Processo n.º 1826/20.4T8CSC.L1
Tribunal a quo - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste-Juízo de Família e Menores de Cascais - Juiz 1
Sumário:
I – A
impugnação da matéria de facto em sede de recurso é mais do que uma
manifestação de inconformismo inconsequente exigindo, com seriedade,
razoabilidade e proporcionalidade, nos termos do artigo 640.º do Código de
Processo Civil:
- a indicação motivada (sintetizada nas
Conclusões) dos concretos factos incorrectamente julgados – n.º 1, alínea a);
-
a especificação dos concretos meios probatórios presentes no processo,
registados ou gravados (com a indicação das concretas passagens relevantes) – n.º
2, alíneas a) e b) – que imporiam um decisão diferente quanto a cada um dos
factos em causa, propondo uma redacção alternativa – n.º 1, alíneas b) e c).
II – No
âmbito de um divórcio por mútuo consentimento, um acordo (homologado) subscrito
pelos cônjuges onde se diz que “A casa de morada de família sita à Rua (…), fica atribuída ao cônjuge mulher”,
cria para esta última um direito real de habitação (artigos 1484.º, 1485.º e
1490.º do Código Civil).
III – Em face
do n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, o “regime fixado, quer por
homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser
alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”, pelo que a situação
fixada no acordo referido em II, pode ser alterada em dois tipos de
circunstâncias:
-
ou com a ocorrência de alguma das causas de extinção previstas pelo artigo
1476.º do Código Civil;
-
ou nos termos do n.º 1 do artigo 988.º do Código de Processo Civil (e sem
prejuízo dos efeitos já produzidos), com fundamento em circunstâncias
supervenientes que justifiquem a alteração.
IV – Este regime legal que impõe a um cônjuge
proprietário uma limitação ao seu direito de propriedade exige os maiores
cuidados no recurso que a ele se faz, estando fundado em considerações ligadas
à garantia constitucional do direito à habitação (artigos 1.º e 65.º da
Constituição da República Portuguesa), forçando – como no caso paralelo dos
alimentos a ex-cônjuge – a uma espécie de solidariedade
pós-familiar ou pós-conjugal, sendo por isso que existe a cláusula de
salvaguarda ou “válvula de escape” decorrente do n.º 3 do artigo 1793.º do
Código Civil e do n.º 1 do artigo 988.º do Código de Processo Civil: para não
prolongar uma situação que tenha deixado de se justificar.
V – Um acordo como o referido em II, onde se
não define qualquer prazo ou condição especial para a atribuição da casa de
morada de família à Requerida, não escamoteia que constitui um restrição
auto-imposta pelo Requerente (ou se se preferir, acordada e consensual),
surgida num determinado contexto (de divórcio), por causa dele, e não no âmbito
de um acordo apenas baseado na autonomia contratual, ficando necessariamente
sujeito ao regime legal dos artigos 1793.º, n.º 3, do Código Civil e do 988.º
do Código do Processo Civil.
VI - A
alterabilidade do acordado e homologado – nomeadamente no que concerne à
atribuição da casa de morada de família – está inerente à sua ocorrência no
âmbito do divórcio, sendo certo que o decurso do tempo introduz um factor que
não pode ser menosprezado (nomeadamente quando estão em causa relações
familiares, em que, por exemplo, o crescimento físico e espiritual, de crianças
e jovens e necessidades inerentes é susceptível de relevar para efeitos de
alterar uma decisão).
VII - Neste
tipo de processos importa, a todo o tempo, estar atento às concretas situações
da vida real, para evitar manter situações desajustadas da realidade, com
prejuízo das partes envolvidas e sem refletirem já os interesses em causa.
VIII – Uma
situação em que um casal com dois filhos se divorcia, ficando a ex-cônjuge com
os filhos na casa de morada de família, propriedade do outro ex-cônjuge, mas
que, anos depois, ela lá continua, os dois filhos já abandonaram a casa e o
ex-cônjuge proprietário está a viver numa auto-caravana, não tendo condições
para conviver e receber em visita uma outra filha sua, autista, permite a
alteração do acordo de atribuição da casa de morada de família, para fazer
cessar o direito de habitação da ex-cônjuge.
Acordam
na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
F… intentou a presente acção de
alteração do regime de Atribuição da Casa de Morada de Família contra C…, pedindo a alteração do
regime fixado com a consequente cessação do Direito da requerida a permanecer
na fração autónoma designada pela
letra “-” do prédio urbano, destinado a habitação, correspondente ao 2º andar
direito, sito na Rua …………, n.º .., lugar de -----------, da União de Freguesias
de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respectiva matriz
predial urbana sob o artigo n.º …., descrito na 2ª Conservatória do Registo
Predial de Cascais sob a descrição n.º ----/---------- da freguesia de Estoril.
Em
síntese, alega:
- estar já
divorciado da Requerida, tendo sido acordado entre ambos que o uso da casa que
foi de morada de família era atribuído a esta até que o filho de ambos atingisse
a maioridade em Setembro de 2015;
- a filha de ambos foi
expulsa de casa pela mãe, interpelou a Requerida para que saísse da casa, que
constitui um bem próprio seu (do Requerente), o que esta recusou fazer,
negando-se mesmo a pagar uma renda como contrapartida pelo uso da casa;
- pretender
regressar à referida casa, por aí dispor de melhores condições para prestar os
cuidados necessários à sua filha menor entretanto nascida, uma vez que vive na
casa da sua companheira, que tem condições de habitabilidade inferiores, sendo
ainda o imóvel a que respeitam os autos a única casa que possui.
- a Requerida sabia
da transitoriedade do acordo celebrado quanto ao uso da casa de morada de
família, nela vivendo com um companheiro que tem boa situação financeira, ambos
podendo arrendar ou comprar outra casa.
Notificada,
a Requerida veio deduzir oposição, defendendo que:
- o pedido é
inadmissível por visar a cessação do seu direito real de habitação, decorrente
do acordo celebrado, e que apenas pode ser extinto nos mesmos termos em que se
extingue o usufruto;
-
não resulta do teor do acordo celebrado entre as partes que o mesmo tenha
ficado sujeito a algum termo ou condição;
-
não foi alegada qualquer circunstância superveniente que, nos termos do
disposto nos artigos 1793º/3, do C. Civil e 988º/1, do CPC, a fundamentar a
alteração do regime de atribuição da casa de morada de família.
Ouvidas
as testemunhas arroladas, o Tribunal decidiu “julgar
a presente acção procedente, por provada, em consequência alterando o regime
fixado por acordo homologado a 18.09.2013 e atribuindo o uso da casa de morada
de família a que corresponde a fração autónoma, designada pela letra -, do
prédio urbano destinado a habitação, correspondente ao 2º andar direito, sito
na Rua --------, n.º --, lugar de -----, da União de Freguesias de Cascais e
Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob
o artigo n.º ----, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais
sob a descrição n.º ----/---------- da freguesia de Estoril ao Requerente F----”.
É desta
decisão que vem interposto recurso por parte da Requerida, a qual apresentou
as suas Alegações, onde lavrou
as seguintes Conclusões:
1ª
A apreciação conjugada de toda a prova produzida não permite dar por assente o
Facto Provado 12. nos termos em que o foi;
2ª
A prova documental junta aos autos pelo próprio Autor introito da petição
inicial, procuração forense, carta junta como Doc. nº 4 com a petição inicial,
ofício do Instituto da Segurança Social comunicando o deferimento do pedido de
proteção jurídica e documento aviso prévio junto com o requerimento de
14/10/2020 demonstra com segurança que, pelo menos desde 26/04/2019 até à data
da instauração da ação, o Autor residia numa casa.
3ª
Assim, não pode manter-se a primeira parte do Facto 12., porquanto não
corresponde à realidade que o Requerente, desde que deixou de viver com a mãe
da sua filha menor, nunca tem esta a pernoitar consigo por não ter uma casa
onde a possa receber.
4ª
E a restante prova produzida nos autos também não permite que se dê por provada
a segunda parte do Facto 12., ou seja, que o Autor viva actualmente numa
carrinha tipo auto caravana.
