domingo, 13 de março de 2022

Alteração de atribuição da casa de morada de família - o decurso do tempo introduz um factor que não é menosprezável e é preciso estar atento às situações da vida real que estejam desajustadas - RL 22/02/2022

 

Processo n.º 1826/20.4T8CSC.L1

Tribunal a quo - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste-Juízo de Família e Menores de Cascais - Juiz 1

Sumário:

I – A impugnação da matéria de facto em sede de recurso é mais do que uma manifestação de inconformismo inconsequente exigindo, com seriedade, razoabilidade e proporcionalidade, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil:

                                       -  a indicação motivada (sintetizada nas Conclusões) dos concretos factos incorrectamente julgados – n.º 1, alínea a);

                                       - a especificação dos concretos meios probatórios presentes no processo, registados ou gravados (com a indicação das concretas passagens relevantes) – n.º 2, alíneas a) e b) – que imporiam um decisão diferente quanto a cada um dos factos em causa, propondo uma redacção alternativa – n.º 1, alíneas b) e c).

II – No âmbito de um divórcio por mútuo consentimento, um acordo (homologado) subscrito pelos cônjuges onde se diz que “A casa de morada de família sita à Rua (…), fica atribuída ao cônjuge mulher”, cria para esta última um direito real de habitação (artigos 1484.º, 1485.º e 1490.º do Código Civil).

III – Em face do n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, o “regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”, pelo que a situação fixada no acordo referido em II, pode ser alterada em dois tipos de circunstâncias:

                                       - ou com a ocorrência de alguma das causas de extinção previstas pelo artigo 1476.º do Código Civil;

                                       - ou nos termos do n.º 1 do artigo 988.º do Código de Processo Civil (e sem prejuízo dos efeitos já produzidos), com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.

 IV – Este regime legal que impõe a um cônjuge proprietário uma limitação ao seu direito de propriedade exige os maiores cuidados no recurso que a ele se faz, estando fundado em considerações ligadas à garantia constitucional do direito à habitação (artigos 1.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa), forçando – como no caso paralelo dos alimentos a ex-cônjuge – a uma espécie de solidariedade pós-familiar ou pós-conjugal, sendo por isso que existe a cláusula de salvaguarda ou “válvula de escape” decorrente do n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil e do n.º 1 do artigo 988.º do Código de Processo Civil: para não prolongar uma situação que tenha deixado de se justificar.

 V – Um acordo como o referido em II, onde se não define qualquer prazo ou condição especial para a atribuição da casa de morada de família à Requerida, não escamoteia que constitui um restrição auto-imposta pelo Requerente (ou se se preferir, acordada e consensual), surgida num determinado contexto (de divórcio), por causa dele, e não no âmbito de um acordo apenas baseado na autonomia contratual, ficando necessariamente sujeito ao regime legal dos artigos 1793.º, n.º 3, do Código Civil e do 988.º do Código do Processo Civil.

VI - A alterabilidade do acordado e homologado – nomeadamente no que concerne à atribuição da casa de morada de família – está inerente à sua ocorrência no âmbito do divórcio, sendo certo que o decurso do tempo introduz um factor que não pode ser menosprezado (nomeadamente quando estão em causa relações familiares, em que, por exemplo, o crescimento físico e espiritual, de crianças e jovens e necessidades inerentes é susceptível de relevar para efeitos de alterar uma decisão).

VII - Neste tipo de processos importa, a todo o tempo, estar atento às concretas situações da vida real, para evitar manter situações desajustadas da realidade, com prejuízo das partes envolvidas e sem refletirem já os interesses em causa.

VIII – Uma situação em que um casal com dois filhos se divorcia, ficando a ex-cônjuge com os filhos na casa de morada de família, propriedade do outro ex-cônjuge, mas que, anos depois, ela lá continua, os dois filhos já abandonaram a casa e o ex-cônjuge proprietário está a viver numa auto-caravana, não tendo condições para conviver e receber em visita uma outra filha sua, autista, permite a alteração do acordo de atribuição da casa de morada de família, para fazer cessar o direito de habitação da ex-cônjuge.

