factos Provados 10. (A partir de data que não consegue precisar, mas na primeira metade da década de 80, o Autor passou a assumir-se não apenas como mero possuidor do imóvel, mas como seu verdadeiro proprietário, limpando, vedando e cuidando do mesmo, bem como reagindo contra acções materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse), 11. (situação que se manteve ininterruptamente até aos dias de hoje, de boa-fé, de forma sempre pública e pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém), 12. (Também a partir de meados dos anos oitenta, o Município passou a incluir o imóvel nos planos municipais, chegando a ocupá-lo com estaleiros municipais) e 14. (Os factos referidos de 10 a 13 ocorreram com conhecimento de toda a gente e também com o conhecimento da 2ª R., sem oposição de quem quer que seja).

Sobre esta matéria referiu o Tribunal a quo que “Do conjunto da prova produzida, dúvidas não restaram que o A. sempre exerceu o seu domínio sobre o imóvel sem oposição de quem quer que fosse e à vista de todos tendo ficado provado a factualidade dada como provada de 10 a 14. A tal actuação não pode ser oposto que os serviços do município informaram a arquitecta AP, conhecida da 1ª R. e que até veio a intervir na escritura de justificação, sobre as condicionantes jurídico-urbanísticas a observar para a realização de operações urbanísticas na área de localização do prédio em causa, porquanto pela própria foi esclarecido tratar-se de informação que o A. teria de dar sempre que por alguém lhe fosse solicitada.

Decorre até dos docs. juntos pela 1.ª Ré sob os Docs. 4 e 5 que tais informações foram requeridas e prestadas pelos serviços municipais no quadro do direito à informação.

Já a prova testemunhal apresentada pela A., resultou totalmente descredibilizada, com depoimentos confusos, titubeantes e que após insistências de esclarecimentos resultou em contradições insanáveis. Anote-se que as próprias testemunhas que outorgaram a escritura concluíram dizendo que apenas sabiam o que a 1ª R. lhes disse e foi assim que intervieram no acto, atestando algo cujo conhecimento de facto afinal não tinham”.

Por seu turno, a Recorrente entende que esses factos devem ser considerados não provados por, quanto a eles, ter sido “apenas ouvida a testemunha AF que, aos costumes, conforme resulta da acta de julgamento do dia 27 de Outubro de 2021, disse ser Director Municipal de Gestão Patrimonial da Câmara Municipal de …, ora recorrida, desde 2011” e que o seu conhecimento directo é apenas a partir daí, sendo tudo o demais provindo de conhecimento indirecto, que, como tal, não pode ser valorado (“assentando a convicção da Meritíssima Juiz a quo, no que aos alegados actos de posse diz respeito num manifesto erro de julgamento, nomeadamente no que se refere ao prazo prescricional tendente à aquisição por usucapião”).

Já o Autor-Recorrido entende que “Tal como consignado na Motivação da Decisão de Facto, a veracidade dos factos acima referenciados foi, de forma coerente e credível, confirmada pelo depoimento prestado pela testemunha AF, bem como pela testemunha Ana Gamboa, cujo depoimento, corroborou, de forma consistente e credível, o testemunho daquele”.

 

O Tribunal teve o cuidado de ouvir a prova gravada produzida em audiência e compulsar com a prova documental junta aos autos.

Ora, quer a testemunha AF, quer a testemunha AG, pelas actividades que desenvolvem no Município de … e pelo seu directo conhecimento, deram conta de forma clara, assertiva, coerente de todas as diligências e actuação do Autor relativamente ao referido prédio[8].

Acresce que nas questões que lhes foram colocadas, acabaram por deixar toda a actuação do Município devidamente esclarecida e contextualizada (quer quanto ao espoletar da situação decorrente do exercício da preferência, quer da existência das penhoras, quer no que respeita a mails trocados, quer a reuniões havidas e do porquê das negociações, quer no relacionamento com a primeira Ré, quer nas acções do Município quanto ao terreno, quer quanto à sua inclusão nos planos de urbanização do …).

Estes depoimentos apresentaram uma enorme credibilidade, face à forma objectiva, serena e conhecedora com que foram prestados, sendo que a sua razão de ciência é evidente e decorre do seu conhecimento e participação directa quanto a parte dos factos e do conhecimento do processo dentro dos serviços do Município quanto aos factos anteriores à sua presença na CM….

 

Junto da proprietária do imóvel (a quem o Município o tinha alienado para um determinado fim por alturas de 1960) o Município sempre se entendeu e, pelo menos desde a década de 80 do século passado (já duas décadas depois da alienação ter ocorrido), passou a assumir-se como proprietário do terreno em causa (passando a fazer limpezas do terreno, integrando-o em planos de urbanização municipal, fazendo acessos, tudo de forma pública e sem notícia de oposição por parte de quem quer que seja), uma vez que aquela não iria lá construir a sua sede (e aceitou essa situação, o que aliás é perfeitamente compreensível e racional entre entidades de boa fé: o terreno foi cedido para um fim e qualquer outro teria de ser licenciado pelo Município; a primeira Ré nunca fez nem faz qualquer tenção desde 1960 de construir a sua sede naquele local; passou a aceitar que o Município actuasse como se proprietário fosse).

Ou seja, entre Autor e segunda Ré, a inversão do título de posse estava assente (vd., desde logo, o artigo 11.º da Contestação desta) e, em termos públicos, nada existiu em momento algum que contrariasse a situação (o que aliás seria fácil de comprovar pois o terreno encontra-se no meio de outros terrenos municipais).

A justificação notarial é completamente anómala e, sobre ela, a propósito dos factos que a ela respeitam, adiante se escreverá.

 

A conclusão óbvia, assim, é a de que o Tribunal a quo, quanto a estes factos 10., 11., 12. e 14., fundamentou e decidiu adequadamente, nada havendo a alterar.

              I – Quanto à errada apreciação dos Factos Não Provados 1. (O prédio adveio à posse da primeira Ré por compra que fez em 1992 ou 1993, em dia concreto que não consegue precisar, à Associação designada por …), 3. (Em 1992 ou 1993, a Ré ajustou com a Sra. MV, na qualidade de representante da …, a compra do descrito prédio), 4. (Durante as negociações para a compra do prédio, a ré encontrou-se em diversas ocasiões com a MV na pastelaria Garret, sita no …), 7. (Na sequência do que, a Autora e a MV, representando a …, acordaram no preço de trezentos mil escudos para a venda do prédio), 8. (Em novo encontro e porque tinha interesse em garantir o negócio, a ré entregou à MV a totalidade do preço acordado, ou seja, os trezentos mil escudos (1500 euros)) e 9. (Isto na presença de uma outra senhora que se identificou como Dra. MR e de um amigo da ré de nome RM), 11. (Dizendo, porém, que sendo a ré a proprietária do terreno a partir daquela data, poderia fazer dele o que entendesse), 12. (Assim, desde 1992 ou 1993 a Ré vem cuidando, vigiando, limpando e capinando esporádica vegetação que ali nasce), 13. (O que sempre fez à vista de toda a gente, sem violência e oposição de pessoa alguma, antes de modo pacífico de forma continua e ininterrupta), 14. (Sempre na convicção de usufruir coisa exclusivamente sua e que não lesava o direito de quem quer que fosse), 17. (Nesta convicção, a Ré foi entabulando contactos com vista à venda do prédio), 18. (Em 1996 foi contactada por um construtor, que havia construído um prédio junto ao prédio em causa nos presentes autos, que propôs a sua compra, não avançando o negócio uma vez que a Ré ainda não tinha escriturado o terreno), 20. (Na convicção de se tratar de coisa sua, desde 1992 ou 1993 sempre utilizou e cuidou o referido prédio, promovendo-o junto de potenciais compradores sem que tal actividade em vez alguma tivesse qualquer oposição), 21. (Neste desígnio, solicitou os serviços de AP, para ali projectar possíveis edificações e para a assistir na promoção e rentabilidade do prédio) e 22. (A Ré colocou publicamente e por diversas vezes, o descrito prédio à venda no mercado imobiliário, tendo-o mostrado aos potenciais interessados, o que nunca foi impedida de fazer por quem quer fosse ou alguém referiu que não o poderia fazer por não ser dona do mesmo).

 

Quanto a esta matéria, o Tribunal a quo fundamentou a decisão de “não provado” nos seguintes termos:

“Foi ouvida a. em depoimento de parte que mantendo o alegado em sede de contestação reiterou ter adquirido o imóvel à representante da 2ª Ré. Declarou ter feito o negócio verbalmente, ficando a 2ª R. de reunir os papéis para marcar a escritura, porém, logo no acto afirmou ter pago a totalidade do preço fixado em 300.000$00 (trezentos mil escudos).