5ª
O depoimento da testemunha J…, gravado aos minutos 00:18:28 a 00:1 9:31,
revela-se evasivo, inseguro e muito pouco consistente, não assentando em
qualquer conhecimento direto relativamente à matéria da segunda parte do Facto
12.
6ª
Por sua vez, o depoimento da testemunha S…, gravado aos minutos 00:01:54 a 00:02:33,
nada prova acerca de o Autor viver numa autocaravana.
7ª
Por outro lado, os depoimentos das testemunhas D… F…, gravado aos minutos 00:01:50
a 00:03:41, e R… M…, gravado aos minutos 00:01:50 a 00 :03:20, confirmam ter
visto o Autor a sair normalmente de uma casa com um saco de lixo que foi por no
contentor e a entrar novamente nessa mesma casa, o que, de acordo com as regras
de experiência e critérios lógicos e racionais, permite inferir que o Autor ali
estava a morar.
8ª
A circunstância de estas últimas testemunhas se terem deslocado a Alcobaça para
presenciar o que se passava, exatamente para vir depor em Tribunal, não afeta a
credibilidade do seu depoimento, tanto mais que revelaram espontaneamente essa
sua razão de ciência, demonstrando terem conhecimento direto dos factos a que
vieram depor.
9ª
O Autor apenas posteriormente à entrada da ação veio alegar que tinha sido
despejado e que vivia numa autocaravana, o que, porém, é contraditório com a
confissão que faz na petição inicial de que estava a viver na casa da sua
companheira.
10ª
A confissão tem força probatória plena contra o confitente, invalidando só por
si qualquer outra prova produzida acerca dessa mesma matéria.
11ª
Mesmo que se entenda que tal alegação não constitui uma confissão, demonstra
pelo menos a total confusão da alegação do Autor e o desacerto e falta de credibilidade
da inerente prova que o mesmo ofereceu aos autos, nomeadamente no que respeita
ao depoimento prestado pela testemunha C….
12ª
Não sendo a prova produzida nos autos absolutamente segura no sentido de dar
por certo que o Autor reside numa autocaravana, deve também eliminar-se a
segunda parte do Facto 12.;
13ª
De acordo com o teor da caderneta predial junta aos autos, o imóvel referido no
Facto 14. corresponde a uma fração autónoma com a seguinte descrição: rés do
chão direito com 3 divisões.
14ª
Assim, tendo-se o Tribunal baseado expressamente nesse documento, o teor do
Facto 14. é incorreto.
15ª
Não tendo sido junto aos autos qualquer contrato de arrendamento relativo a
esse imóvel, estava vedado ao Tribunal dar por provada a sua existência
servindo-se de outro meio de prova, designadamente testemunhal.
16ª
Em consequência, o Facto 14. deverá ser alterado passando a ter a seguinte
redação:
14.
O Requerente é proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés-do-chão
direito com 3 divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai.
17ª
O efeito pretendido pelo Autor com a instauração da ação é tão somente a
cessação do direito de a Ré usar e habitar a casa de morada de família.
18ª
O Autor não pediu que lhe fosse atribuído o uso da casa de morada de família,
ao contrário do que se decidiu na Sentença recorrida.
19ª
A fração autónoma que corresponde à casa de morada de família é bem próprio do
Autor, não fazendo assim sentido que lhe seja atribuído o direito de a usar e
habitar por tal direito já estar compreendido no direito de propriedade de que
é titular.
20ª
A atribuição do direito de uso e habitação da casa de morada de família ao
Autor, que dela é proprietário, constitui uma incongruência jurídica.
21ª
A atribuição desse direito ao Autor implica a sua extinção no preciso momento
da sua constituição pela reunião do direito de uso e da propriedade na mesma
pessoa.
22ª
O direito atribuído à Ré de usar a casa de morada de família, decorrente do
acordo celebrado entre as partes, constitui um verdadeiro e próprio direito
real de habitação.
23ª
O qual só se poderá extinguir nos termos e causas em que se extingue o
usufruto.
24ª
Ao dar-se por cessado o direito de uso e habitação da Ré, sem que tenha
ocorrido qualquer uma das causas legais de extinção desse direito, a decisão
recorrida viola norma imperativa.
25ª
No âmbito dos processos de jurisdição voluntária o Tribunal pode condenar em
objeto diverso do pedido, não lhe sendo, porém, permitida a postergação de
normas imperativas aplicáveis à situação.
26ª
Nessa medida, estava vedado ao Tribunal afastar a aplicação da norma imperativa
do art. 1476º do Cód. Civil, ex vi
art. 1485º do Cód. Civil, a que estava vinculado nos termos do pedido do Autor.
27ª
Ao desrespeitar tal norma imperativa, e ao condenar em objeto diverso do
pedido, o Tribunal excedeu os limites da condenação impostos no art. 609º do
Cód. Proc. Civil.
28ª
Sendo, em consequência a Sentença nula nos termos do disposto no art. 615º, nº
1, al. e) do Cód. Proc. Civil.
29ª
A alteração do regime de atribuição da casa de morada de família só pode ter
lugar se ocorrerem circunstâncias supervenientes que justifiquem a sua
alteração.
30ª
A superveniente alteração das circunstâncias deverá ser substancial, evidenciar
sinais de permanência e modificar a base negocial ou os pressupostos fácticos que
determinaram a celebração do Acordo.
31ª
O Autor nada alegou quanto às circunstâncias que se verificavam à data da
celebração do Acordo, nomeadamente quanto à situação pessoal, profissional e
financeira de ambas as partes.
32ª
A circunstância de se ter dado por provado que atualmente os filhos do Autor e
da Ré já não vivem com esta não é suficiente para fazer cessar ou alterar o
direito de uso e habitação atribuído à Ré nos termos do acordo.
33ª
As declarações das partes nos acordos de atribuição de uso de casa de morada de
família devem ser interpretadas no sentido da vontade real dos declarantes,
desde que tal tenha um mínimo de correspondência com o texto onde estão
exaradas.
34ª
O texto do Acordo dos autos não consente qualquer interpretação no sentido de
que o direito de uso atribuído à Ré cessaria ou deveria ser alterado quando o
filho atingisse a maioridade ou deixasse de viver com a Mãe.
35ª
Não ficou estabelecido no texto do Acordo qualquer limitação temporal ou condição
resolutiva do direito de uso atribuído à Ré.
36ª
O texto do Acordo e a factualidade provada não permitem concluir que um dos
motivos determinantes da atribuição do uso da casa à Ré foi o facto de os
filhos terem permanecido a viver com esta.
37ª
O Tribunal deu apenas por provado que, atualmente, os filhos do Autor e da Ré
não se encontram a residir com esta, não se tendo, porém, apurado se se trata
de uma situação meramente temporária ou definitiva.
38ª
O nascimento da filha menor do Autor não constitui uma circunstância superveniente,
por já ser nascida aquando do divórcio do casal e da decisão de homologação do
Acordo dos autos
39ª
A factualidade provada, interpretada conjugadamente, demonstra que o Autor
continua a ter o seu centro de vida, familiar e pessoal, na zona de Alcobaça,
onde reside a sua filha menor e a Mãe desta.
40ª
Nada do que o Autor alegou para justificar a necessidade de passar a viver no
Estoril resultou provado.
41ª
Ao invés, resulta dos autos com segurança que todo o apoio médico e educacional
de que a sua filha necessita está a ser-lhe disponibilizado na zona de Alcobaça.
42ª
Não tendo ficado demonstrada uma necessidade real, atual e séria de o Autor passar
a residir na casa de morada de família, no Estoril.
43ª
Em face da impossibilidade legal de fazer cessar o direito de uso e habitação
da Ré, e de acordo com a factualidade provada, a única alteração admissível ao
regime fixado por acordo passaria pela estipulação de uma renda pelo Tribunal,
a fixar de acordo com os rendimentos e despesas das partes.
44ª
Os autos não comportam ainda os elementos necessários à sua fixação,
especialmente quanto às despesas correntes que Autor e Ré suportam.
45ª
Devendo, em consequência, ordenar-se a baixa dos autos para ampliação da
matéria factual pertinente.
46ª
Decidindo como decidiu, o Tribunal recorrido violou, designadamente, as normas
dos arts. 238º, nº 1; 352º, 358º, nº 1, 364º, nº 1; 393º, nº 1, 1069º; 1476º;
1485º e 1793º, nº 3, do Cod. Civil e 609º, nº 1 e 988º, nº 1, do Cód. Proc.