 

 

 

 

 

 

 

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

 

Relatório

F… intentou a presente acção de alteração do regime de Atribuição da Casa de Morada de Família contra C…, pedindo a alteração do regime fixado com a consequente cessação do Direito da requerida a permanecer na fração autónoma designada pela letra “-” do prédio urbano, destinado a habitação, correspondente ao 2º andar direito, sito na Rua …………, n.º .., lugar de -----------, da União de Freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n.º …., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a descrição n.º ----/---------- da freguesia de Estoril.

Em síntese, alega:

                              - estar já divorciado da Requerida, tendo sido acordado entre ambos que o uso da casa que foi de morada de família era atribuído a esta até que o filho de ambos atingisse a maioridade em Setembro de 2015;

                              - a filha de ambos foi expulsa de casa pela mãe, interpelou a Requerida para que saísse da casa, que constitui um bem próprio seu (do Requerente), o que esta recusou fazer, negando-se mesmo a pagar uma renda como contrapartida pelo uso da casa;

                              - pretender regressar à referida casa, por aí dispor de melhores condições para prestar os cuidados necessários à sua filha menor entretanto nascida, uma vez que vive na casa da sua companheira, que tem condições de habitabilidade inferiores, sendo ainda o imóvel a que respeitam os autos a única casa que possui.

                              - a Requerida sabia da transitoriedade do acordo celebrado quanto ao uso da casa de morada de família, nela vivendo com um companheiro que tem boa situação financeira, ambos podendo arrendar ou comprar outra casa.

 

Notificada, a Requerida veio deduzir oposição, defendendo que:

                                                           - o pedido é inadmissível por visar a cessação do seu direito real de habitação, decorrente do acordo celebrado, e que apenas pode ser extinto nos mesmos termos em que se extingue o usufruto;

                                                                          - não resulta do teor do acordo celebrado entre as partes que o mesmo tenha ficado sujeito a algum termo ou condição;

                                                                          - não foi alegada qualquer circunstância superveniente que, nos termos do disposto nos artigos 1793º/3, do C. Civil e 988º/1, do CPC, a fundamentar a alteração do regime de atribuição da casa de morada de família.

 

Ouvidas as testemunhas arroladas, o Tribunal decidiu “julgar a presente acção procedente, por provada, em consequência alterando o regime fixado por acordo homologado a 18.09.2013 e atribuindo o uso da casa de morada de família a que corresponde a fração autónoma, designada pela letra -, do prédio urbano destinado a habitação, correspondente ao 2º andar direito, sito na Rua --------, n.º --, lugar de -----, da União de Freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ----, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a descrição n.º ----/---------- da freguesia de Estoril ao Requerente F----”.

 

É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Requerida, a qual apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:

1ª A apreciação conjugada de toda a prova produzida não permite dar por assente o Facto Provado 12. nos termos em que o foi;

2ª A prova documental junta aos autos pelo próprio Autor introito da petição inicial, procuração forense, carta junta como Doc. nº 4 com a petição inicial, ofício do Instituto da Segurança Social comunicando o deferimento do pedido de proteção jurídica e documento aviso prévio junto com o requerimento de 14/10/2020 demonstra com segurança que, pelo menos desde 26/04/2019 até à data da instauração da ação, o Autor residia numa casa.

3ª Assim, não pode manter-se a primeira parte do Facto 12., porquanto não corresponde à realidade que o Requerente, desde que deixou de viver com a mãe da sua filha menor, nunca tem esta a pernoitar consigo por não ter uma casa onde a possa receber.

4ª E a restante prova produzida nos autos também não permite que se dê por provada a segunda parte do Facto 12., ou seja, que o Autor viva actualmente numa carrinha tipo auto caravana.

5ª O depoimento da testemunha J…, gravado aos minutos 00:18:28 a 00:1 9:31, revela-se evasivo, inseguro e muito pouco consistente, não assentando em qualquer conhecimento direto relativamente à matéria da segunda parte do Facto 12.

6ª Por sua vez, o depoimento da testemunha S…, gravado aos minutos 00:01:54 a 00:02:33, nada prova acerca de o Autor viver numa autocaravana.

