Processo n.º 68590/19.5YIPRT.L1
Tribunal a quo - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Cível de Mafra
Sumário:
I – Tendo
havido previamente à acção uma cessão de créditos, esta não faz parte da causa
de pedir, mas é uma condição da legitimidade da Autora (credora-cessionária).
II – O
pagamento, enquanto forma de fazer extinguir o direito da Autora, tem de ser
invocado como excepção na Contestação.
III – A
referência no acordo de cessão de créditos a um pagamento não imputado
expressamente ao crédito peticionado à Ré na acção, é irrelevante para o
processo se a Ré não invocar esse pagamento e o imputar à sua dívida.
IV – O
pagamento de uma dívida entre duas sociedades não é um facto notório, porque
não é do conhecimento extenso, difundido e comum das pessoas regularmente
informadas e com acesso aos meios normais de informação, nem revestido do
carácter de certeza, implicando o recurso a operações lógicas e cognitivas, ou a
juízos presuntivos.
Acordam
na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
I…, Lda.
intentou procedimento de injunção contra C…, Lda., a fim de obter a atribuição de força executiva
ao requerimento em apreço e pelo qual pretendia exigir o pagamento da quantia
global de € 12.613,25 (Capital: € 10.044,91; Juros de mora: € 2.268,34; Outras
quantias: € 300), alegando que esta última celebrou com S…, Lda. (empresa que
lhe cedeu o crédito em referência) um contrato de prestação de serviços, que
foi incumprido, não tendo sido feito o pagamento do preço estipulado na sua
integralidade.
Citada, a Requerida apresentou Oposição, sendo o processo distribuído como
acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de
contratos.
Na Oposição, a Requerida defende a anulação
de todo o processo e, consequentemente, a sua absolvição da instância, por
entender que o Requerimento injuntivo padece de ineptidão por incompatibilidade
substancial de causas de pedir.
O Tribunal a quo, por decisão de 17/03/2020 (da qual não foi interposto
recurso) decidiu:
-
quanto à eventual incompatibilidade de causas de pedir geradora de absolvição
da instância, considerar que não se verifica “qualquer nulidade
resultante de ineptidão do requerimento inicial, razão pela qual improcede a
invocada excepção”;
- conhecer de uma ineptidão
da petição inicial por falta de causa de pedir no que respeita ao pedido “despesas”
e, na sua decorrência, “declarar inviável o pedido de condenação em
300,00 € (trezentos euros), com o fundamento em “outras quantias”, por nulidade
adveniente da ineptidão da petição inicial – rectius, do requerimento de injunção -, em consequência de ausência
de causa de pedir, o que, nos termos dos artigos 186.º, n.º 2, alínea a),
577.º, alínea b), 196.º, n.º 1, 578.º, 278.º, n.º 1, alínea b) e 277.º, alínea
a), todos do Cód. Proc. Civil, determina a absolvição da R. da instância quanto
ao mesmo, o que desde já declaro”.
Realizada a audiência de Julgamento foi proferida Sentença, na qual se conclui com o
seguinte dispositivo:
“Pelo
exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente
condeno a R. a pagar à A. a quantia global de 10.044,91 (novecentos e dezoito
euros e oitenta e nove cêntimos), e bem assim nos juros de mora, calculados à
taxa comercial, desde a data de vencimento das facturas constantes a fls. 11 a
12 verso, ascendendo os vencidos à data da instauração da presente a 2.268,34
dois mil duzentos e sessenta e oito euros e trinta e quatro cêntimos)
Custas
da responsabilidade da R. - cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.”.
É desta
decisão que vem interposto recurso por parte da Ré C…, Lda., a qual apresentou
as suas Alegações, onde lavrou
as seguintes Conclusões:
I
- A, aliás douta decisão recorrida condenou a R., aqui Recorrente, à A. a
quantia global de 10.044,91€ (novecentos e dezoito euros e oitenta e nove
cêntimos), e bem assim nos juros de mora, calculados à taxa comercial, desde a
data de vencimento das facturas constantes a fls. 11 a 12 verso dos autos,
ascendendo os vencidos à data da instauração da presente a 2.268,34€ (dois mil
duzentos e sessenta e oito euros e trinta e quatro cêntimos).