Civil.
O
Requerente apresentou Contra-Alegações, nas quais concluiu
que:
- o Tribunal
recorrido apreciou devidamente os factos, tendo-os subsumido ao Direito de
forma exemplar, reflectindo um apurado rigor técnico jurídico e uma enorme
preocupação na aplicação criteriosa do direito ao caso concreto;
-
tecer quaisquer considerações para além da douta fundamentação elaborada pelo
Tribunal a quo seria supérfluo,
portanto inútil, podendo mesmo retirar o brilho próprio do aresto em análise,
obnubilando-o;
-
a aqui Requerida tinha obrigação de saber que o acordo celebrado quanto à
morada de família teria uma vigência transitória, tendo ficado provado que a
requerida vive até aos dias de hoje na casa do Requerente, juntamente com o seu
atual companheiro e que os filhos do extinto casal já nem sequer habitam com
esta, (cfr. ponto 13. dos factos provados);
-
Requerida e companheiro têm boa condição económica para arrendar uma casa e não
viver às expensas do Requerente que, infelizmente, atravessa graves
dificuldades económicas e não tem sequer possibilidades para arrendar uma casa,
já que lhe escasseiam rendimentos e saúde para fazer face a rendas.
Questões a Decidir
São
as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4
e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera
de atuação do tribunal ad quem (exercendo
uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES
GERALDES[1]),
sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
(artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação
jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In
casu,
e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará:
-
verificar a matéria dada como provada nos Factos 12. e 14.;
-
verificar se existe alguma nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea
e), do CPC, por ter ocorrido uma condenação em objecto diverso do pedido;
-
verificar da presença das condições para alteração da atribuição da casa de
morada de família (nomeadamente se existe algum direito de uso e habitação por
parte da ex-cônjuge) e se os factos apurados permitem fazer a alteração
pretendida, bem assim como da eventual necessidade de os autos baixarem à 1.ª
Instância para ampliação da matéria de facto.
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação de Facto
Releva
para a presente decisão a seguinte factualidade:
1.
Requerente e Requerida casaram a 04.08.1991, tendo sido decretado o seu
divórcio por decisão da conservatória do registo civil de 18.09.2013,
transitada em julgado nessa mesma data;
2.
No âmbito do processo de divórcio, Requerente e Requerida celebraram acordo quanto
ao destino na casa de morada de família, o qual foi homologado, tendo o
seguinte teor:
“A
casa de morada de família sita à Rua Dr. …., n.º …, ---, 2765---- Estoril, fica
atribuída ao cônjuge mulher”.
3.
No mesmo processo, acordaram as partes na regulação das responsabilidades parentais
relativamente ao seu filho, então menor, N….., nascido a 02.09.1997, fixando a
residência deste junto da mãe.
4.
A casa que foi de morada de família corresponde à fração autónoma designada
pela letra - do prédio urbano, destinado a habitação, correspondente ao 2.º
andar direito, sito na Rua ------, n.º --, lugar de -----, da União de Freguesias
de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respectiva matriz predial
urbana sob o artigo n.º ----, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de
Cascais sob a descrição n.º ----/-------------- da freguesia de Estoril.
5.
O referido imóvel tem a propriedade registada a favor do Requerente, pela Ap.
13, de 26.09.1997, sendo facto constitutivo a dação em cumprimento.
6.
A 02.11.2006, Requerente e Requerida celebraram, como mutuários, dois contratos
de mútuo com hipoteca e fiança, com o Banco Santander Totta, visando a realização
de obras de beneficiação da referida casa.
7.
O Requerente sofreu atropelamento aos cinco anos de idade, tendo sido sujeito a
diversas cirurgias e transfusões de sangue e sofrido lesões permanentes, em
virtude do que padece de uma incapacidade permanente global de 61%.
8.
O imóvel acima identificado foi transmitido ao Requerente, em dação, para pagamento
de indemnização em decorrência do referido atropelamento de que foi vítima.
9.
O Requerente viveu em união de facto com C….., com quem tem uma filha nascida a
07.07.2013, actualmente com oito anos de idade, a qual sofre perturbação do
espectro do autismo, com atraso global do desenvolvimento psicomotor, associado
e défice na linguagem e obstipação, carecendo entre o mais de intervenção
sistemática de equipa de intervenção precoce e terapia da fala.
10.
A referida filha menor do Requerente não consegue falar e carece totalmente de autonomia,
sendo necessária a sua supervisão permanente.
11.
O Requerente paga mensalmente à mãe da sua filha a quantia de € 75,00 para contribuir
para o sustento da mesma.
12. O Requerente,
desde que deixou de viver com a mãe da sua filha menor, nunca tem esta a
pernoitar consigo por não ter uma casa onde a possa receber, vivendo
actualmente numa carrinha tipo auto-caravana.
13.
Aquando da separação entre o Requerente e a Requerida, ambos os filhos destes ficaram
a residir com a mãe, o que já não sucede actualmente.
14. O Requerente é
proprietário de um outro imóvel, do qual tem usufruto vitalício o seu pai,
tendo apenas uma divisão e encontrando-se arrendado.
15.
A Requerida tem um estabelecimento de cabeleireiro e estética.
16.
A Requerida declarou, quanto ao ano de 2019, um rendimento total de € 17.728,90
não tendo sido considerado fiscalmente qualquer rendimento face às perdas
declaradas.
17.
A Requerida declarou, quanto ao ano de 2020, um rendimento global de €
17.074,85.
18.
O Requerente declarou, quanto ao ano de 2019, um rendimento global de €
3.727,94.
19.
O Requerente aufere subsídio de doença no valor mensal de € 501,88.
**
Apreciação da Matéria de Facto
O artigo
607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o tribunal aprecia
livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção
que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para
a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em
que esta não pode ser dispensada.
Quando uma
parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[2],
nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1)
indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente
julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2)
especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo
ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º
2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos,
propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).
Está aqui em
causa, como sublinha com pertinência Abrantes
Geraldes, o “princípio
da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da
matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente
inconformismo”[3], sempre temperado pela necessária
proporcionalidade e razoabilidade[4],
sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do
objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos
pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios
de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado
pretendido)”[5].
Verificadas
as Alegações e Conclusões do Réu-Recorrente este diverge apenas no que concerne
ao Facto 12. (que entende deve ser considerado não provado) e ao Facto 14. (cuja
redacção haveria de ser: “O Requerente é proprietário de um outro imóvel,
correspondente a um rés do chão direito com 3 divisões, do qual tem usufruto
vitalício o seu pai”).
O Tribunal a quo justifica a factualidade que
apurou da seguinte forma:
“Relativamente
ao descrito no ponto 12, quanto à actual residência do Requerente numa carrinha
tipo auto-caravana, foi também considerado o depoimento da testemunha J…………,
pai do Requerente, que o confirmou, e da testemunha S…. (ex-companheiro da
filha mais velha do Requerente), que referiu ver aquele numa carrinha desse
género, quanto vai a sua casa para ver os netos”.
Ainda
quanto a este facto o Tribunal considerou também outro depoimento (da
testemunha C….), quando refere “Foi ainda tido em conta o depoimento da testemunha C…
que referiu ter vivido em união de facto com o Requerente situação que declarou
não se manter na actualidade a qual depôs de forma igualmente credível e
coerente, mostrando-se assertiva e espontânea nas suas declarações, através das
quais deu conhecimento da factualidade descrita nos pontos 9 a 12”.
Neste
âmbito e com reflexos nesta matéria, o Tribunal tem ainda o cuidado de referir
o seguinte: “as
testemunhas D… e R… referiram ter visto, em Novembro de 2020, o Requerente sair
de uma casa em Alcobaça, ir despejar o lixo e voltar a entrar na mesma, abrindo
a porta.
Ora,
dos referidos depoimentos resultou desde logo que as testemunhas em questão se
deslocaram até junto da referida casa de Alcobaça, juntamente com o filho do
Requerente e da Requerida, propositadamente para aí tentar ver o Requerente e
posteriormente prestar depoimento nos presentes autos, por forma a fazer prova
de que este se mantinha a residir com a companheira.