Atente-se que afirmou ter pago em dinheiro e referiu, de modo que não resultou convincente que esteve vinte anos à procura das pessoas com quem fez o negócio e que representavam a 2ª R.. Atente-se por outro lado, a falta de fundamento na alegação de que a 2ª R. não correspondia à pessoa colectiva com quem fez o negócio. De igual modo, a R. sequer sabia ou tinha qualquer registo pessoal, como seria expectável, do dia em que fez o negócio, não sendo de igual modo crível que tivesse procedido à entrega de trezentos mil escudos sem exigir qualquer comprovativo.

Relativamente à prova testemunhal, foi ouvida a testemunha JC, amigo da Ré e que interveio na escritura de justificação. Segundo as suas palavras, na altura –já lá vão mais de trinta anos– falou-se que a Ré tinha adquirido o terreno. Porém, instado a esclarecer disse que foi a Ré que lhe disse que tinha comprado o imóvel. Declarou não ter assistido a qualquer negócio, não conhecendo os alegados vendedores. Admite que no acto da escritura a Ré lhe pediu que confirmasse o que lhe havia contado e fê-lo confiando que o que a Ré lhe tinha contado a respeito era verdadeiro. Referiu que a Ré era casada com um grande amigo seu e que conhece o terreno porque a sua irmã reside ali perto. A instâncias do mandatário da Ré, disse que sempre teve a noção de que o imóvel pertencia à Ré tendo esclarecido saber que ela tentou vender o imóvel por várias vezes, sendo que chegou a propor o negócio a patrão.

Perguntado quem limpou e quem vedou o imóvel, declarou desconhecer.

A outra interveniente na escritura de justificação foi AP, arquitecta.

Referiu conhecer a R. profissionalmente, conhecendo-a desde 1980/1985, tendo porém, este tribunal ficado convencido de que a relação entre ambas excedia a mera relação profissional, até porque, resultou do seu depoimento que declarou ter intervindo na escritura porque sempre ouviu falar que o imóvel era da 1ª R.. Também esta testemunha admitiu ter intervindo na escritura e feito declarações das quais desconhece em concreto a veracidade, confiando, afinal, no que a 1ª R. lhe dizia.

Confirmou ter requerido informação urbanística sobre o terreno à CM… a pedido da 1ª R., que lhe afirmou querer fazer “qualquer coisa ali”. Referiu que a R. M tinha em seu poder uma brochura com o levantamento do terreno e informação com as áreas. Esclareceu, ainda, que a 1ª R. se dedicava à compra e venda de imóveis, desconhecendo que ela tivesse encetado qualquer diligência de venda ali. Esclareceu que quando apresentou o pedido à CM… o fez apenas como técnica e não invocando qualquer qualidade de requerer a informação em nome da alegada proprietária.

Foi ouvida a testemunha RM, arquitecto aposentado e que apresentou um depoimento que não mereceu qualquer credibilidade. Com efeito, referiu ter estado presente no alegado encontro em que se fez o negócio de compra e venda. Referiu que o encontro deu-se numa pastelaria no …, que estavam presentes duas senhoras, a 1ª R. e ele próprio. Referiu que sentaram-se os quatro na mesa da pastelaria, para mais à frente dizer que ficou afastado na mesa e não ouviu nada. Instado a comparar a mesa em que estava sentado o sr. Funcionário judicial na sala de audiências, com a da pastelaria declarou ser mais pequena e, tornou-se então óbvio que sendo uma mesa mais pequena, a menos que a 1ª R e as outras senhoras sussurrassem, a testemunha teria de ouvir a conversa. Afinal não se lembra de quaisquer pormenores, não viu qualquer entrega de dinheiro e nem sequer sabe o ano em que tal ocorreu.

Para fazer ainda menos sentido o seu depoimento, acabou por afirmar que em 30 anos encontrou-se com a Ré três ou quatro vezes. O seu depoimento não mereceu a este tribunal qualquer credibilidade.

Ouvido PL, empresário imobiliário é amigo da 1ª R. e declarou saber que o imóvel é dela porque viu a escritura de justificação. Tanto bastou para concluir que o seu depoimento em nada servia para apuramento do que está em causa nos autos.

JC foi contactado em 2018, por um parceiro de negócio para proceder à venda do imóvel. Depois falou com a 1ª R. para proceder à venda do imóvel mas surgiu a informação do processo a correr na CM…, a informação de penhoras sobre o imóvel, pelo que considerou não valer a pena prosseguir com a tentativa de venda do imóvel.

TB, arquitecto que conhece a 1ª R. porque foi sua cliente, encomendando-lhe em 2019 um estudo de para determinar o potencial de construção do imóvel. Foi diversas vezes ao local tendo as visitas sido feitas à vista de todos. Não se concretizaram potenciais vendas, considerando as penhoras inscritas.

Analisados estes depoimentos o tribunal concluiu dando como não provados os pontos 1 a 16 da matéria de facto. Com efeito a história contada é inverosímil à luz da experiência comum e do mais médio dos cidadãos. Não é crível que alguém pague em dinheiro um imóvel, nunca faça a escritura pública, nunca o registe a seu favor. O conjunto das declarações da Ré resultaram para o tribunal como inverdades, inverdades estas que afinal, foram corroboradas pelas testemunhas outorgantes na escritura de justificação que só declararam o que a R. lhes vinha dizendo. Tais inverdades de igual modo resultaram dos depoimentos das restantes testemunhas arroladas pela Ré que prestaram depoimentos confusos, titubeantes, contraditórios.

No que se refere aos pontos 17 a 22 não foi produzida prova de quaisquer promoções concretas do imóvel no mercado, não tendo sido apresentada prova documental a respeito, nem prova testemunhal, designadamente, um potencial comprador”.

O Tribunal a quo acrescentou ainda na parte final da fundamentação, que “a prova testemunhal apresentada pela A., resultou totalmente descredibilizada, com depoimentos confusos, titubeantes e que após insistências de esclarecimentos resultou em contradições insanáveis. Anote-se que as próprias testemunhas que outorgaram a escritura concluíram dizendo que apenas sabiam o que a 1ª R. lhes disse e foi assim que intervieram no acto, atestando algo cujo conhecimento de facto afinal não tinham.

 

A Recorrente pretende que se dê relevância ao depoimento da testemunha RM, “desculpando” as suas imprecisões com a sua idade e o tempo decorrido, isto de forma a que se considerasse provado que a primeira Ré ajustou verbalmente com representantes da segunda Ré, a compra do prédio em causa nos presentes autos, tendo pago o respectivo preço.

Depois de ouvido o depoimento em causa, chega a ser constrangedora a sua pobreza probatória.

Pela inconsistência. Pela falta de rigor espacial e temporal. Pelas contradições. Pelo que diz e a seguir desdiz. Pelo que diz que assistiu e a seguir já diz que foi o que a primeira Ré lhe contou (a testemunha não sabe o que sabia, nem o que disse, nem se comprometeu com o que quer que seja)

De aproveitável, eventualmente, apenas que esteve presente - há uns anos - numa pastelaria no Estoril, com a primeira Ré, num encontro não sabe com quem, assistindo não sabe a quê, mas que esta última lhe disse que era um negócio, mas só diz qual pelo que ela lhe transmitiu e não por ter a ele assistido (nomeadamente à pretensa entrega do dinheiro…).

Dir-se-á apenas, numa perspectiva benévola, que a idade da testemunha e o tempo decorrido justificarão a inaproveitablidade probatória do depoimento.

A apreciação do Tribunal a quo sobre este depoimento é clara e objectiva, sendo que, a pecar, peca por não ter sido ainda mais descredibilizadora da sua valia probatória.

Por outro lado, a própria história em si é inverosímil, desrazoável e sem sentido para qualquer cidadão médio: ninguém faz um contrato daqueles, daquela forma, com pessoas que mal conhece e está vinte anos à espera que se faça uma escritura, sem um recibo, uma mínima formalização, uma tentativa de contacto com a entidade que a pretensa representante representava. Nada é consistente, nada é lógico, nada se provou.

A realidade nem sempre é lógica ou racional, é certo, mas quando assim é, o essencial é que a prova seja minimamente consistente e segura, com depoimentos imparciais e sabedores. Tudo o que não apresentou a primeira Ré.

Nada a apontar, portanto, quanto ao acerto da colocação como não provados dos referidos factos 1., 3., 4, 7., 8. e 9.

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Do mesmo modo, no que concerne “à demonstração dos actos de posse”, a prova produzida pela primeira Ré foi totalmente inconsistente.

Quer por banda da testemunha RM (que, para este efeito, nenhum conhecimento directo sequer tinha), quer pela das testemunhas JL, AP, PL, JC, TB(sendo certo que, só quanto às duas primeiras, a Recorrente se deu ao trabalho de indicar os concretos pontos dos seus testemunhos em audiência que poderiam infirmar a apreciação do Tribunal, o que desde logo a faz incumprir o preceituado pelo artigo 640.º, n.º 2, alínea a), tornando a inaproveitável o que a elas respeita).