II
- O peticionado pela A. baseou-se em contrato de cessão de créditos - junto aos
autos a fls. 13 e 13 verso - que celebrou com uma outra sociedade, a S…, Lda.,
o qual constituiu assim a causa de pedir e que foi junto aos autos pela mesma
A.
III
- Nos termos desse contrato a sociedade S…, Lda. cedeu à A. Créditos que,
supostamente, detinha sobre outras sociedades, nomeadamente, a R., aqui
Recorrente, C…, Lda.; a T… e a H….
IV
- Tais supostos créditos, nos termos também constantes do contrato, eram nos seguintes
montantes:
a)
10.044,91€ - o crédito detido sobre a R., aqui Recorrente, C…, Lda.;
b)
1.553,49€ - o crédito detido sobre a T…;
c)
8.905,50€ - o crédito detido sobre a H….
IV
- No entanto, também consta do texto do contrato em causa terem sido efetuados
dois pagamentos, sendo um no valor de 5.000€ e outro no valor de 2.500€, num
total de 7.500€.
V
- Pagamentos esses que são, de forma indistinta e indiscriminada, levados a
crédito de todas as três supostas devedoras, sem esclarecer quem os efetuou e
que, portanto, ficou liberada por tais quantias.
VI
- Em sede de audiência de julgamento também não foi feita qualquer prova de
quem realizou aqueles pagamentos.
VII
- Portanto e independentemente da alegação por parte da R., aqui Recorrente, do
pagamento, o Tribunal a quo estava obrigado a considerar e valorar aqueles
pagamentos que constam do documento que constitui a causa de pedir na presente
ação.
VIII
- Essa imposição decorre do disposto nos art.ºs 411.º; 412.º e 5.º, n.º 2, todos
do CPC, nos termos dos quais não carecem de alegação os factos notórios,
devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral, o juiz
deve realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias
ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de
que lhe é lícito conhecer e, ainda que, para além dos factos articulados pelas
partes, são ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem
da instrução da causa e os factos notórios.
IX
- Disposições essas que, assim, foram violadas pela sentença recorrida.
Acresce
ainda que,
X
- nos factos dados como provados não se inclui a concretização do montante
efetivamente devido pela R..
XI
- Ora, não estabelecendo a sentença como provado qual o montante de que a R.,
ora Recorrente, é devedora não a pode condenar a pagar uma quantia determinada.
XII
- Pelo que, por falta de fundamentação de facto, é a sentença nula, em
conformidade com o determinado pela alínea b), primeira parte, do n.º 1, do
art.º 615.º do CPC.
A
Autora I…, Lda. veio apresentar CONTRA-ALEGAÇÕES, onde concluiu que sentença
recorrida fez uma correcta e douta apreciação, ponderação e julgamento da
matéria de facto e de direito, não merecendo qualquer censura, pelo que deve
ser mantida nos seus precisos termos.
No
Despacho que admitiu o recurso, o Tribunal a
quo, no que concerne às arguidas nulidades refere que:
“Ao abrigo do que
determina o artigo 617.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil e porque a recorrente argui
ser a decisão proferida nula por falta de fundamentação nos termos da alínea b)
do n.º 1 artigo 615.º do mesmo diploma legal, cumpre afirmar não lhe encontrar
a signatária qualquer razão na medida em que a sentença encontra-se devidamente
discreteado o iter cognoscitivo e valorativo em que assentou o julgamento
realizado, estando identificados os meios probatórios dos quais se inferiu a
verificação ou não verificação da factualidade a conhecer nos autos, o que se
fez, naturalmente, por aplicação de juízos de valor; e bem assim foram
conhecidas todas as questões atempadamente suscitadas nos articulados.
Donde,
não padece a sentença em apreciação de qualquer nulidade, sendo que o acerto do
decidido competirá, naturalmente, ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa
avaliar”.
Questões
a Decidir
São as Conclusões
do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º
1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do
tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição
inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]),
sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
(artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo
qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu,
e na decorrência das Conclusões da Recorrente, há que verificar da existência
de duas invocadas nulidades e das consequências daí decorrentes:
I
- nulidade da Sentença por o Tribunal não se ter pronunciado sobre questões que
devesse ter apreciado (o “facto notório” que constituiria o pagamento efectuado
que consta referido na cessão de créditos) – artigo 615.º, n.º 1, alínea d) – conclusões
VII), VIII) e IX);
II
- nulidade da Sentença por falta de especificação de fundamento de facto que
justifica a decisão (não estabelecendo a sentença como provado qual o montante
de que a Ré, ora Recorrente, é devedora não a pode condenar a pagar uma quantia
determinada) – artigo 615.º, n.º 1, alínea b), primeira parte – vide conclusões
X, XI e XII).