Tais
diligências assumidamente encetadas pelas testemunhas em questão, com o único
propósito de virem a prestar depoimento nestes autos em determinado sentido,
desde logo levaria a questionar a respectiva credibilidade.
Por
outro lado, e de todo o modo, o facto de o Requerente ter sido visto numa
concreta ocasião a sair de uma casa a qual, em rigor, se desconhece se
corresponde à da testemunha C… não é, em si mesma, apta a demonstrar que aquele
ali resida (inúmeras circunstâncias poderiam explicar que o Requerente saísse
da casa da sua ex-companheira, com quem mantém boa relação, e onde vive a sua
filha, indo despejar o lixo e voltando a entrar, independentemente de lá
residir ou não) nem, por isso mesmo, a pôr em causa o que resulta do depoimento
desta última que, como acima se deixou escrito, se reputou de perfeitamente
credível, coerente e espontâneo, sendo sem dúvida o conhecimento desta na
matéria em questão muito superior ao das referidas testemunhas”.
Este
Facto 12. poderia estar decomposto em três partes, porque – efectivamente – tem
três factos incorporados: o requerente deixou de viver com a mãe da sua filha
(1), nunca tem esta a pernoitar consigo por não ter uma casa onde a possa
receber (2), o requerente vive actualmente numa carrinha autocaravana (3).
Ouvida
a gravação de toda a prova
testemunhal produzida, não é susceptível de dúvida razoável nenhum desses
factos, desde logo em face do testemunho (por conhecimento) directo, claro,
expressivo, assertivo, coerente, imparcial e credível da testemunha C….
De
facto, esta testemunha, que foi companheira do Requerente até 2018 e é mãe de
uma filha em comum, confirmou quer o final do seu relacionamento de facto, quer
as boas relações que com ele mantém, quer o contexto decorrente de ser
cuidadora de uma filha com problemas de autismo, quer do esforço que o pai faz
para ajudar e acompanhar e da impossibilidade de fazerem neste momento uma
guarda partilhada por ele não ter um espaço que o permita (e, como mãe cuidadora
isso sempre seria um factor premente na sua apreciação), quer o local em que
ele vive actualmente.
E
explicou e contextualizou o porquê de o requerente ir muitas a vezes a sua casa
(adquirida pelos seus pais), quase diariamente (até porque a autocaravana onde
reside está parqueada perto da casa), para poder estar com a filha, sendo que
até tem a chave para lá ir alimentar os animais de companhia quando ela própria
lá não está.
Os
extractos de depoimentos que a Recorrente transcreve em nada contrariam o
quadro factual que resultou adquirido, sendo que a “questão do lixo”, que numa
circunstância normal poderia permitir outras conclusões, neste caso, previamente contextualizado pela
testemunha C…, torna perfeitamente compreensível que um ex-companheiro, que com
frequência quase diária frequente a casa desta, vá ocasionalmente despejar o
lixo da casa.
O
Tribunal a quo abordou a questão e
fê-lo bem, explicando a forma como valorizou os depoimentos em causa.
Por
aqui, portanto, nada há a alterar ao Facto 12.
A
Recorrente pretende ainda:
-
dar relevância à morada que o Requerente indica na Petição Inicial e na
Procuração: ora, isso corresponderá a uma morada antiga (aliás a própria
testemunha Clarisse deixou constância disso ao referir que o Requerente por
dificuldades financeiras teria deixado de poder pagar a renda da casa onde
tinham vivido e por isso estava na já referida auto-caravana) e daí não é
possível extrair quaisquer outras conclusões (nomeadamente perante a clara
prova produzida);
-
dar relevância ao artigo 11.º da Petição Inicial (“É que neste momento
vive em casa da sua companheira que tem condições de habitabilidade bastante
inferiores à sua casa aqui objeto dos presentes Autos”) que,
pressupostamente, consubstanciaria a confissão de que continuaria a viver com a
ex-companheira: é uma questão de jogo de palavras, de semântica, e em que a
Recorrente não tem razão, uma vez que este artigo vem na sequência do 10. (“Aliada ao facto de o
requerente pretender regressar ao Estoril de modo a proporcionar todos os
cuidados médicos que a sua filha mais nova necessita, cfr. documento n.º 6 que
aqui se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido”).
O
Requerente limita-se a dizer que a casa do Estoril tem melhores condições de
habitabilidade do que a da companheira com quem a filha de ambos reside.
Esta
é a leitura linear dos dois artigos, no contexto do que consta da Petição
Inicial, sendo abusiva a pretensão de qualquer confissão.
Em
conclusão, nada se altera quanto ao Facto 12, em nenhuma das suas vertentes.
**
Quanto
ao Facto 14. (“O
Requerente é proprietário de um outro imóvel, do qual tem usufruto vitalício o
seu pai, tendo apenas uma divisão e encontrando-se arrendado”).
O
Tribunal refere que “Para
prova do descrito no ponto 14 foi considerado o teor da caderneta predial urbana
do imóvel em causa, junta pela Requerida, conjugada com o depoimento de J… que,
de forma segura e tida por isenta, deu conta do arrendamento de tal imóvel e da
composição deste”.
A
Recorrente pretende que o Facto 14. passe a dizer que “O Requerente é
proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés do chão direito com 3
divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai”, porque é
isso o que resulta da caderneta predial e porque o arrendamento não pode ser dado
como provado por não constar de documento escrito.
Embora
se tenha como algo irrelevante, de facto, fica mais clara a referência à
descrição do rés do chão com três divisões (que não é necessariamente, em
conversa comum, distinto do que consta escrito: “uma divisão”, para além de
sala e cozinha) e, por isso se corrigirá a redacção em conformidade.
No
que respeita ao arrendamento, nada obsta a que se dê como provado o que consta
do facto e tal como dele consta, uma vez que se trata de uma circunstância completamente
lateral ao objecto dos presentes autos (relevando apenas para o efeito de se
saber que o imóvel em causa está ocupado).
Em
consequência do exposto, apenas se altera a redacção do Facto 14., nos termos
já assinalados e em termos de passar a dizer:
“O Requerente é
proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés do chão direito com 3
divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai e que se encontrando
arrendado”.
***
Fundamentação de Direito
A
primeira das questões a abordar neste ponto é a da verificação se existe alguma
nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, por ter
ocorrido uma condenação em objecto diverso do pedido.
O
pedido formulado pelo Requerente, logo no início do seu Requerimento inicial é
o de “REQUERER ALTERAÇAO DO REGIME FIXADO QUANTO À CASA DE MORADA DE FAMÍLIA”, terminando
por requerer “a
alteração do regime fixado quanto à morada de família, nos termos do presente
articulado e documentos juntos, com a consequente cessação do Direito da requerida
a permanecer na fração autónoma designada pela letra ‘-’ do prédio urbano,
destinado a habitação, correspondente ao 2.º andar direito, sito na Rua ------------
, n.º --, lugar de ------------, da União de Freguesias de Cascais e Estoril,
concelho de Cascais, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo
n.º ----, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a
descrição n.º ----/---------- da freguesia do Estoril”.
O
Tribunal a quo, na Sentença em
análise, termina por decidir “julgar a presente acção procedente, por provada, em
consequência alterando o regime fixado por acordo homologado a 18.09.2013 e
atribuindo o uso da casa de morada de família a que corresponde a fração (…) ao Requerente F---”.
A
Recorrente pretende que o Requerente quer apenas a cessação do direito da
Requerida usar e habitar aquela que foi a casa de morada de família e que nunca
peticiona que lhe seja atribuído o uso da fracção autónoma em causa, pelo que o
Tribunal estaria impedido de condenar em algo distinto do que foi peticionado.
Neste
ponto mais do que uma questão de semântica, a Recorrente-Requerida joga com as
palavras, atingindo o cume quando diz que o Tribunal não pode atribuir “um
direito a alguém que já o tem”…
Só
que esquece que o Requerente não tinha o direito de usar e habitar aquela que
foi a casa de morada de família, pelo que o direito que o Tribunal lhe atribui ele
não o tinha…
Acabamos
por ficar (como a própria Requerida assinala), diante de uma situação de confusão, em que se junta o direito de
propriedade do bem (que nunca foi retirado ao Requerente), com o de poder dele
usufruir na plenitude.