 

Ouvidos os depoimentos em causa (incluindo os das testemunhas PL, JC e TB), só podemos concluir que a apreciação feita pelo Tribunal a quo e espelhada na fundamentação apresentada é certeira.

Os extractos dos depoimentos que a Recorrente transcreve são insuficientes para a conclusão que pretende, sendo certo que, efectivamente, apenas a própria primeira Ré no seu depoimento de parte faz afirmações conclusivas (ainda que sem qualquer credibilidade ou verosimilhança), sendo as “suas” testemunhas como que o eco do que ela lhes teria dito.

Nenhuma das testemunhas indicadas pela primeira Ré apresentou um grau de imparcialidade e distanciamento (nomeadamente em termos de conhecimento sobre o que depunham), que permitisse dar-lhes a credibilidade necessária para sustentar a versão apresentada e que o Tribunal a quo considerou não provada (há como que um circuito fechado entre elas: as testemunhas sabem e actuam em função do que a Ré lhes disse).

Diga-se e sublinhe-se – neste ponto – que a forma como foi celebrada a justificação notarial suscita as maiores dúvidas quer em termos criminais, quer em termos disciplinares, face ao tipo de prova que aí foi produzida, nomeadamente depois de ouvidas em audiência as testemunhas que a fundamentaram.

Não há, assim, nada a alterar quanto aos Factos Não Provados 11., 12., 13., 14., 17., 18., 20., 21. e 22., que o Tribunal apreciou bem e melhor fundamentou.

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Do mesmo modo, quanto aos Factos que a Ré-Recorrente pretende ver acrescentados (i. a xxiii.) dir-se-á que quanto aos i. a xvii. correspondem ao reverso dos Factos Não Provados 11., 12., 13., 14., 17., 18., 20., 21., 22. (alguns, decompostos), sendo que, quanto aos xviii. a xxiii, em face dos depoimentos já acima contextualizados e valorados das testemunhas AF e AG, nunca poderiam ser dados como provados: as conversas havidas decorreram no âmbito da tentativa de resolver o imbróglio jurídico criado com a actuação da primeira Ré, com a existência de penhoras sobre o terreno e com a posição sempre assumida de proprietário efectivo deste por parte do Município (xviii. e xix.), sendo que, quanto aos restantes, apenas o xx. seria susceptível de poder passar a constar da factualidade apurada (uma vez que foi esse facto que determinou a reacção do Autor perante a actuação que agora se constata ilegítima da primeira Ré). Mas, em face de toda a restante matéria já apurada e não apurada qualquer destes factos é absolutamente irrelevante para a decisão da causa, pelo que nada se determina em conformidade.

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Tudo ponderado o que dos autos ressalta é que a primeira Ré construiu uma situação jurídica com base em factos falsos e tentou dela fazer-se valer.

Haverá mesmo aqui, eventualmente a prática de uma tentativa de burla, relativamente à qual caberá ao Município apresentar a respectiva queixa no Ministério Público, se assim o entender.

 

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O Tribunal a quo seguiu o seguinte processo de raciocínio na Sentença sob recurso:

               I - na presente acção coincidem uma acção de simples apreciação (a impugnação da escritura de justificação corresponde a uma típica acção de simples apreciação negativa) e acção de apreciação positiva (declaração de propriedade) e, ainda, acção de condenação (reconhecimento da propriedade);

               II - no que diz respeito ao pedido de apreciação positiva o ónus da prova dos factos constitutivos do direito recai sobre quem do mesmo se pretende fazer valer (artigo 342.º do CC)

               III - quanto ao pedido de apreciação negativa rege o disposto no artigo 343.º, n.º 1, recaindo o ónus da parte da Ré e reconvindo;

               IV - a escritura de justificação notarial é utilizada quando o titular de um imóvel, ou de um bem móvel sujeito a registo, não dispõe de um título formal bastante que lhe permita registar a aquisição a seu favor, sendo pela via da outorga de escritura de justificação notarial que se vai suprir a falta daquele título;

               V - trata-se de mecanismo utilizado por quem detém a posse, em nome próprio de um imóvel para legitimar o seu direito de propriedade, sempre que não tenha documentos que o provem;

               VI - o que está na origem da ausência de documento é o facto de no passado, terem sido efectuados negócios meramente verbais, sendo que, não estando o bem registado em nome do proprietário não pode ser vendido, hipotecado ou mesmo arrendado e acrescendo que a inscrição do bem nas Finanças e o pagamento dos impostos devidos, não prova a aquisição do direito de propriedade;

               VII - Para este efeito relevam o artigo 116.º do Código do Registo Predial e o artigo 89.º, 96.º e 101.º do Código do Notariado;

               VIII - no caso, a primeira Ré, invocando uma aquisição por compra e venda há pelo menos vinte anos, sem ter feito escritura pública por razões imputáveis à vendedora (segunda Ré), outorgou escritura de justificação notarial que lhe permitiu proceder ao registo no seu nome, na Conservatória do Registo Predial, estando registada como forma de aquisição, a usucapião;

               IX - nos termos do artigo 1316.º do Código Civil, a usucapião é uma das formas de aquisição do direito de propriedade, sendo considerada pela doutrina como forma de aquisição originária;

               X - a usucapião faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário;

               XI - a posse compreende dois elementos essenciais, quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal);

               XII - para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. artigos 1258.º, 1297.º e 1293.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto);

               XIII - a posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (artigo 1261.º) ao invés a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (artigo 1262.º);

               XIV - o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse;

               XV - a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la, presumindo-se de má fé quando não seja titulada (artigo 1260.º);

               XVI – Em face da prova produzida, a primeira Ré não fez a prova da aquisição do direito por usucapião, não sofrendo dúvidas que o ónus de tal prova sobre si recaía (cabia-lhe a prova dos factos em que baseou a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do artigo 343.º) e, a este respeito, nenhuma prova logrou fazer (nem a actuação de facto sobre a coisa possuída -corpus- nem a  vontade de a possuir -animus- comportando-se como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse - posse formal);

               XVII – a primeira Ré não provou o uso de imóvel como se fosse seu, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, nos termos do n.º 2 do artigo 1252.º, ficando sim provado à evidência que as declarações produzidas no acto da escritura eram falsas, bem sabendo os outorgantes que estavam a prestar falsas declarações, pelo que, ao contrário do declarado na escritura, não adquiriu o prédio objecto da mesma, por usucapião.

               XVIII - acresce que a Ré não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação, como decorre do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008[9];

               XIX - a primeira Ré não logrou provar os factos tendentes à prova da aquisição por usucapião, pelo que a pretensão do Autor em ver impugnada a escritura de justificação e declarada a sua ineficácia, resulta, desde logo, da falta de cumprimento do ónus probatório por parte daquela, sendo certo que este, sem margem para dúvidas, provou a falsidade das declarações constantes na escritura;

               XX – no que respeita ao pedido do Autor quanto à sua propriedade sobre o terreno ficou provado que em 9 de Junho de 1961, celebrou com a segunda Ré escritura de compra e venda do imóvel em causa nos autos ficando expressamente nela exarado “vende à …, para a construção de edifício para instalação dessa instituição…”;

               XXI - era esse o objectivo da compra do imóvel, o qual nunca foi alcançado, pelo que a segunda Ré nunca se comportou como dona do terreno: o Município nunca deixou de ter o domínio do imóvel continuou a tratar e a administrá-lo como se fosse seu, sendo que, pelo menos a partir da década de oitenta passou a assumir-se não apenas como possuidor mas como verdadeiro proprietário, passando a incluí-lo nos seus planos municipais, tudo com conhecimento da proprietária inscrita no Registo Predial e à vista de todos, sem oposição de quem quer que fosse;

               XXII - nos termos do disposto no artigo 1287.º a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião;

               XXIII - In casu, estamos perante um caso sem registo do título ou da mera posse, pelo que, e nos termos do disposto no artigo 1296.º, a usucapião só pode dar-se ao fim de 15 anos se o possuidor estiver de boa fé e de 20 anos se estiver de má fé;

               XXIV - sendo manifesta a boa fé do Autor, dir-se-á que ao fim de 15 anos se deu a aquisição do direito de propriedade por usucapião (mesmo considerando que só a partir dos anos oitenta, houve inversão do título da posse, sempre o prazo de usucapião estaria há muito cumprido, sendo certo que a posse foi mantida ininterruptamente até aos dias de hoje e sempre de forma pacífica);

               XXV - a escritura de justificação realizada pela primeira Ré foi lavrada com base em falsas declarações sendo ineficaz e o registo da aquisição a seu favor, tendo sido lavrado com base em escritura de justificação falsa e ineficaz, haverá de ser cancelado nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Código de Registo Predial (e, como tal, cancelados todos os registos deste dependentes);

               XXVI – quanto à pretenda ilegitimidade (substancial) para o Município de …propor a presente acção a fim de fazer valer a aquisição do direito de propriedade, por falta de autorização para o efeito da Assembleia Municipal, a Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro - no artigo 25.º, n.º 1, alínea i) - apenas estabelece que é da competência desta, em matéria de competências de apreciação e fiscalização “Autorizar a câmara municipal a adquirir, alienar ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e fixar as respectivas condições gerais(…)”, abrangendo, portanto, apenas as aquisições onerosas (só essas fazendo sentido sejam autorizadas e escrutinadas pela Assembleia Municipal).