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
de Facto
Releva
para a presente decisão a seguinte factualidade:
1.
Autora, Ré e S…, Lda. são sociedades comerciais.
2.
Em 2016, no exercício da sua actividade, a S…, Lda., procedeu, a pedido da Ré,
à prestação de serviços melhor identificados nas facturas de fls. 11 a 12
verso, pelos preços e nas condições aí melhor descritos[2].
3.
Acordaram as aqui partes que o pagamento seria efectuado na data inscrita para
tanto nos documentos acima referidos.
4.
Por escrito constante de fls. 13 e 13 verso, outorgado em momento anterior à
instauração da presente, a S…, Lda. declarou ceder à aqui Autora, os créditos
detidos sobre a Ré e contabilisticamente titulados pelas facturas referidas em
2..
Apreciação
da Matéria de Facto
O
artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o tribunal aprecia
livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção
que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para
a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em
que esta não pode ser dispensada.
Quando
uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto impõe-se-lhe
o ónus de:
-
indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente
julgados (sintetizando ainda nas conclusões);
-
especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo
ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa quanto a cada um
daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles.
A
Ré-Recorrente não cumpre este ónus misturando as questões nas suas Alegações e
Conclusões, concentrando-se na alegação das nulidades acima descritas.
Sempre
se dirá, todavia, para que não fique este Tribunal apenas por esta referência
formal, que em face da decisão proferida a 16/03/2020 (que conheceu das
excepções alegadas pela Ré na Oposição), perante o despacho que antecede a
Sentença sob recurso (que indeferiu a junção aos autos de determinados
documentos e a sua restituição à Ré[3])
e considerando a própria fundamentação da matéria de facto que o Tribunal a quo produziu[4]
(clara, objectiva, assertiva e sólida), sempre esta pretensão da Ré-Recorrente
estaria condenada ao insucesso, uma vez que nem a testemunha diz o que a
Ré-Recorrente pretende que diga (nunca a dita testemunha diz que a Ré entregou
aqueles valores para pagamento das
facturas em dívida), nem, ainda que o fizesse, essa matéria poderia ser
relevada uma vez que não foi alegada, podendo tê-lo sido (o que também foi dito
pelo Tribunal a quo).
Nestas
circunstâncias nada há a alterar à matéria de facto apurada.
as Nulidades invocadas
As
nulidades da decisão previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil (tal
como já ocorria com as previstas no artigo 668.º do anterior Código) são
deficiências da Sentença que não podem confundir-se com erro de julgamento: este
corresponde a uma desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou
adjetivo) aplicável (haverá
erro de julgamento - e não deficiência formal da decisão - se o tribunal
decidiu num certo sentido, embora mal à luz do direito).
Assim, prevê o n.º 1
do referido artigo 615.º que será nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura
do juiz;
b)
Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam
a decisão;
c) Os fundamentos estejam em
oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a
decisão ininteligível;
d)
O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou
conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em
quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A Ré-Recorrente
pretende que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo seja nula por ter omitido o que considera constituir um
facto: um pagamento de € 7.500 que teria sido feito para abater nos créditos
cedidos criando uma amálgama indefinida que a Autora deveria ter desfeito.
Começa por se dizer
que a Ré-Recorrente parte de um pressuposto errado: o de que a Autora teria de
comprovar o que consta do acordo de cessão de créditos, esquecendo que este não
faz parte da causa de pedir, sendo apenas uma condição da sua legitimidade para
a acção (como credora).
A Autora, como
cessionária, só tinha de dar conta à devedora (aqui Ré-Recorrente) que o
crédito tinha sido cedido. E fê-lo – adequadamente – através da acção (no caso,
do procedimento de injunção), juntando o referido acordo de cessão de créditos.