Mas
o Tribunal não atribui nada que o Requerente não tivesse pedido. Pelo
contrário.
O
Requerente pede para se alterar o regime fixado “com a consequente cessação do
Direito da requerida a permanecer na fração autónoma” e o Tribunal dá-lhe
razão, atribuindo-lhe o uso da casa.
De
forma alguma o Tribunal vai além do que é pedido, ou condena em coisa distinta
do que se pretendia.
Inexiste,
portanto, a pretendida nulidade.
**
Resta
a apreciação do que verdadeiramente está em causa nos presentes autos.
Requerente
e Requerida estiveram casados, formaram uma família, que viveu num prédio
pertença do primeiro.
Decidindo
cessar a sua relação através de um divórcio consensualizado, elaboraram todos
os acordos necessários incluindo o da casa de morada de família, nela incluindo
esta cláusula: “A casa de morada de família sita à Rua Dr. ……….., n.º ---, 2º
Dt.º, 2765---- Estoril, fica atribuída ao cônjuge mulher”.
O
Divórcio ocorreu em 2013 e, com o presente processo, pretende-se alterar esta
situação, de forma a que o prédio em causa deixe de estar atribuído à
ex-cônjuge (e volte, portanto, para o seu proprietário).
O
Tribunal a quo decidiu julgar
procedente a acção utilizando a seguinte argumentação e processo de raciocínio:
I
- o artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil, permite ao Tribunal dar de arrendamento
a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta
seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades
dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal;
II - o regime fixado, quer por homologação do
acordo dos cônjuges, quer por decisão do Tribunal, pode ser alterado nos termos
gerais da jurisdição voluntária;
III
- no caso de ocorrerem circunstâncias supervenientes que o justifiquem, o
regime fixado para o uso da casa de morada de família, pode ser alterado nos
termos do artigo 988.º, n.º 1, do CPC;
IV
- da factualidade apurada resulta que, aquando da celebração do aludido acordo,
as partes regularam ainda as responsabilidades parentais relativamente ao seu
filho então ainda menor, ficando este a residir com a mãe, juntamente com a
outra filha (essa, já maior), sendo que, neste momento, os dois filhos já ali
não residem;
V
- face às regras da experiência comum, a presença dos dois filhos na referida
casa terá sido (pelo menos) um dos motivos determinantes da atribuição do seu uso
à ex-cônjuge;
VI
- o facto de os dois filhos comuns do casal já não residirem no prédio em causa
constitui uma alteração significativa e atendível das circunstâncias;
VII
- para essa alteração contribui ainda o facto de o Requerente ter tido mais uma
filha (nascida de outro relacionamento), agora com oito anos, a qual não pode
ter consigo em períodos de visita com pernoita, por não dispor de casa onde o
possa fazer;
VIII
- recorrendo aos critérios abertos do artigo 1793.º, n.º 1 (necessidades de
cada um e interesse dos filhos do casal), actualmente as necessidades de
habitação do Requerente estão acentuadas por respeitarem também à possibilidade
de ter a sua filha menor consigo (pelo menos, em períodos de visitas), sendo
que, os outros filhos, já não residem com a mãe;
IX - qualquer das partes tem
parcos rendimentos, embora os do Requerente sejam inferiores, pois subsiste unicamente
do subsidio de doença que aufere (incapacidade permanente global de 61%), sendo
pouco provável que venha a auferir rendimentos de trabalho superiores e tendo
uma capacidade de ganho inferior à da Requerida que não tem limitações físicas
e explora um negócio, o que fornece uma perspectiva mais favorável quanto a
possíveis rendimentos de trabalho (ou empresariais) que lhe permitam arrendar
ou adquirir outra habitação;
X
- acresce a situação da nova filha do Requerente, para cujo sustento este
também contribui, mais necessário ainda em face dos problemas e necessidades
específicas que apresenta (autismo);
XI
- releva ainda a circunstância apurada de a referida casa pertencer ao Requerente,
por via de uma dação em cumprimento, como indemnização pelo grave acidente que
o vitimou em criança e que originou os problemas de saúde determinantes da incapacidade
permanente de 61% que padece;
XII
- a atribuição do uso da casa ao Requerente não carece de operar através do
arrendamento a que alude o artigo 1793.º, n.ºs 1 e 2, por se tratar de um bem
próprio seu.
O
raciocínio é linear e claro, mas a Requerida entende que a acção foi mal
decidida porque, com o acordo inicialmente celebrado, ficou titular de um
direito real de habitação que só podia ser extinto nos termos dos artigos
1485.º e 1476.º do Código Civil.
Vejamos
melhor o enquadramento jurídico da situação.
E
a primeira questão a abordar passa pela qualificação jurídica do direito que
resulta para o beneficiário da atribuição da casa que foi morada de família.
O
Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 01 de Julho de 2021 (Processo n.º
5484/18.8T8VNG.P1.S1-Abrantes Geraldes),
relativamente a uma situação em que existiu uma cláusula semelhante à dos
presentes autos, escreveu o seguinte: “No âmbito do processo de divórcio por mútuo
consentimento que correu termos na Conservatória Registo Civil (art. 1775º, nº
1, al. d), e art. 12º, nº 1, al. b), do DL nº 272/01, de 13-10), foi
apresentado um acordo subscrito por ambos, nos termos do qual “a casa, enquanto
habitação da requerente mulher CC e da filha DD, fica destinada à utilização
habitacional da requerente mulher, a título gratuito”.
A
homologação deste acordo, juntamente com a homologação do divórcio por mútuo
consentimento, resolveu a questão de direito material regulada no art. 1793º do
CC em torno da atribuição da casa de morada de família.
Existem,
aliás, múltiplas formas de dar execução a tal direito que, em função das
circunstâncias, pode ser conferido a qualquer dos cônjuges. Umas dependem do
facto de o bem imóvel em causa ser bem comum do casal ou bem próprio de algum
dos cônjuges; outras do facto de a casa de morada de família estar instalada em
imóvel sujeito a contrato de arrendamento ou mesmo a um contrato de comodato.
Em qualquer dos casos, importa sempre considerar os efeitos que, dentro dos
limites legais, podem resultar do acordo de vontades estabelecido pelos
cônjuges interessados relativamente à regulação dessa esfera de interesses.
Tratando-se
de uma situação em que a casa de morada de família estava implantada num imóvel
que era propriedade exclusiva de um dos cônjuges, Teixeira de Sousa, citado por
Nuno Salter Cid, em A proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português,
p. 305, nota, 33, aponta algumas soluções que podem passar por ser “arrendada,
doada, emprestada, dada de usufruto a um dos cônjuges e pode ainda
constituir-se um direito de habitação a favor de um dos cônjuges”.
No
caso, a cedência gratuita por parte do cônjuge proprietário da utilização do
imóvel para habitação do outro cônjuge (e da filha de ambos) poderia encontrar
acolhimento na figura do contrato de comodato ou na figura do direito real de
habitação.
Mas
não seria indiferente uma ou outra qualificação, pois enquanto o contrato de
comodato confere ao comodatário um mero direito pessoal de gozo, de natureza
obrigacional, insuscetível de produzir efeitos relativamente a terceiros (art.
406º, nº 1, do CC), já o direito real de habitação produz eficácia erga omnes,
como é típico dos direitos reais.
Ora,
sem embargo das exigências formais que podem servir para diferenciar a
constituição de um ou de outro vínculo jurídico, a qualificação de um acordo
estabelecido entre os cônjuges que se pretendem divorciar fica essencialmente
dependente do teor das declarações de vontade e do contexto em que são
emitidas.
Característica
do contrato de comodato é a natureza tendencialmente precária ou limitada,
envolvendo necessariamente, ainda que de modo implícito, a obrigação de
restituir o bem comodatado (art. 1129º do CC). Já no direito real de habitação
prevalece o objetivo de satisfazer a necessidade de habitação do usuário e da
sua família (art. 1484º), de modo semelhante ao que, por via legal, está
previsto no art. 2103º-A ou, relativamente à união de facto, no art. 5º da Lei
nº 7/01, de 12-5, na redação introduzida pela Lei nº 23/10, de 30-8.