O raciocínio é claro, estruturado, fundamentado na lei e na prova produzida.

A primeira Ré, todavia, e em termos de Direito (no mais já se decidiu quanto às suas discordâncias relativas à matéria factual apurada), vem - nas suas Alegações - insistir em dois pontos que importa abordar, verificando a bondade dos seus argumentos.

Em causa:

            - por um lado a necessidade de autorização da Assembleia Municipal para que um Município adquira um prédio por usucapião, o que retiraria legitimidade substantiva ao Autor para intentar a presente acção;

            - por outro, a ausência de factos alegados e provados quanto à inversão do título da posse por parte do Autor, para permitir o início do prazo para usucapir.

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Como pano de fundo temos os institutos da Posse e da Usucapião[10].

“A posse do direito de propriedade, ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde à sua actuação : é o que se chama usucapião”[11]: eis o artigo 1287.º do Código Civil, que define o que é a usucapião, a figura jurídica que está em causa no presente litígio e que impõe uma apreciação que a enquadre, para permitir conclusões sólidas.

Menezes Cordeiro, aponta - com pertinência – que a definição deveria ser corrigida, porque “não se possuem direitos, mas sim coisas”, definindo este instituto, como “a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei”[12].

Puig Brutau define-o como “a aquisição do domínio ou de outro direito real susceptível de posse, mediante o uso da coisa como se fosse própria durante o tempo fixado pela Lei”[13], sublinhando Luís Carvalho Fernandes[14] que a “aquisição por usucapião é (…) um efeito da posse reiterada de um direito real”[15].

Acresce aqui dizer – e este é um factor decisivo – que a “usucapião determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida”[16], uma vez que “’o direito’ que se adquire é originário, ‘novo’ neste sentido. Pois a sua causa é a posse”[17] [18]: ou seja, “o direito usucapido surge ex novo na esfera jurídica do possuidor, independentemente e apesar do titular anterior, que se extingue por incompatibilidade, uma vez corrido o prazo legalmente exigido”[19] e, por isso - como assertivamente concluía Oliveira Ascensão, o “novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo”[20].

E esta aquisição é originária porque decorre do uso do bem (e da falta dele…): a propriedade só é protegida se é exercida e, no caso da usucapião, só o é por quem dela beneficia (“A aquisição originária de um direito real reclama publicidade, de forma a proteger o interesse do verdadeiro titular. Nas palavras da lei (cfr. art. 1262.º), a posse é pública quando puder ser conhecida pelos interessados; a posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade (cfr. art. 1263.º, al.a)), isto é, à vista de toda a gente. Em ambos os casos, embora não apenas nestes, a publicidade é feita através da posse”[21]).

Jose Antonio Alvarez-Caperochipi assinala que a “usucapião é um meio de identificação (…) da propriedade e dos direitos reais pela concatenação de dois elementos”[22]: “a posse a título de proprietário e o tempo”[23], podendo definir-se como  “uma investidura formal mediante a qual uma posse se transforma em propriedade. É, pois, algo mais que um mero meio de prova da propriedade ou um mero instrumento ao serviço da segurança do tráfego jurídico, é a identidade mesma da propriedade como investidura formal ligada à posse”[24], assumindo assim duas funções particularmente relevantes, assim descritas por José Alberto C. Vieira:

                        - uma função consolidativa da situação fáctica em que as coisas se encontram, sempre que o possuidor usucapiente não é o titular do direito a que a posse se reporta”, que se traduz num papel regularizador na ordem jurídica, dando azo a que a exteriorização de um direito através da posse possa vir a consolidar-se com a aquisição do direito exteriorizado e evitando a multiplicação de actos de disposição feridos de ilegitimidade, cuja nulidade poderia ser arguida a todo o tempo (art. 286º), com a forte insegurança jurídica daí decorrente”;

                        - e uma função probatória “permitindo ao possuidor titular do direito real de gozo provar este por um facto jurídico diverso daquele através do qual o adquiriu”[25] (carregados nossos).

 

Na síntese de Fernando Pereira Rodrigues, a usucapião é, pois, “a constituição facultativa do direito de propriedade, ou de outro direito real de gozo, a favor de quem detenha a correspondente posse, durante certo lapso de tempo, em determinadas condições, dentro dos limites previstos na lei e por via de triunfante invocação.

A usucapião pressupõe a verificação, em termos gerais, dos seguintes requisitos:

               - Uma posse – com “corpus” e com “animus possidendi”;

               - Uma posse à semelhança do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo;

               - Uma posse prolongada – durante relevante espaço de tempo, maior ou menor, consoante o bem possuído seja imóvel ou móvel, e atentas as características que aquela revista;

               - Uma posse vencedora – que aniquile ou restrinja o eventual direito de outro titular do bem”[26].

 

Há ainda acrescentar um outro pressuposto, lembrado por Durval Ferreira, “resultante do seu conteúdo normativo e da sua razão de ser. Qual seja o de que “ao titular do direito que vai ser aniquilado (ou restringido parcialmente) pelo direito originado por usucapião lhe possa ser imputável a inércia de não ter reivindicado a restituição da coisa ao possuidor” (dormientibus non sucurrit jus)”[27]: é por isso que, por exemplo, Santos Justo, afirma que “o usucapiente adquire o seu direito não por causa do direito do proprietário anterior, mas apesar dele”[28].

 

É, pois, neste enquadramento, que se pode perguntar se há algum obstáculo a que o Estado possa ser sujeito activo da usucapião, ou seja, se pode usucapir bens de privados.

 

O Código Civil de Seabra, tinha um artigo - o 516.º - que, expressamente, dizia que o “estado, as camaras municipaes e quaesquer estabelecimentos publicos ou pessoas moraes, são considerados como particulares, relativamente à prescripção dos bens e direitos susceptíveis de domínio privado”, sendo que essa norma não passou qua tale para o Código Civil vigente.

Mas apenas por desnecessidade e redundância, porque nenhuma especificidade têm estas entidades que as coloque de fora da possibilidade de usucapir, motivo pelo qual o artigo 1289.º, n.º 1, dispõe que a “usucapião aproveita a todos os que podem adquirir”.

 

A questão coloca-se, portanto, a montante: se têm possibilidade de ter posse, têm possibilidade de usucapir.

E, como se tem por evidente, o Estado pode possuir[29].

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Ultrapassada esta questão de saber se o Município (enquanto Estado em sentido amplo) pode usucapir, é também o momento de verificar se, para o fazer, necessita de autorização da Assembleia Municipal.

A Recorrente interpreta o artigo 25.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro (acima transcrito), no sentido de que compete à Assembleia Municipal, sob proposta da câmara municipal, “autorizar a câmara municipal a adquirir, alinear ou onerar bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG, e fixar as respectivas condições gerais(…)”, aqui incluindo a aquisição por via da usucapião.

Sobre esta questão, o Tribunal a quo expressamente referiu entender “que a aquisição aqui prevista se trata de aquisição onerosa, só essa fazendo sentido seja autorizada e escrutinada pela assembleia municipal. Nenhum sentido faria querer conter aí a aquisição originária, que nenhum encargo traz para a autarquia, pelo que a argumentação da 1ª Ré não pode proceder”.

A Recorrente discorda e reforça, em sede de alegações, a ideia de que “em rigor, a usucapião não é uma aquisição gratuita. A usucapião, sendo uma forma de aquisição originária, destina-se a prover à ausência do título aquisitivo. A génese do acto translativo da propriedade pode, pois, ser onerosa (v.g. contrato de compre a venda) ou gratuita ( v.g. partilha por morte).

Apenas para efeitos fiscais, o legislador ficcionou a usucapião como transmissão gratuita de bens. Coisa diferente é, como se disse, o negócio que está na sua génese e cuja ausência de título a usucapião visa suprir, que tanto pode ser oneroso como gratuito”.

E prossegue, acrescentando que “não resultou dos factos provados que em causa estivesse uma aquisição gratuita” e que “o que vem alegado pela autora até se infere” que “na base da usucapião estaria (…) uma permuta que não veio a ser formalizada. Era, pois, uma transmissão onerosa”.

Daqui retira a Recorrente, que existe uma ilegitimidade substantiva do Município, gerando a nulidade do seu acto e implicando a absolvição do pedido.