O artigo 577.º do
Código Civil, depois de afirmar que o credor pode ceder a terceiro uma parte ou
a totalidade do crédito, independentemente
do consentimento do devedor, a não ser que a cessão esteja interdita
por lei, ou por convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria
natureza da prestação, ligado à pessoa do credor (n.º 1), complementa-se com o artigo
583.º - sob a epígrafe “(Efeitos em relação ao devedor)” – onde se dispõe que a
cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada[5],
ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite (n.º 1) e que se,
“porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou
celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento
nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha
conhecimento da cessão”[6].
Ana
Taveira da Fonseca, escreve no Comentário ao
Código Civil da Universidade Católica, que já Vaz Serra em 1955 afirmava que esta “«notificação não é um negócio
jurídico, pois por ela não se exprime uma vontade dirigida a efeitos jurídicos
determinados: quer-se apenas informar terceiro do facto da cessão. Mas, isto
não obsta a que lhe sejam aplicáveis, por analogia (…) as normas relativas aos
negócios jurídicos, uma vez que é uma acção voluntária lícita com efeitos
semelhantes aos dos negócios jurídicos». Pelo exposto, a notificação constitui
uma declaração recetícia através da qual é dado a conhecer ao devedor cedido o
facto da transmissão do crédito”[7].
Nos presentes autos,
a Autora fez a prova que tinha de fazer (de que tinha ocorrido a cessão de
créditos da S…, Lda. para si).
E exigiu um deles à sua
(passou a sê-lo com a cessão) devedora.
Confrontada com a
exigência, a devedora (ora Ré-Recorrente) só tinha de pagar, excepcionar com algum
pagamento já realizado, ou alegar factualidade relevante que pudesse obstar à
pretensão da Credora (ora Autora).
Simples e linear.
Repare-se que, independentemente
do que do acordo de cessão de créditos constasse, a Autora entendeu que devia
peticionar os montantes que peticionou e nada a impedia de o fazer.
Perante o pedido da
Autora, cabia à ora Recorrente na Contestação (Oposição) afirmar o pagamento
dos montantes que lhe estavam a ser peticionados (e até, no limite, pedir a
condenação da Autora como litigante de má fé por estar peticionar algo que
tinha a obrigação de saber que estava parcialmente pago): o pagamento não se
presume (artigos 342.º, n.º 2, 350.º, 786.º e 799.º, n.º 1, do Código Civil).
Não o fez no momento
em que o poderia fazer, sibi imputet!
O Tribunal nunca
poderia dar como provado o pretendido pagamento de € 7.500 por, no contexto dos
autos e embora a ele haja referência no acordo de cessão de créditos, ser um
pagamento nem alegado no momento devido, nem passível de – pelo texto do
referido acordo de cessão – ser imputado à Ré e à sua dívida.
Só outro comportamento
processual por parte da Ré poderia ter permitido outros caminhos e levado a que
se pudesse desfazer a “amálgama indefinida” a que esta se refere nas suas
alegações (“amálgama indefinida” esta que é meramente virtual porque a Ré não a
desvendou e definiu enquanto tal na Oposição, sendo que, a Autora definiu com
contornos absolutamente precisos a presente acção: o pagamento dos serviços
correspondentes às facturas peticionadas).
Sublinhe-se que a Ré
só teria razão (e aí sim o Tribunal a quo
teria agido de forma desadequada) se a própria Autora tivesse começado por
dizer que os referidos € 7.500 tinham sido pagos pela C…, Lda. (ou teriam sido
imputados à sua dívida) para pagamento do crédito em causa, e esse facto não constasse
da factualidade apurada, com o respectivo tratamento jurídico.
Assim, objectivamente,
o que temos neste processo é:
-
a Autora a peticionar o crédito correspondente às facturas em causa, em toda a
sua integralidade e
-
a Ré a, perante esse pedido, nada
dizer quanto ao alegado pagamento[8] circunstância
que torna irrelevantes todas as restantes considerações que a Recorrente faz
quanto aos factos que constam como provados.
A Ré-Recorrente ainda
chama à colação um outro argumento – o de que o dito pagamento pudesse ser tido
como um facto notório – mas que constitui uma alegação pouco menos que
despropositada.
De facto, o artigo
412.º do CPC preceitua que “Não carecem de alegação os factos notórios, devendo
considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral” e, como é meridianamente evidente, nunca um
pagamento parcial de serviços de uma empresa a outra estaria abrangido por esta
qualidade.