No
caso, é como direito real de habitação que deve ser qualificado o acordo a que
os autos se reportam, tal como, noutra situação semelhante, foi assumido por
este Supremo no Ac. de 8-5-13, 1064/11, www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere,
além do mais, que:
“O
direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo
consentimento entre a ré e o seu ex-marido que teve por objeto a utilização da
casa de morada de família, destinando esta à habitação da ré tendo em conta (e
por medida) as suas necessidades e da sua família ao tempo em que o divórcio
foi decretado, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação (arts.
1484º, 1485º e 1490º CC)”.
Menezes
Leitão, em Direitos Reais, 5ª ed., p. 378, nota 749, citando um aresto da
Relação de Lisboa, de 18-2-93, CJ, t. I, p. 149, refere que “tem sido ainda
comum constituir, nos acordos de divórcio, um direito de uso e habitação sobre
a casa de morada de família a favor de um dos cônjuges … sujeito ao regime
geral dos arts. 1484º e ss. do CC”.
5.
Assim ocorreu no caso concreto, tanto mais que a qualificação jurídica do
acordo nem sequer é questionada pelas partes, depois de ambas as instâncias o
terem qualificaram como constitutivo de um direito real de habitação.
A
constituição de tal direito real de gozo representou, em termos objetivos, uma
oneração do direito de propriedade sobre o imóvel na titularidade do ex-cônjuge
EE, a que correspondeu a compressão desse direito real absoluto na justa medida
dos poderes de uso que foram conferidos à 1ª R.
O
direito real de habitação encontra cobertura legal nos arts. 1484º e ss. do CC,
sendo que a sua constituição por via de contrato também é assegurada pelo art.
1440º, ex vi art. 1485º, sendo que o acordo foi apresentado perante o
conservador do registo civil para a sua homologação e por este foi homologado
nos seus precisos termos.
A
partir de então, se caso o direito de propriedade se tivesse mantido na esfera
do ex-cônjuge EE, o direito real de habitação manter-se-ia e seria eficaz
independentemente do registo (art. 4º, nº 1, do CRP) até que ocorresse alguma
das causas de extinção previstas no art. 1476º, para onde também remete o art.
1485º do CC, ou, porventura, até que o acordo fosse alterado, nos termos do
regime especificamente previsto para os processos de jurisdição voluntária,
atenta a norma genérica do nº 1 do art. 988º do CPC (semelhante ao que,
relativamente à opção pelo arrendamento resulta do nº 3 do art. 1783º do CC)”.
Subscrevendo
a análise[6],
sublinha-se, em face do n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, o “regime
fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do
tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.
Daqui
decorre que a situação fixada no acordo celebrado entre Requerente e Requerida
pode ser alterada em dois tipos de circunstâncias:
-
ou com a ocorrência de alguma das causas de extinção previstas pelo artigo
1476.º do Código Civil;
-
ou nos termos do n.º 1[7] do
artigo 988.º do Código de Processo Civil (e sem prejuízo dos efeitos já
produzidos), com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a
alteração.
Ao
contrário do que a Recorrente pretende, enquanto ex-cônjuge, não ficou a
beneficiar de um direito (quase) eterno ou imutável (consequência essa que
seria – no mínimo – iníqua).
Fica
com enormes garantias de segurança para a sua situação jurídica (decorrentes da
previsão dos citados normativos), mas sujeita a esta cláusula de salvaguarda
das circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração do regime fixado.
Como
assinala de forma certeira e lúcida Chandra
Gracias ”a
providência a que alude o art. 990.º do Código de Processo Civil (…) pressupõe
como elemento objectivo fáctico, que já tenha havido decretamento do divórcio”,
estando “legalmente enquadrada como um efeito do divórcio”, sendo importante
“deixar bem vincado que esta providência não
se caracteriza pela sua provisoriedade, mas sim pela sua alterabilidade,
expressa no art. 1793.º n.º 3, do Código Civil, e que é típica dos processos de
jurisdição voluntária – art. 988.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”[8] (assim, também,
RP 26/05/2015, Processo n.º 5523/13.9TBVNG-B.P1-Carlos Querido; RG 17/09/2020, Processo n.º 114/14.0TCGMR-A.G1-Ana Cristina Duarte).
É
necessário ter em consideração que este regime legal que se permite impor a um
cônjuge proprietário um arrendamento suscita mesmo problemas de
constitucionalidade que têm vindo a ser discutidos e abordados por Diogo Leite de Campos/Mónica Martinez de
Campos[9] e Sandra Passinhas[10], e que, portanto, exige sempre os
maiores cuidados no recurso que a ele se faz.
Para
além de considerações ligadas à garantia constitucional do direito à habitação
(artigos 1.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa), tem de se ter em
conta que se trata de um regime que, pode dizer-se assim, obriga, força – tal como
no caso paralelo dos alimentos a ex-cônjuge – a uma espécie de solidariedade pós-familiar ou pós-conjugal[11],
sendo exactamente por isso que a referida cláusula de salvaguarda ou “válvula
de escape” existe: para não prolongar uma situação que tenha deixado de se
justificar[12].
Daqui
resulta, portanto, que a Recorrente se limita a assumir uma visão parcial do
Direito aplicável, esquecendo que a situação jurídica que lhe permite usufruir
da casa por via do acordo subscrito aquando do divórcio é susceptível de ser
alterada nos termos do artigo 988.º do Código do Processo Civil (e, portanto, não
apenas por via da extinção prevista no artigo 1476.º do Código Civil).
É
verdade que o acordo, nos termos em que foi celebrado, não definiu qualquer
prazo ou condição especial para a atribuição da casa de morada de família à
Requerida, mas não é minimamente escamoteável que esta restrição auto-imposta
pelo Requerente (ou se se preferir, acordada e consensual), surge num
determinado contexto (de divórcio) e não no âmbito de um acordo apenas baseado
na autonomia contratual. Ou seja, o acordo homologado só ocorreu porque existiu
um divórcio e no seu âmbito. Foi-o por causa do divórcio.
E
se assim foi, fica necessariamente sujeito ao regime legal que dele decorre,
nomeadamente o dos artigos 1793.º, n.º 3, do Código Civil e do 988.º do Código
do Processo Civil.
A
alterabilidade do acordado e homologado – nomeadamente no que concerne à
atribuição da casa de morada de família – está inerente à sua ocorrência no
âmbito do divórcio.
Fica
assim ultrapassada a questão levantada pela Recorrente no que respeita à imperatividade
do regime legal de extinção do direito de habitação de que beneficia: tendo tal
direito sido criado no âmbito de um processo de divórcio (e dentro de um acordo
que sempre teria de ser feito para permitir a sua homologação), está sempre
sujeito à alterabilidade prevenida pelo artigo 1793.º, n.º 3, do Código Civil e
pelo artigo 988.º do Código do Processo Civil.
*
Podemos,
por fim, verificar se existiu alguma alteração de circunstâncias susceptível de
permitir a alteração do acordado.
A
Requerida-Recorrente entende que não, uma vez que:
-
o Requerente não alegou os factos relativos à situação inicial, caracterizando
a sua situação pessoal, profissional e financeira à data da celebração do
Acordo, não caracterizando onde passou a viver, com quem e quando após a
separação do casal, nem indicando as despesas suas e da Requerida, para
permitir concluir sobre quem mais necessita da casa;
-
a factualidade provada também não permite concluir o que quer que seja acerca
das circunstâncias que que se verificavam à data da data da celebração do Acordo
de atribuição da casa de morada de família.
Claramente
não assiste razão à Recorrente-Requerida:
-
por um lado, porque os factos alegados no Requerimento Inicial são adequados a
caracterizar a situação que o leva a formular o pedido;
- por outro, porque os factos
apurados são particularmente expressivos para caracterizar, não só a alteração
das circunstâncias, como a premência da necessidade[13];
-
por fim, porque, em qualquer caso, e como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra
de 11/06/2019 (Processo n.º 3607/17.3T8PBL-A.C1-António Carvalho Martins), a “providência de atribuição da casa de morada
de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não
alegada pelo requerente ou pelo requerido. Na verdade, tal providência, embora
sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e
3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal
pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e
recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do
CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos
interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua
prova, possam ser oficiosamente supridos”.