 

Quanto a este ponto, o Autor-Recorrido concordando com o decidido, sublinha que o normativo citado se reporta “às situações de aquisição, alienação ou oneração de bens imóveis de valor superior a 1000 vezes a RMMG (Remuneração Mínima Mensal Garantida), e não à aquisição originária daqueles”, assinalando que “Diversamente do que acontece em qualquer das modalidades de aquisição derivada, que não são constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas do mesmo, a aquisição originária por usucapião constitui um efeito da posse reiterada de um direito real, nomeadamente do direito de propriedade, e opera a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida”.

 

Não assiste razão à Recorrente, nem o seu entendimento faz qualquer sentido.

O aludido artigo 25.º, n.º 1, alínea i), visa controlar e fiscalizar o assumir de encargos financeiros ou a afectação de recursos financeiros, por parte do Município (e, daí, o “adquirir, alinear ou onerar bens”) e, portanto, apenas aquisições derivadas, onerosas.

Ora, a usucapião é - como vimos - uma aquisição originária de património em que essas exigências se não fazem sentir

Repare-se, por outro lado e só para referir dois exemplos, que em situações relativamente semelhantes como as que foram julgadas nos processos que deram origem aos Acórdãos STJ 07/06/2018 (Processo n.º 2592/16.3T8SNT.L1.S1-Maria da Graça Trigo), 05/05/2020 (Processo n.º 12708/17.7T8PRT.P1.S1-Fernando Jorge Dias, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/09/2020_ecli_1270817.7_t8prt.p1.s1.pdf) a questão nem sequer foi colocada em nenhuma das instâncias.

Aliás, a Recorrente, pretendendo fugir a esta conclusão óbvia, chega a fazer afirmações carecidas de sentido, como de que na usucapião a “génese do acto translativo da propriedade pode, pois, ser onerosa (v.g. contrato de compre a venda) ou gratuita (v.g. partilha por morte)”.

Não! Na usucapião não há acto translactivo, seja ele contratual ou sucessório, não tem negócio na génese: há uma aquisição originária e gratuita, que deriva da posse. Apenas[30].

Como refere o Juiz Conselheiro Silva Gonçalves no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2017 (Processo n.º 460/11.4TVLSB.L1.S2), a “usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido”.

 

Assim sendo, assenta-se em que o Autor não tinha que pedir qualquer autorização prévia à Assembleia Municipal, nada obstando, por esta via, à invocação da usucapião por si feita.

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Resta saber se a invocação foi feita com sucesso.

Já sabemos que a usucapião faz com que alguém adquira um bem sobre o qual exerce posse publicamente, como se proprietário fosse (quando se reporta ao direito de propriedade, claro), durante um largo período de tempo e perante uma total inacção/desinteresse/apagamento do proprietário.

 

Como diz lapidarmente Fernando Pereira Rodrigues, a usucapião não pode ser vista como um ataque ao direito de propriedade, mas antes como um tributo à posse, tanto assim que apenas opera na condução de se verificar uma posse de longa duração, exercida contra quem, embora titular do direito de propriedade, se colocou em relação a ela numa posição de inércia, deixando que outrem lhe desse uso, conferindo-lhe função social e económica mais relevante”[31].

Tudo começa, assim, pela exteriorização dada pela posse: a usucapião baseia-se numa situação de posse”[32], pelo que se começa por exigir a posse da coisa[33] nos termos de um direito real de gozo (artigo 1287.º do Código Civil e os artigos 1316º - respeitante à propriedade; 1417.º, n.º 1 – respeitante à propriedade horizontal; 1440.º - respeitante ao usufruto; 1528.º - respeitante à superfície; e 1547.º, n.º 1 – respeitantes às servidões prediais) - a chamada “posse boa para a usucapião”[34] - sendo que, para poder conduzir à usucapião exige-se uma posse pública e pacífica, sendo por isso a posse oculta ou violenta inidónea para a usucapião[35], como resulta dos artigos 1297.º (quanto a imóveis) e 1300.º, n.º 1, do Código Civil (quanto a móveis).

 

E isto vale para particulares, para pessoas colectivas e para o Estado.

Ou seja, se o Estado (incluindo uma autarquia local) tem a posse de um terreno e sobre ele actua publicamente como se proprietário fosse, durante largo período de tempo, sem qualquer reacção do proprietário (registal, por exemplo), está exactamente na mesma situação que um qualquer particular que tenha a posse de um terreno e sobre ele actue como proprietário, sem reacção do proprietário, durante o mesmo largo período de tempo.

 

Em face do já citado artigo 1289.º, n.º 1, do Código Civil, a usucapião aproveita, sem distinções, a todos/as os/as que podem adquirir[36], pelo que, o poder potestativo de usucapir (como lhe chama José Alberto C. Vieira[37]) é simplesmente “atribuído ao possuidor que tenha uma posse boa para usucapião e haja mantido a mesma ininterruptamente durante o prazo estabelecido. O exercício deste poder, que está unicamente dependente da vontade do seu titular, ocorre com a invocação da usucapião”[38], não havendo razão curial para fazer qualquer diferenciação, pelo que, dentro da capacidade de gozo do Estado e outras entidades públicas, nada impede o “ingresso de bens particulares no domínio do Estado e das Pessoas Coletivas Públicas através da usucapião”[39].

J.Dias Marques afirma-o expressamente, no sentido de nada obstar a que, nesse quadro da capacidade de gozo, “venham elas a ter a autoria da posse prescricional ou a adquirir ou perder direitos por via de aquisição”[40], concluindo, mais à frente, que “ao Estado não está vedada a aquisição do direito de propriedade por prescrição aquisitiva (usucapião), praticando actos de posse susceptíveis de a ela conduzir”[41].

Por fim, Fernando Pereira Rodrigues, é ainda mais expressivo, quando afirma que “pode verificar-se o ingresso de bens privados no domínio público através de usucapião se tiver havido uma convergência de actos administrativos que revelem a intenção de destinar os bens ao uso público. Designadamente o Estado e as pessoas colectivas de direito público podem adquirir bens particulares através da usucapião.

Quer dizer: sobre as coisas do domínio privado das pessoas e entidades privadas podem as Pessoas Colectivas Públicas exercer posse e beneficiar da usucapião, quer as destinem ao domínio privado dessas Pessoas, quer as destinem ao domínio público, como também sobre as coisas do domínio privado dessas mesmas Pessoas Colectivas podem os particulares exercer posse e beneficiar da usucapião”[42].

 

O que é necessário, portanto, é lograr ter “uma posse boa para efeito de usucapião”[43], a qual tem de se revelar, desde logo, a partir do momento da inversão do título de posse (que “tem que consistir numa oposição expressa através de atos positivos (materiais ou jurídicos), inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como proprietário) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os atos se opõem”[44]).

É a partir deste momento, desta inversão, da publicidade e visibilidade desta actuação depois prolongada no tempo, que se conseguem justificar as gravosas consequências da usucapião e retirar-lhe qualquer sombra de arbitrariedade, pois esta só se consolidará se a posse sobre o bem for verdadeiramente demonstrativa do exercício desse poder: usando as palavras de Paula Costa e Silva, podemos dizer que “a posse, pela sua natureza, mais do que supor comportamentos significativos integrados por símbolos supõe comportamentos não integrados por esses símbolos. A posse não vive de palavras, mas de actuações, conforme resulta claramente, dos artigos 1251.º a 1263.º, alínea a). Sabemos quem tem posse das coisas não por aquilo que alguém nos diga, mas antes por aquilo que vemos. O que equivale a dizer que é da natureza das coisas que o comportamento significativo por excelência, na posse, não seja a declaração integrada por signos, mas o comportamento concludente”[45].

O poder de facto (corpus) consolida-se assim como uma acção sobre a coisa disputada (ou sua parcela na zona de disponibilidade do interessado), com determi­nada estabilidade condizente com a afectação funcional concreta do bem (nomeadamente se de utilização esporádica ou precária se tratar).

A chamada “intenção de domínio” (animus), vem-se a inferir do próprio modo de actuação ou da utilização que o mesmo interessado dará a essa mesma coisa ou parcela, com referência aos poderes correspondentes ao exercício de um dado direito real.

Nesta lógica, os actos materiais praticados sobre um imóvel poderão consubstanciar uma aquisição originária da posse por prática reiterada ou aquisição paulatina, na previsão do artigo 1263.º, alínea a], do Código Civil[46].

 

Ou seja - e transcrevendo um extracto do já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/05/2020 (onde se descreve o entendimento correcto nesta matéria) - o “Ac. do STJ de 20-03-2014, no proc. nº 3325/07.0TJVNF.P1S2 refere, “III-Quem exerce a posse em nome alheio só poderá adquirir o direito de propriedade se, entretanto, ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos arts. 1265 e 1290 do CC. IV- A eficácia da oposição referida no art. 1265 do CC depende da prática de atos inequivocamente reveladores de que o detentor quer atuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa. V- A oposição deve, além disso, ser dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detinha a coisa e tornar-se dela conhecida”.