O Código de Processo
Civil não adianta aqui uma definição do conceito de “facto notório”, se bem
que, no artigo 257.º, n.º 2, do Código Civil, se lhe faça uma referência (que,
em termos de unidade do sistema jurídico é particularmente relevante), a
propósito da verificação da situação de incapacidade acidental para produzir
declarações negociais (n.º 1, “desde que o facto seja notório ou conhecido do
declaratário”), preceituando que o “facto é notório, quando uma pessoa de
normal diligência o teria podido notar”[9].
Sobre esta matéria
dos factos notórios[10], no
Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Novembro de 2012[11],
disse-se – lapidarmente – o seguinte: “No acolhimento da definição
mais clássica, facto notório é aquele que é do conhecimento geral. Como refere
Calamandrei (Per La Definizione Del Fatto Notorio, 1925, 1º, pg. 309), trata-se
do conhecimento comum das pessoas que pertencem a uma determinada esfera
social, sendo esta constituída por um conjunto de pessoas que, por diversos
motivos - de tempo, religião, de profissão, de cultura, etc.-, têm interesses
comuns. Daí que, a doutrina tem classificado os factos notórios em duas
espécies:
- Os acontecimentos de que a
generalidade das pessoas tomou conhecimento (v.g., um terramoto, uma guerra, um
ciclone, uma inundação, um incêndio, uma revolução política, etc.);
-
Os factos que adquiriram o carácter de notórios por via indirecta, ou seja,
através de raciocínios desenvolvidos a partir de factos do conhecimento comum.
Nesta senda, Alberto dos
Reis (CPC Anotado, III, p. 261) classifica como "factos notórios apenas
aqueles que sejam do conhecimento geral, ou seja, os que sejam do conhecimento
da massa dos cidadãos portugueses regularmente informados, isto é, com acesso
aos meios normais de informação".
Consequentemente, não se
podem considerar como notórios os factos que sejam do conhecimento de um sector
restrito de pessoas, com informação muito acima da média ou de um sector muito
específico (ex. problemas de natureza económica, ocorrências ou práticas de
funcionais de uma profissão).
Já o conhecimento que o Juiz
tem do facto enquanto notório resulta não dos seus conhecimentos particulares,
mas sim do conhecimento que o Juiz tem, colocado na posição de cidadão comum,
regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e
cognitivas, nem a juízos presuntivos (cfr. Castro Mendes, "Do Conceito de
Prova", 711 e Vaz Serra, Provas, BMJ 110.º-61). De outro modo, seria um
conhecimento ao qual faltaria a generalidade cognitiva para ser qualificado
como notório.
Relevante na sua definição é
o conhecimento e não a relevância do facto. Como decidido no Ac. STJ, 25.10.2005,
proc. 05A3054, dgsi.pt), o facto notório tem que ser conhecido, "não
bastando para tal classificação qualquer conhecimento, pois é indispensável um
conhecimento de tal modo extenso e difundido que o facto apareça como evidente,
revestido de um carácter de certeza resultante do conhecimento do facto por
parte da massa dos portugueses que possam considerar-se regularmente informados
por terem acesso aos meios normais de informação".
Ou seja, ao definir no n.º 1
do art.º 514.º[12] os factos notórios como
os que são do conhecimento geral, assim elegendo o conhecimento, e não os
interesses, como critério de notoriedade, a lei faz apelo a uma ideia de
publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria
dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de
certeza" (cfr. Ac. STJ, 26.09.1995, BMJ, 449, p. 293). (Neste sentido,
cfr. Joel Timóteo, Factos Notórios, o que são, Revista «O Advogado», II Série,
Junho de 2006)”.
Um facto é notório,
portanto, “quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão
comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e
cognitivas, nem a juízos presuntivos” (RC 22/06/2010-Carvalho Martins[13]), ou
seja, que sejam do “conhecimento geral no país, os conhecidos pelo cidadão
comum, pelas pessoas regularmente informadas, com acesso aos meios normais de
informação”, sendo “indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é,
elevado a tal grau da difusão, que o facto apareça, por assim dizer, revestido
do carácter de certeza”(RL 29/05/2013-Fátima
Galante)[14].
In
casu, o pagamento de € 7.500 referido no acordo de
cessão de créditos celebrado entre a ora Autora e a S…, Lda. não extravasou,
nem é extravasável, do relacionamento entre os subscritores e os devedores
(aquando da notificação do artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil).