Neste
tipo de processos,
como
sublinhou o Desembargador Manuel Caimoto
Jácome no Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2013 (Processo n.º
2891/11.0TBVNG.P1), “importa,
a todo o tempo, estar atento às concretas situações da vida real e evitar
manter situações desajustadas da realidade, com prejuízo das partes envolvidas
e sem refletirem já os interesses em causa”, pelo que importa dar corpo à forma de
conduzir a essas adaptações.
Fernández
Urzainqui,
citado por Nuno de Salter Cid[14], deixou esquematizados de forma
assertiva vários factores que nesta matéria de alteração de circunstâncias podem
permitir a modificação dos acordos ou dos regimes fixados:
“a)
Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de
representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer,
uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo
juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se
postula(...)
b)
Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em
relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou
acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não
resulte tão extraordinária ou transcendental(...)
c)
Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam
distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das
circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio,
como definitiva(...)
d)
E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram
tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram
essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental
da sua determinação”.
Pires de
Lima
e Antunes Varela, no seu Código Civil
Anotado, adiantam como exemplos de circunstâncias supervenientes susceptíveis
de ser relevantes, “a
aquisição de um outro prédio pelo cônjuge arrendatário, em condições de
satisfazer através dele a sua necessidade de habitação própria; a celebração de
novo casamento pelo cônjuge arrendatário, a instalação na casa arrendada de
pessoa com quem o arrendatário passou a viver maritalmente; o desaparecimento
do interesse dos filhos do casal, que pesou decisivamente na celebração do
casamento; etc.”[15].
Ora
verificando o caso dos autos, temos uma situação inicial com:
-
um casal, com dois filhos se divorcia;
-
o cônjuge proprietário da casa de morada de família tem outro/a filho/a
recém-nascido/a e é portador de uma incapacidade permanente global de 61%;
- por acordo, a casa de
morada de família fica com a cônjuge e os dois filhos.
E
a situação actual é a seguinte:
-
a ex-cônjuge continua na casa em questão;
-
os dois filhos do ex-casal já abandonaram a casa;
-
o ex-cônjuge proprietário da casa está a viver numa autocaravana e mantém a
incapacidade permanente global de 61%;
-
a outra filha do cônjuge proprietário da casa tem agora 8 anos, tem problemas
de autismo, e não pode conviver com o pai num espaço deste (nomeadamente em
períodos de visitas), por falta de condições logísticas dele.
Ora,
assumindo que são as necessidades de cada um dos ex-cônjuges e o interesse
de cada um dos filhos do casal, a base dos critérios que fundamentarão a decisão
a proferir (tal como resulta do n.º 1 do artigo 1793º do Código Civil), desde
logo o que respeita ao segundo está ausente, uma vez que ambos deixaram de
viver com a mãe na casa que foi de morada de família[16].
Por
outro lado, é evidente que o interesse dos filhos era essencial para o acordo
celebrado, quer porque era aí que residiam, quer porque esse interesse era um
elemento essencial para a própria homologação do acordo, quer ainda porque isso
justificava e permitia compreender a ausência de contrapartidas para a ocupação
do prédio pela ex-cônjuge e filhos.
Quanto
ao primeiro, diga-se, tal como o fez o já citado Acórdão da Relação de Coimbra
de 11/06/2019, que a “necessidade
da casa (ou, melhor, a premência da necessidade) é o factor principal e
determinante a atender na decisão judicial, porque é a ela que se reportam
tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”, não sendo é
difícil concluir que, neste momento, as necessidades de habitação do Requerente
são acentuadamente superiores às da Recorrente.
O
Requerente vive actualmente numa autocaravana, tem como rendimento um subsídio
de doença de € 501,88 (Facto 19.), tendo tudo um rendimento anual de € 3.727,94
(Facto 18.), mantendo uma incapacidade permanente global de 61% (Facto 7.).
Em
contrapartida, a Requerida vive sem os filhos na casa em questão, tem um
estabelecimento de cabeleireiro e estética (Facto 15.) e tem um rendimento
anual de cerca de 17.000 euros (Factos 16 e 17.).
O
Tribunal a quo, a este propósito, diz
- de forma lapidar – que, este contexto, “leva a ter como pouco provável vir o mesmo a
auferir rendimentos designadamente de trabalho superiores, sendo assim a sua
capacidade de ganho inferior à da Requerida, que explora um negócio e, não
padecendo de limitação equivalente na sua capacidade de trabalho, terá sempre
uma perspectiva mais favorável quanto a possíveis rendimentos de trabalho (ou
empresariais) que lhe permitam arrendar ou adquirir outra habitação.
A
situação financeira (também por força da sua situação de saúde) mais
desfavorável do Requerente é ainda acentuada pela circunstancia, que quanto à
Requerida não se verifica, de aquele ter ainda uma filha menor, para cujo
sustento precisa de contribuir e demonstrou-se que contribui carecendo aliás a
mesma, pelos problemas de saúde de que padece, e como se provou, de terapia e
particular acompanhamento clínico”.
Repare-se
e sublinhe-se que, por força da circunstância de não poder usufruir desta sua
casa (e da outra que tem como usufrutuário o seu pai), está – no mínimo –
impedido de poder construir o seu projecto de vida nela incluindo a sua filha
menor (uma criança com problemas muito específicos e que exigem um
acompanhamento próximo), sendo certo que tem demonstrado uma capacidade
parental assinalável, por (mesmo nas suas condições económico-financeiras) não
deixar de contribuir para os seus gastos (com € 75) e ser um “pai presente”
(quase diariamente com ela).
Para
reforçar a diferente situação dos dois momentos que importa considerar (o do
acordo e o actual), parece-nos relevante sublinhar que o próprio decurso do tempo[17]
introduz aqui um factor, que, aliado às restantes circunstâncias, não pode ser
menosprezado.
Como
se discorreu no Acórdão da Relação de Coimbra de 24/10/2017 (Processo n.º
273/13.9TBCTB-A.C1-Alberto Ruço), em “sede de relações
familiares, o decurso do tempo pode alterar, só por si, as circunstâncias
factuais, mormente quando se trata de crianças na primeira infância, pois estas
crescem de modo acelerado, física e espiritualmente, à medida que o tempo passa
nesses primeiros anos de vida. Por isso, a mera passagem do tempo pode ser
relevante para efeitos de alterar uma decisão. O tribunal poderá tomar medidas
diversas, quanto à mesma criança e à mesma questão, consoante ela seja
recém-nascida (ou tenha um ou dois anos) ou tenha 5, 6 ou 7 anos. E o decurso
do tempo também pode alterar as posturas comportamentais dos progenitores em
relação aos filhos ou ao outro progenitor, porque o decurso do tempo tende a
diluir os ressentimentos e a promover a tolerância e a compreensão das atitudes
alheias, mormente quando anteriormente não se dispunha de informação suficiente
que só o tempo trouxe”.
No
caso dos autos, o tempo serviu para os filhos crescerem e se autonomizarem (os
comuns), para fazerem sentir outras necessidades (a filha), mas serviu também
para tornar mais velhos os intervenientes e reduzir a sua perspectiva de
melhoria de capacidade de trabalho e de ganho (o Requerente).
A
Recorrente entende que não está provada a alteração das circunstâncias, mas
esta resulta evidente da factualidade apurada, da motivação da Sentença do
Tribunal e de tudo quanto já se teve oportunidade de aqui escrever.
In casu, pode mesmo
dizer-se que roçaria a iniquidade que, em circunstâncias como as actuais, em
que a evolução da vida do Requerente não foi para melhor e sendo proprietário
de uma casa (que chegou ao seu património como indemnização pelo acidente que o
vitimou em criança e deu origem aos problemas de saúde que condicionam a sua
capacidade de trabalho), continuasse a viver numa autocaravana e a ex-cônjuge
Recorrente (sem quaisquer limitações alegadas e já sem os filhos a viver consigo)
a dela usufruir em plenitude: não há, aqui, fundamento ou base para sustentar
qualquer solidariedade pós-familiar, nem para argumentar que se justifica a
manutenção de um status quo lógico,
compreensível e justificado no momento da sua geração, mas que actualmente o
não é.