Como refere o Acórdão do STJ de 09/02/2012 (Processo n.º 3208/04.6TBBRR.L1.S1), “A oposição que aquele preceito legal [art. 1265 do CC] reclama implica uma contraposição ostensiva revelada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica”. E acrescenta; “Mister é que o detentor de uma coisa, em nome alheio, se apresente perante aquele em nome de quem detinha com uma atitude ou um comportamento diverso daquele que havia assumido até esse momento, isto é, confrontando o titular do direito com um comportamento típico de quem passou a possuir sem qualquer constrangimento ou liberto de peias que tolhessem o uso, a fruição e a disposição plenas da coisa”. No mesmo sentido, o Prof. Santos Justo, in “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.ª edição, pág. 194. “Trata-se, portanto, de uma conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a ser detido a título de animus possidendi”, ou nas palavras de Orlando de Carvalho, citado por este autor, “a inversão do título de posse é uma inversão do animus: o animus não relevante transforma-se em animus relevante”).

 

É aqui que entra a última questão que falta abordar sobre as divergências assumidas pela Recorrente.

Afirma esta última que o Auto apenas alegou o que consta nos artigos 12.º e 13.º da Petição Inicial e que, portanto, quanto à inversão do título da posse apenas seria referido que estavam a ser entabuladas negociações com vista a uma eventual permuta com a segunda Ré: “Nada mais !!!”, chega a acrescentar.

E daqui conclui que nunca a acção poderia chegar a proceder e ser validada a usucapião a seu favor.

Mas, pura e simplesmente, a sua asserção não corresponde à realidade.

Significativamente, a primeira Ré e ora Recorrente omite o que consta descrito nos artigos 16.º a 19.º da Petição Inicial onde se refere:

16º

Com efeito, a partir de meados dos anos 80, o Autor inverteu o título da sua posse e passou a comportar-se como verdadeiro proprietário do imóvel, sem qualquer oposição da 2.ª Ré.

17º

A partir de data que não consegue precisar, mas certamente na primeira metade da década de 80, o Autor passou a assumir-se não apenas como mero possuidor do imóvel, mas como seu verdadeiro proprietário, limpando, vedando e cuidando do mesmo, bem como reagindo contra ações materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse.

18º

Esta posse manteve-se até aos dias de hoje, nos seus mesmíssimos termos, apesar da celebração da escritura e justificação ora impugnada.

19º

Certo é que, com exceção da escritura em crise, a 1.ª Ré nunca praticou qualquer ato contrário à posse do autor”.

Daqui resulta, portanto, que o Autor teve o cuidado de factualizar que a partir da primeira metade da década de 80, passou a assumir-se não apenas como um mero possuidor ou detentor do imóvel (em nome da segunda Ré), mas já como seu verdadeiro proprietário (passando, assim, a possuir em nome próprio), indicando factos em que concretiza essa actuação e o tempo em que ela passou a ocorrer: “limpando”, “vedando”, “cuidando do mesmo”, “reagindo contra acções materiais de terceiros que pudessem pôr em causa a sua posse”[47].

E, sublinhe-se esta inversão da situação que existia (materialmente o terreno esteve sempre sob a alçada do Município, apesar da venda feita à segunda Ré que nunca o utilizou, nem teve capacidade e vontade de utilizar), foi feita perante aquela contra quem esse título foi invertido (a dita segunda Ré, que tinha o registo predial a seu favor, na altura), a qual o aceita e confirma na sua Contestação (9º - Tem sido o Município de …, desde a aquisição do prédio por parte da …, que tem, de facto, administrado e cuidado do imóvel, do qual nunca perdeu o domínio de facto. ; 10º Isto em face da incapacidade da … destinar o imóvel para o propósito para o qual foi adquirido. ; 11º A partir de meados dos anos oitenta, o Município assumiu, verdadeiramente, as vestes de proprietário do imóvel, que passou inclusivamente a incluir nos planos municipais.).

A questão da permuta que esteve em equação entre Autor e segunda Ré tem uma explicação que em nada afecta nem a conclusão pela inversão do título da posse, nem a actuação do primeiro relativamente ao terreno: é que, independentemente de ter passado a agir como proprietário e de a proprietária o saber, havia que resolver a questão formal de o registo de propriedade continuar em nome desta última e, daí, o ter havido conversas nesse sentido. Sem pressas, porque não havia discordâncias.

 

A alegação da primeira Ré faz, pois, pouco sentido pois a factualidade respeitante à inversão do título da posse consta provada na Sentença (Factos 10., 11., 12. e 14.) e consta-o, porque o Autor a alegou.

 

Assim, não se suscitam dúvidas quer sobre a inversão do título da posse, a partir de meados da década de 80 do século passado (o que é reconhecido pela própria proprietária, à data), com comportamentos expressivos e concludentes (como ocorre com a limpeza do terreno, a sua vedação e mesmo a sua inclusão nos Planos de Urbanização da zona), o que foi feito de forma pública e sem a oposição visível de quem quer que seja (nomeadamente da primeira Ré).

 

Neste contexto, e face ao tempo decorrido, desde meados/final do ano 2000 que o Autor consolidou o prazo para a sua aquisição por usucapião do terreno em causa : a sua boa fé é evidente e o tempo decorrido também[48]. Este, “encurta-se (…) com a existência de justo título e boa fé, pela maior aparência de legitimidade com que o título e a boa fé rodeiam a posse”[49], pois, seguindo Gayo, “a propriedade das coisas não há-de ficar na incerteza demasiado tempo”[50]: são os interesses de ordem pública[51] que fazem justificar este instituto jurídico, como sublinha Rodrigues Bastos[52] e que se ligam inseparavelmente à certeza e segurança jurídicas[53], que Durval Ferreira melhor concretiza, no “assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade”[54].

 

A usucapião, pode dizer-se, é um espelho do que é viver em sociedade, com o que isso implica em termos de inter-relacionamentos, adaptações e confiança. Para gerar segurança. Como diz João Manuel Coelho Baptista, a “dúvida sobre a titularidade ou identidade dos direitos sobre as coisas é algo com que a sociedade humana não convive bem, já que, as relações sócio-económicas devem ser tão estáveis e claras quanto possível e como se sabe a dúvida cria instabilidade e indefinição.

A indefinição criada pela dúvida sobre matéria tão relevante como seja o estatuto dos bens, é algo que, dificilmente, a dinâmica sócio-económica em que os mesmos se integram, permitiria que subsistisse a longo prazo, pois a estabilidade de que as relações sócio-económicas carecem para progredirem não se compatibiliza facilmente, ou de todo, com indefinições ad aeternum relativamente à titularidade ou identidade dos direitos sobre as coisas”[55].

Lucidamente, Luís Filipe Pires de Sousa conclui que subjacente “a esta orientação está a prevalência de interesses ligados à estabilidade e segurança jurídica que conduzem à consideração de que não faz sentido que, perante um longo período de tempo, se eternizem situações de incerteza pelo que se permite a realização das expectativas criadas à luz de uma prolongada configuração factual. Em suma, o sistema jurídico admite que certas situações de facto adquiram tutela jurídica e possam dar lugar ao reconhecimento de direitos em homenagem a interesses de natureza social e económica que acolhe como relevantes”[56].

 

Permitindo a invocação da usucapião, o legislador fomenta a segurança jurídica, “harmonizando o direito com a realidade física”[57].

 

Foi essa harmonia que saiu como resultado deste processo:

                       - por um lado, fazendo corresponder a realidade (a propriedade do terreno por parte do Autor) ao Direito (estava registado a favor da primeira Ré e, antes, da segunda), no que à propriedade do terreno concerne;

                       - por outro, terminar com uma situação de desconformidade gerada por um comportamento da segunda Ré que procurou – sem fundamento – registar a seu favor uma aquisição originária, por usucapião, através de uma justificação judicial baseada em declarações falsas.

 

O Tribunal a quo decidiu bem todas as questões que lhe foram colocadas, de forma clara, estruturada e (bem) fundamentada.

A Sentença será, pois, confirmada in totum.

 

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DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação, confirmando a Decisão recorrida.

Custas a cargo da Recorrente.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

***

Lisboa, 26 de Abril de 2022

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Pires de Sousa

 

 

 

José Capacete

 



[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2] António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 213.

No mesmo sentido, Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 762, reforçam a ideia de ser “verdadeiramente impressionante a frequência com que, em sede de recurso, são invocadas nulidades da sentença ou de acórdãos, denotando um número significativo de situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter uma correta apreciação do mérito da causa, mas de «anular» a toda a força a sentença com que foi confrontada”. E acrescentam, que é “claro que certas decisões poderão estar eivadas de nulidades, mas ainda assim seria bom que se interiorizasse que, atento o disposto no art. 665º, nº 1, que regula os poderes da Relação no âmbito do recurso de apelação, a sua verificação não determina necessariamente a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, antes implica a substituição imediata por parte da Relação, a não ser que alguma questão tenha sido considerada prejudicada e haja necessidade de recolher outros elementos(…)”.