Apenas isso, pelo que
nem o putativo pagamento é um facto notório, nem o Tribunal a quo omitiu o que quer que seja: o
Tribunal não tinha de ir buscar um facto que não foi alegado, não consta do
processo, nem resultou de prova produzida em julgamento, tudo com a óbvia
consequência de inexistir a nulidade invocada.
Assim sendo, inexiste
a arguida nulidade correspondente à omissão do facto em causa (que o Tribunal
nunca poderia considerar como provado).
***
Por fim e de forma
linear em face do que já foi dito também inexiste qualquer nulidade por a
Sentença não dar “por provada qual o montante exacto do crédito detido pela S…,
Lda. sobre a R. e que pela mesma S…, Lda. foi cedido à A.”.
Só por lapso ou
distracção a Ré recorrente pode fazer esta alegação, uma vez que o Facto 2. descreve
a prestação de serviços feita pela S…, Lda. à Ré, devidamente identificada nas
facturas “pelos preços e nas condições aí melhor descritos”, sendo que o Facto
3., acrescenta que as partes acordaram em “que o pagamento seria efectuado na
data inscrita para tanto nos documentos acima referidos” e o Facto 4.º alude à cessão
de créditos da dita …, Lda. à Autora, “dos créditos detidos sobre a Ré e contabilisticamente
titulados pelas facturas referidas em 2.”.
Improcede, portanto,
também a arguição desta nulidade.
*
Em
consequência de tudo o exposto, improcedem totalmente as alegações da
Ré-Recorrente, assim se confirmando na integra e bem fundamentada Sentença
recorrida.
Em
todo o caso e apesar de nenhuma das partes, nem o Tribunal, a isso se
referirem, importa reparar um lapso de escrita, claro e ostensivo que consta do
dispositivo da Sentença, quando diz “condeno a R. a pagar à A. a quantia global
de 10.044,91 (novecentos e dezoito euros e oitenta e nove cêntimos)”.
A
discrepância decorre de um lapso de digitação do Tribunal a quo, uma vez que os € 10.044,91 correspondem à soma dos valores
das facturas descritas em 2. (sendo que ambas as partes assumem que o valor em
que a Ré foi condenada foi esse), pelo que, sem que isso corresponda a qualquer
alteração do decidido, se confirmará a Sentença, corrigindo o teor do
dispositivo, em conformidade com o ora constatado.
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar improcedente a apelação,
confirmando a Sentença recorrida, apenas com a correcção do texto do seu
dispositivo (onde constava um lapso de escrita), que passa a ser o seguinte: “julgo a presente
acção parcialmente procedente e, consequentemente condeno a Ré a pagar à Autora
a quantia global de € 10.044,91 (dez mil e quarenta e quatro euros e noventa e
um cêntimos), e bem assim nos juros de mora, calculados à taxa comercial, desde
a data de vencimento das facturas constantes a fls. 11 a 12 verso, ascendendo
os vencidos à data da instauração da presente a € 2.268,34 (dois mil duzentos e
sessenta e oito euros e trinta e quatro cêntimos).
Custas
da responsabilidade da Ré (sem prejuízo da condenação em custas realizada na
decisão de 17/03/2020, a fls. 19 verso) - cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do
Cód. Proc. Civil”.
Custas
a cargo da Recorrente.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 08 de Fevereiro de 2022
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1]
António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo
Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2]
Descriminadamente:
-
Factura n.º 4 4/263, datada de 22 de Abril de 2016, com vencimento nessa mesma
data, no montante de € 8.802,61;
-
Factura n.º 4 4/265, datada de 22 de Abril de 2016, com vencimento nessa mesma
data, no montante de € 467,40;
-
Factura n.º 4 4/266, datada de 22 de Abril de 2016, com vencimento nessa mesma
data, no montante de € 553,50;
-
Factura n.º 4 4/267, datada de 22 de Abril de 2016, com vencimento nessa mesma
data, no montante de € 221,40.
[3]
Também
transitado em julgado.