Diga-se,
ainda, que não há qualquer necessidade de apurar quaisquer outros factos, uma
vez que, em face da alteração gritante de circunstâncias, não chega sequer a
ser configurável que se equacionasse a fixação de uma renda (tornando a
Requerida inquilina): em face do circunstancialismo factual alegado (filhos
terem deixado de viver na casa e Requerente ter necessidade dela) teria cabido
à Requerida - no momento processual adequado - alegar e fundamentar as suas
(mais) prementes necessidades daquela habitação e nem o fez, nem conseguiu
obstar à real comprovação do aludido circunstancialismo factual.
Concluindo
como no já citado Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2013, na “verdade, a factualidade
apurada evidencia, a nosso ver, em termos de razoabilidade, equidade e
proporcionalidade”, que a Recorrente-Requerida, “em comparação com a
situação”
do Requerente-Recorrido “precisa,
actualmente, da referenciada casa de habitação para aí viver, sendo essa
necessidade premente”.
Assim,
e em conformidade com o exposto, porque o Tribunal a quo decidiu bem, fundada e fundamentadamente, a Sentença será
confirmada in totum.
* *
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar improcedente a apelação,
confirmando a Sentença recorrida.
Custas
a cargo da Recorrente.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2022
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
[1]
António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo
Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2]
Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em
Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.
[3]
António
Abrantes Geraldes,
Recursos…, página 200.
[4]
António
Abrantes Geraldes,
Recursos…, páginas 201 a 205.
[5]
António
Abrantes Geraldes,
Recursos…, páginas 206-207.
[6]
Anotando-se que,
embora fazendo referência a este acórdão nas suas Alegações, a Recorrente omite
na transcrição que faz, a parte em que se assinala a possível alteração do
acordo, nos termos do artigo 988.º…
[7]
Artigo 988.º
(Valor das resoluções)
1 - Nos processos de jurisdição
voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já
produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a
alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas
posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por
ignorância ou outro motivo ponderoso.
2 - (…)
[8]
Chandra Gracias, A casa de morada de família à luz da
jurisprudência recente, in II
Jornadas de Direito da Família e das Crianças - O Direito e a Pática Forense, [em linha], E-book CEJ-CRLOA, 2018,
página 142, disponível em https://www.cnpdpcj.gov.pt/documents/10182/14804/II+Jornadas+de+Direito+da+Fam%C3%ADlia+e+da+Crian%C3%A7a/454ea0a5-12fa-4c59-ac77-aee0415d7ea9.
[9]
Diogo Leite de Campos-Mónica Martinez de Campos, Lições de Direito da
Família, 3.ª edição, Almedina, 2016, página 305.
[10]
Sandra Passinhas, A casa de morada de família – aspectos
substantivos, in Revista do CEJ,
2021-I, páginas 169 a 194 (183) e,
também, A Atribuição do uso da casa de morada de família nos casos de divórcio
em Portugal: contributo para um “aggiornamento” interpretativo, [em linha] in Actualidad Jurídica Iberoamericana, número 3bis, Noviembre 2015,
páginas 165-191, disponível em http://www.idibe.org/wp-content/uploads/2013/09/6._Sandra_Passinhas_pp._165-191.pdf
[consultado a 14/02/2022].
O Tribunal Constitucional no Acórdão de
13/02/2004 (Acórdão n.º 127/13, no Processo n.º 672/2012-Vítor Gomes, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130127.html),
já decidiu não julgar inconstitucional o artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil,
na parte em que, em caso de divórcio, permite a constituição, por decisão
judicial, de uma relação de arrendamento da casa de morada da família a favor
de um dos ex-cônjuges, quando o imóvel seja um bem próprio do outro cônjuge e
contra a vontade deste, na consideração de que encontra “legitimação na defesa
de um elemento constitucionalmente proclamado como elemento fundamental da
sociedade, sendo meio idóneo a prosseguir essa finalidade e de modo algum
podendo ser acusada de “reduzir a nada” os poderes de disposição, fruição e
utilização, a solução normativa questionada não viola a garantia constitucional
do artigo 62.º da Constituição” e de que “É uma norma de vinculação da
propriedade, mas enquanto incidente sobre um bem em especial e de um tipo de
proprietário e beneficiário: a casa de morada de família e o ex-cônjuge
relativamente ao outro. Cabe, atendendo à imposição constitucional de protecção
da família, nos poderes de determinação legislativa do conteúdo da propriedade
“nos termos da Constituição”.
Todavia, não deixou de sublinhar que “Não
se exclui que outros princípios constitucionais, designadamente os decorrentes
do princípio da proporcionalidade, devam intervir no escrutínio da conformidade
à Constituição de específicos sentidos normativos com que o preceito seja
aplicado. Mas não caberia na competência deste Tribunal – nem isso, aliás, lhe
é pedido, atendo-se o recorrente a uma rigorosa formulação normativa da questão
– determinar se, nas concretas circunstâncias, ocorrem os pressupostos capazes
de justificar a solução. E, ainda que fosse possível configurar normativamente
uma questão que permitisse absorver para o controlo de constitucionalidade tal
realidade, não pode o Tribunal proceder oficiosamente a essa definição, apenas
podendo pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade da norma tal como
o recorrente a identificou”.
[11]
Como assinala Ana Resende, não “se pode, com efeito,
tratar os ex-cônjuges como se nunca houvessem sido casados. É que o divórcio
não pode apagar o passado nem obstar ao desenvolvimento actual de determinadas
consequências do matrimónio. Trata-se como que de uma eficácia póstuma do
vínculo matrimonial, de um efeito ultra-activo do casamento” - Ana Resende, Alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, in II Jornadas de Direito da Família e
das Crianças – direito e prática forense, [em
linha] e-book CEJ-CRLOA, 2018, página 175, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_JornadasFamiliaC2018.pdf
[consultado a 25/11/2021].
[12] É Sandra Passinhas quem afirma que ao
“aplicar o artigo 1793.º num caso concreto, em que esteja em causa a atribuição
da casa de morada de família a um ex-cônjuge, o juiz deve fazer uma
interpretação conforme à Constituição, e aplicá-la apenas quando exista uma
justificação constitucional para a restrição do direito de propriedade do
ex-cônjuge, ou seja, quando filhos ou outros parentes do titular fiquem a viver
na casa. Os juízes devem fazer uma aplicação do direito privado legalmente
positivado em conformidade com os direitos fundamentais por via da
interpretação conforme a constituição. As normas de direito civil que prevejam
a situação sub judice não podem ser
lidas isoladamente, como um complexo normativo separado e auto-suficiente,
devendo antes ser pensadas em conjunto com as normas constitucionalizadoras dos
direitos afectados pelo caso em apreço” (Sandra
Passinhas, A casa…, cit., página 188.
[13]
Sendo que, o Tribunal a quo teve o cuidado de consignar que, nos termos do disposto no
artigo 986.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, foi considerada factualidade
que não foi expressamente alegada pelas partes, por a mesma ter resultado da
prova produzida e revestir relevo para a decisão de mérito.
[14]
Nuno de Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada da
Família no Direito Português, Almedina, 1996, páginas 314 a 316.
[15]
Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado,
Volume IV, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1992, página 571.
Com exemplos similares, Nuno Salter Cid, A protecção…, cit.,
página 315.
Vd., ainda, com interesse, Sandra Cristina Martins Morgado Marques,
A Transmissão da Casa de Morada de Família, [em
linha], Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Coimbra, 2014,
páginas 25 a 42, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B198b13e5-ab4f-47aa-80e3-5e9268214f88%7D.pdf
[consultado a 14/02/2022].
[16]
Sendo de
assinalar que se essa ausência fosse provisória, pontual ou acidental isso
devia ter sido alegado e comprovado no processo, de forma que a referência a
esta possibilidade, por parte da Recorrente, em sede de Alegações é meramente
especulativa e, como tal, inócua.
[17]
E o "tempo
é também na vida do direito um importante factor, um grande modificador das
relações jurídicas", como diz Luís
Cabral de Moncada (Lições de Direito Civil, Parte Geral, II, 2.ª edição,
Atlântida, Coimbra, 1955, página 423).
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