 

[3] Expressão usada no Acórdão da Relação de Guimarães de 05/04/2018 (Processo n.º 1716/17.8VNF.G–Eugénia Cunha).

[4] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 193 a 210.

[5] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 200.

[6] António Abrantes Geraldes, Recursos…, páginas 201 a 205.

[7] António Abrantes Geraldes, Recursos…, páginas 206-207.

[8] Em concreto sobre estas testemunhas, o Tribunal a quo refere ainda, com interesse, o seguinte: “Foram também ouvidas testemunhas ligadas aos serviços da Câmara Municipal de ….

Assim, foi ouvida a testemunha AF que reuniu com a 1ª R. por uma ocasião, tendo conhecimento do objecto dos autos por ter estado directamente ligado à situação.

Esta testemunha, que prestou um depoimento exaustivo e revelador de conhecimento directo explicou que a A. tem direito legal de preferência na transmissão de imóveis nas áreas de reabilitação urbana e o seu departamento é quem aprecia as situações relacionadas com o exercício do direito de preferência. Deste depoimento resultaram provados os pontos 15, 16 e 17. Conforme explicou, o processo deste imóvel chegou-lhe às mãos para apreciação do direito de preferência pois estava em vias de ser alienado e a testemunha, estranhando, solicita informação sobre a titularidade do imóvel tendo sido transmitido que o mesmo tinha sido vendido à 2ª R. para aí construir a sua sede mas como tal não havia sucedido, o imóvel mantinha-se na posse do município. Explicou que esse imóvel sempre esteve abrangido pelo plano de urbanização do …, sempre tendo sido a A. quem o administrou e tratou.

Esta testemunha explicou que era comum à época o Município transmitir os terrenos quase a custo zero vinculando os adquirentes a um fim e como os projectos têm de dar entrada na Câmara esta por essa via controlava se estava a ser cumprido o fim a que se destinava. Neste caso a 2ª R. nunca teve condições para aí fazer erigir a sua sede, tendo resultado pois provado o ponto 9 da matéria de facto. Esclareceu que a 2ª R. nunca chegou sequer a entrar na posse do imóvel pelo que a câmara continuou a administra-lo, esclarecimento que levou à prova do ponto 29 da matéria de facto. No imóvel está projectada a construção de casas de renda acessível, assim e para esse efeito fez o pedido do cadastro do imóvel e ficou a saber que o Patriarcado nunca tinha autorizado a 2ª R. a construir no terreno, esta não tinha meios para o fazer. Não tem qualquer conhecimento de intenção da 2ª R. querer proceder à venda do imóvel. Deu conta de iniciativas de particulares averiguarem junto da secção do urbanismo, tentando saber o que poderia ser construído ali. Este esclarecimento vai de encontro ao explicado pela testemunha AP (prova dos pontos 19, 20 e 21). Assim e quando viu o processo de apreciação para o exercício do direito de preferência, identificou o comprador que era uma empresa de construção civil, entrou em contacto com a mesma e foi essa entidade que o esclareceu que se estava à espera do registo de propriedade por via de uma escritura de usucapião. Esta circunstância também levou o tribunal a considerar provado o ponto 18.

Após tal conhecimento contactou o Cartório Notarial de …onde havia sido pedida a escritura, a autoridade tributária, o patriarcado e o advogado da 2ª R.. No Cartório Notarial foi explicado que quem requeria a realização da escritura era uma cliente não habitual e que tal lhe suscitou muitas dúvidas e pediu documentos adicionais aos que a 1ª R. trazia. Mais tarde informou esta testemunha que não lavraria a escritura. tinha lá ido solicitando a realização da escritura de justificação. Veio a saber mais tarde que a escritura foi mesmo lavrada num Cartório Notarial em ….

Houve então reuniões entre as três partes. Nessas reuniões veio a ser apurado que foram registadas duas penhoras sobre o imóvel (garantia de mais de um milão de euros), porque à proprietária registada tinha dívidas superiores a esse montante. Esclareceu que os contactos que houve com a 1ª R não poderiam ser para negociar qualquer permuta que só poderia ser negociada com a 2ª R. e foi em contactos com o patriarcado que essa questão se colocou. Estes esclarecimentos levaram à prova dos pontos 25, 26.

Esta testemunha esclareceu que o conhecimento directo da situação adveio-lhe a partir de 2011, data em que começou a trabalhar para a Câmara. Esclareceu que a reunião com o patriarcado a fim de se formalizar a compra pela A. à 2ª Ré, ocorreu em finais de 2017, princípios de 2018, pelo que considerou-se provado os pontos 29 e 30 da matéria de facto.

Esclareceu que pelo menos a partir de 2011, sempre foi feita a limpeza do terreno pela A., tendo de igual modo esclarecido que aquele terreno encontrava-se rodeado por terrenos da A. pelo que a limpeza se fazia “a eito”. Foi peremptório ao afirmar que uma eventual permuta nunca seria feita com a 1ª R.

Confrontado com os e-mails juntos aos autos a fls.43 e 44 esclareceu que a questão da permuta seria para permitir levantar as penhoras deste imóvel, porque a A- sabia que nenhuma das RR. o faria.

Quanto à testemunha AG, jurista chefe de divisão de notariado da CM… desde Março de 2019, exercendo funções anteriormente igualmente como jurista mas na direcção municipal de gestão patrimonial, referiu que a primeira vez que foi confrontada com o nome da R. foi quando apareceu como vendedora do imóvel a propósito da notificação para exercer o direito de preferência. Esse processo não andou porque sabiam que esse prédio pertencia à 2ª R. e não tinha sido adquirido por ninguém. Contactaram a 2ª R. que confirmou desconhecerem a 1ª R. e afirmando que nunca aquele imóvel havia sido vendido a quem quer que fosse. Este depoimento corroborou pois o depoimento da anterior testemunha designadamente quanto aos pontos 15, 16 e 17 da matéria de facto.

Confirmou a reunião com representantes das RR.. A dado momento a 1ª R. assume existir execução fiscal que não podia pagar pelo que a A. disponibilizou-se mediante a declaração desta de que a escritura era inválida e a 2ª R. assumisse que não ia proceder a qualquer construção no imóvel, a identificar activos imobiliários que passariam para a 2ª R. para esta depois da recepção do terreno justificado, dar à 1ª R. para pagar as dívidas. Tal procedimento foi suscitado porque afirma que mesmo que a escritura fosse reconhecida como inválida, nunca voltaria para a CM… por causa das penhoras. Referiu mesmo que a CM… estava disposta a perder mais de um milhão de euros para reaver o imóvel sem quaisquer penhoras registadas. Este depoimento explicou os pontos 24, 25 e 26. Tal explicou os encontros e e-mails trocados entre as partes”.

[9] “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial” - Acórdão n.º 1/2008, de 04/12/2007 (Azevedo Ramos), Diário da República n.º 63, I série, de 31 de Março de 2008.

[10] Seguir-se-á de perto o que já se teve oportunidade de se escrever no âmbito do Acórdão desta Relação de 09/11/2021 (Processo n.º 163/20.9T8VLS.A-L1-7-decidido por este mesmo Colectivo).

[11] “Usucapião, etimologicamente, significa, precisamente, uma aquisição (capio) pela posse (usu)” (Durval Ferreira, Posse e Usucapião, Almedina, 2002, página 439), continuando, em face da definição legal, transcrita, a manter “indiscutível actualidade a clássica definição do jurisconsulto romano Modestino que ensinou consistir a usucapio na adjectio domini per continuationem possessionis temporis lege difinti” (Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, Universidade Lusíada, Lisboa, 1992, página 291.

[12] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1979, página 670; também, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, Almedina, 1997, páginas 128-131.

[13] Puig Brutau, Caducidad, Prescripción Extintiva y Usucapión, 3ª edición actualizada y ampliada, Bosch, 1996, página 12.

[14] Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, páginas 202 e 203.

               [15] Não “existindo no domínio dos direitos de crédito qualquer possibilidade de usucapião” (Mota Pinto, Direitos Reais -prelecções ao 4.º ano Jurídico de 1970-71, recolhidas por Álvaro Moreira-Carlos Fraga-, Almedina, página 89), uma vez que nestes, “ao contrário do que sobrevém nos direitos reais, não existe qualquer esfera de domínio sobre uma coisa, não existe, portanto, corpus. Os direitos de crédito não traduzem uma relação de soberania exclusiva de uma pessoa sobre uma coisa, como ocorre nos direitos reais, baseiam-se, antes, numa relação intersubjectiva que confere a faculdade ao credor de exigir do devedor uma prestação, de conteúdo positivo ou negativo (relação essa que não existe na usucapião!). Também não há animus juridicamente relevante, não há qualquer intenção jurídico-real (estamos no polo oposto ao da realidade)” (Luciana Ribau Lourenço, O Instituto da Usucapião: produto imutável o passado ou necessária reavaliação no presente, on line, Dissertação de Mestrado em Direito Civil, Coimbra 201, página 57 [consultado a 20/04/2022] disponível na internet em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/41804/2/O%20Instituto%20da%20Usucapi%C3%A3o_pdf.pdf.