[4]
Nomeadamente
quando expressa que, “Ora, da conjugação de toda a prova produzida resulta
indubitável que a Satup, Lda. e a R. se puseram de acordo quanto aos serviços
documentados pelas facturas dos autos e que estes foram prestados. O demais que
derivou indiciado dos depoimentos das testemunhas oferecidos pela R., por não
integrar nem o objecto do processo, nem as questões a nele conhecer por virtude
de não ter sido alegado pela R. em sede de oposição, é irrelevante para a decisão
a proferir, nos termos do artigo 573.º do Cód. Prov. Civil”.
[5]
Notificação que
se constitui como um ónus do cessionário (“O cessionário não está obrigado a
notificar mas sabe que, se não o fizer, pode ter de suportar pesadas
consequências. Para ele, sim, existe um verdadeiro ónus de operar a
notificação” – Assunção Cristas,
Transmissão Contratual do Direito de Crédito, Almedina, 2005, página 189).
[6]
Esta notificação
da cessão ao devedor – prevista no artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil –
constitui apenas uma condição de eficácia da cessão perante si, sublinhando-se
que o efeito substancial que se pretende obter com tal notificação é o de
tornar a cessão eficaz em relação ao devedor (dando-lhe a conhecer a identidade
do cessionário e evitando que o cumprimento seja feito perante o primitivo
credor) - Acórdãos da Relação de Lisboa de 09/12/2010 (Processo n.º
1999/2001.L1-8-Catarina Arêlo Manso)
e da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (Processo n.º 467/11.1TBCNT-A.C1-Moreira do Carmo).
Vd.,
ainda, o Acórdão desta mesma Secção e com os mesmos subscritores, proferido
hoje mesmo - 08/02/2022 - no Processo n.º 5622/19.3T8ALM-B.L1.
[7]
Ana Taveira da Fonseca, in
Comentário ao Código Civil-Direito das Obrigações-Das Obrigações em Geral
(coordenado por José Brandão Proença),
Universidade Católica Editora, 2021, página 608 (anotação ao artigo 583.º).
[8] O pagamento a que a
Recorrente alude nesta sede recursória, portanto, constituiria cumprimento
liberatório se fosse invocado e resultasse provado…
[9]
Sobre a matéria,
vd. António Abrantes Geraldes-Paulo
Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I,
2.ª edição, Almedina, 2020, páginas 504-505; Lebre de Freitas-Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado
- Volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, 4.ª edição, Almedina, 2019, páginas
208-212; Luís Filipe Pires de Sousa,
Prova por presunção no direito civil, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 83, 84 e 96; Ana Margarida Faria de Andrade, A prova por presunção no direito
civil e processual civil – As presunções judiciais e o recurso ao senso comum e
às máximas de experiência, [em linha],
Dissertação elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Direito na
especialidade de Ciências Jurídico-Processuais, UAL-Universidade Autónoma Luís
de Camões, Março de 2016, páginas 46 a 48, disponível em https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/2744/1/UNIVERSIDADE%20AUT%C3%93NOMA%20DE%20LISBOA%20LU%C3%8DS%20DE%20CAM%C3%95ES%20-%20tese%20final.pdf
[consultado a 26/01/2022].
[10]
Definidos para o
cidadão comum no “Glossário OA de termos jurídicos” (disponível no Portal da
Ordem dos Advogados em https://portal.oa.pt/cidadaos/glossario-oa-termos-juridicos/letra-f/
[consultado a 26/01/2022]) nestes
termos: “Factos notórios são os de conhecimento geral no país, os conhecidos pelo
cidadão comum, pelas pessoas regularmente informadas, com acesso aos meios
normais de informação. Para ser considerado facto público e notório, é
indispensável um conhecimento extenso revestido do carácter de certeza. Por
outro lado, é necessário que não possam ser considerados meras ilacções ou
conclusões meramente jurídicas”.
11[11]
RL 11/11/2010,
Processo n.º 1378/10.3TVLSB-8-Amélia
Ameixoeira, disponível em www.dgsi.pt.
[12]
Que corresponde
ao actual artigo 412.º.
[13]
RC 22/06/2010,
Processo n.º 1803/08.3TBVIS.C1-Carvalho
Martins, disponível em www.dgsi.pt.
[14]
RL 29/05/2013,
Processo n.º 7053/10.1TBCSC.L1-6-Fátima
Galante, disponível em www.dgsi.pt, onde se
acrescenta que é “do conhecimento geral, e por isso facto notório, que ao dia
se sucede a noite e a esta, novo dia. É do conhecimento geral que se nasce,
vive e morre”.
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