               [16] Luís Carvalho Fernandes, Lições…, cit., página 207; Oliveira Ascensão, Direito Civil-Reais, 4.ª edição refundida, Coimbra Editora, 1983, páginas 294-295.

[17] Durval Ferreira, Posse…, cit., página 462.

[18] Com um entendimento distinto, embora apenas em termos dogmáticos, o recente Manual de Direitos Reais, de José Luís Bonifácio Ramos (2.ª edição, AAFDL, 2020, páginas 177-184) defende que se trata de um “tertium genus aquisitivo”: “Também a identificamos na usucapião, dado que os seus requisitos, designadamente o decurso de período temporal e a prescrição positiva, revelam extrema dificuldade, senão mesmo impossibilidade, de a prefigurar enquanto aquisição originária. Na verdade, além da verificação da posse, em detrimento da mera detenção, sequer basta o decurso do tempo para adquirir o direito real correspondente. Será necessário invocar, potestativamente, o direito, atendendo às regras da capacidade de exercício, ao invés do simples uso da razão, susceptível de fundar a aquisição por ocupação ou por achamento. Acresce que nem toda a posse será boa para usucapião. Também nem todos os direitos de gozo são adquiríveis por usucapião, de acordo com o artigo 1293º CC. Ademais, interessa referir que os efeitos aquisitivos da usucapião não implicam a correlativa extinção de outros direitos, entretanto constituídos sobre a mesma coisa, ao contrário do que sucede na ocupação ou no achamento. Destarte, os direitos menores que, eventualmente, incidam sobre a coisa e subsistam aquando do momento aquisitivo, podem caracterizar a usucapião, enquanto figura intermédia entre uma aquisição originária e uma aquisição derivada” (ob. cit., página 179).

[19] Penha Gonçalves, Curso…, cit., página 295.

Assinalando que só será um facto aquisitivo originário, “quando beneficia um possuidor formal, permitindo-lhe justamente constituir a seu favor um direito que até aí não existia na ordem jurídica”, vd., José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, página 432.

[20] Oliveira Ascensão, Direitos Reais…, cit., páginas 294-295.

[21] Luciana Ribau Lourenço, O Instituto…, cit., página 45.

[22] Jose Antonio Alvarez-Caperochipi, Curso de Derechos Reales, I, Propiedad y Posesion, Civitas, 1986, página 147.

               [23] Jose Antonio Alvarez-Caperochipi, Ob. cit., página 149.

[24] Jose Antonio Alvarez-Caperochipi, Curso…, cit., página 143.

[25] José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, cit., páginas 430-431.

               [26] Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião-Constituição Originária de Direitos Através da Posse, Almedina, 2008, páginas 12-13.  

[27] Durval Ferreira, Posse…, cit., páginas 436 e 451-452.

[28] Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007, página 273.

[29] Ao contrário do que sucede na expropriação (em que o Estado não tem a posse do bem e surge com ius imperii, em nome do interesse público, ficando com o bem do particular e pagando por ele uma justa indemnização), no caso da usucapião, o Estado (nos mesmos termos que qualquer particular e sujeito às mesmas regras) há muito tempo que tem uma posse e com características específicas e necessárias (pública, pacífica, de boa ou de má-fé, por tempo determinado).

[30] A Recorrente chega mesmo a dizer que do que o Autor alega a aquisição até teria uma base onerosa, por este se ter referido a uma permuta não formalizada, o que não corresponde nem ao que o Autor alegou, nem que provado resultou, nem sequer ao que a própria segunda Ré defendeu.

[31] Usucapião…, cit., página 14.

[32] STJ 24/06/2010 (Processo n.º 106/06.2TBFCR.C1.S1-Alberto Sobrinho).

               [33] E quando falamos em posse, falamos numa situação de facto, materialmente estruturada, de corpus, caracterizada legalmente como “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (artigo 1251.º e que, nos termos do artigo 1258.º “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”.

                    [34] José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, cit., página 409; Carvalho Fernandes, Lições…, cit., página 203.

[35] Luís Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, 2009, página 234; Também, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, cit., página 676; Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1967, página 112.

[36] “Quanto às pessoas colectivas, deve entender-se que podem aproveitar da usucapião todas as que tenham capacidade de gozo” – Miguel Ricardo Machado Oliveira, A Posse na Doutrina e na Jurisprudência, Portugal Jurídico Económico, Porto, 1981, página 97.

[37] Direitos Reais, ob. cit., páginas 427-428.

[38] Ob. loc. cit..

[39] Luciana Ribau Lourenço, O Instituto…, cit., páginas 56-57; expressamente, também, Luís Menezes Leitão, Direitos Reais, cit., páginas 302-303.

[40] Prescrição Aquisitiva, Volume I, Lisboa, 1960, páginas 130-131.

[41] Ob. cit., páginas 136-137.

[42] Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião…, cit., páginas 34 e 35.

[43] Expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2014-12-17 (Processo nº 1313/11.1TBCTB.C1.S1-Maria Clara Sottomayor) e repetida no de 05/05/2020 (Processo n.º 12708/17.7T8PRT.P1.S1-Fernando Jorge Dias), este último disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/09/2020_ecli_1270817.7_t8prt.p1.s1.pdf.

[44] STJ 2014-12-17 e 05/05/2020, citados na nota de rodapé que antecede.

[45] Paula Costa e Silva, Posse ou Posses?, Coimbra Editora, 2004, página 47.

[46] Vd., por todos, Orlando Carvalho, Introdução à Posse, cit., Revista de Legislação e Jurisprudência, 123.º e 124.º, páginas 354-355 e 259-261.

[47] Estes eram os factos que constituíam a causa de pedir da acção, no que respeita à usucapião (“se o autor invocar a usucapião, formam a causa de pedir os factos atinentes à posse do direito real de gozo e ao tempo por que ela perdurou, nos termos do art. 1287.º do CC, sendo complementares os factos qualificados nos artigos 1294.º ss.” – Nuno Andrade Pissarra, Das Ações Reais, Volume II, Imprensa FDUL, 2021, página 1901). 

[48] Repare-se que a boa fé e o justo título não são “elementos de usucapião, mas apenas aparências de legitimidade que aconselham a redução ou o encurtamento do tempo para a investidura formal da posse” (Jose Antonio Alvarez-Caperochipi, Curso…, cit., página 149; também, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, cit., página 407), relevando apenas os caracteres da posse (titulada, de boa ou má fé, etc.) apenas quanto ao prazo (assim, STJ 05/03/2009, Revista n.º 148/09-2.ª Secção - Santos Bernardino - disponível em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=28776&codarea=1).

Também, Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, cit., página 112).

[49] Jose Antonio Alvarez-Caperochipi, Curso…, cit., página 149.

[50] Puig Brutau, ob. cit., página 12.

[51] Este tem sido também o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça:

                   - a “usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse” – STJ 01/03/2018 (Processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1.S2-Rosa Tching);

                   - “a usucapião serve também, além do mais, para «“legalizar” situações de facto ilegais» mantidas durante longos períodos de tempo (…) inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa” – STJ 06/04/2017 (Processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1-Nunes Ribeiro).

[52] Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, II, Lisboa, 1988, página 63.

[53] "Uma consideração de certeza ou segurança jurídica, a qual exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando expectativas e se organizando planos de vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por antijurídicas" - Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Coimbra, 1987 (7.ª reimpressão), página 446.

[54] Durval Ferreira, Posse…, cit., página 440.

[55] João Manuel Coelho Baptista, A usucapião e o registo predial na sociedade da informação, a (in)alteração do epicentro da ordem jurídica imobiliária, Dissertação de Mestrado em Direito Civil, on line, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2018, página 46 [consultado a 20/04/2022], disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/38378/1/ulfd138265_tese.pdf .

E acrescenta: é “neste contexto, de falibilidade ou de imperfeição da ordem dominial definitiva, em que o direito se apresenta subtraído do poder de facto que lhe é inerente, que a posse se afirma com autonomia face ao direito, prosseguindo uma função que tende a ordenar o domínio provisoriamente, evitando por um lado a capitulação da ordenação dominial definitiva e por outro, trilhando o caminho para o seu reatamento, proporcionando a criação do próprio direito ex novo” (ob. loc. cIt.).

[56] Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1.ª edição, Coimbra Editora, 2011, página 62.

[57] Expressão usada por João Manuel Coelho Pereira (ob. cit., páginas 47, 70 e 141).

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