7ª Por outro lado, os depoimentos das testemunhas D… F…, gravado aos minutos 00:01:50 a 00:03:41, e R… M…, gravado aos minutos 00:01:50 a 00 :03:20, confirmam ter visto o Autor a sair normalmente de uma casa com um saco de lixo que foi por no contentor e a entrar novamente nessa mesma casa, o que, de acordo com as regras de experiência e critérios lógicos e racionais, permite inferir que o Autor ali estava a morar.

8ª A circunstância de estas últimas testemunhas se terem deslocado a Alcobaça para presenciar o que se passava, exatamente para vir depor em Tribunal, não afeta a credibilidade do seu depoimento, tanto mais que revelaram espontaneamente essa sua razão de ciência, demonstrando terem conhecimento direto dos factos a que vieram depor.

9ª O Autor apenas posteriormente à entrada da ação veio alegar que tinha sido despejado e que vivia numa autocaravana, o que, porém, é contraditório com a confissão que faz na petição inicial de que estava a viver na casa da sua companheira.

10ª A confissão tem força probatória plena contra o confitente, invalidando só por si qualquer outra prova produzida acerca dessa mesma matéria.

11ª Mesmo que se entenda que tal alegação não constitui uma confissão, demonstra pelo menos a total confusão da alegação do Autor e o desacerto e falta de credibilidade da inerente prova que o mesmo ofereceu aos autos, nomeadamente no que respeita ao depoimento prestado pela testemunha C….

12ª Não sendo a prova produzida nos autos absolutamente segura no sentido de dar por certo que o Autor reside numa autocaravana, deve também eliminar-se a segunda parte do Facto 12.;

13ª De acordo com o teor da caderneta predial junta aos autos, o imóvel referido no Facto 14. corresponde a uma fração autónoma com a seguinte descrição: rés do chão direito com 3 divisões.

14ª Assim, tendo-se o Tribunal baseado expressamente nesse documento, o teor do Facto 14. é incorreto.

15ª Não tendo sido junto aos autos qualquer contrato de arrendamento relativo a esse imóvel, estava vedado ao Tribunal dar por provada a sua existência servindo-se de outro meio de prova, designadamente testemunhal.

16ª Em consequência, o Facto 14. deverá ser alterado passando a ter a seguinte redação:

               14. O Requerente é proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés-do-chão direito com 3 divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai.

17ª O efeito pretendido pelo Autor com a instauração da ação é tão somente a cessação do direito de a Ré usar e habitar a casa de morada de família.

18ª O Autor não pediu que lhe fosse atribuído o uso da casa de morada de família, ao contrário do que se decidiu na Sentença recorrida.

19ª A fração autónoma que corresponde à casa de morada de família é bem próprio do Autor, não fazendo assim sentido que lhe seja atribuído o direito de a usar e habitar por tal direito já estar compreendido no direito de propriedade de que é titular.

20ª A atribuição do direito de uso e habitação da casa de morada de família ao Autor, que dela é proprietário, constitui uma incongruência jurídica.

21ª A atribuição desse direito ao Autor implica a sua extinção no preciso momento da sua constituição pela reunião do direito de uso e da propriedade na mesma pessoa.

22ª O direito atribuído à Ré de usar a casa de morada de família, decorrente do acordo celebrado entre as partes, constitui um verdadeiro e próprio direito real de habitação.

23ª O qual só se poderá extinguir nos termos e causas em que se extingue o usufruto.

24ª Ao dar-se por cessado o direito de uso e habitação da Ré, sem que tenha ocorrido qualquer uma das causas legais de extinção desse direito, a decisão recorrida viola norma imperativa.

25ª No âmbito dos processos de jurisdição voluntária o Tribunal pode condenar em objeto diverso do pedido, não lhe sendo, porém, permitida a postergação de normas imperativas aplicáveis à situação.

26ª Nessa medida, estava vedado ao Tribunal afastar a aplicação da norma imperativa do art. 1476º do Cód. Civil, ex vi art. 1485º do Cód. Civil, a que estava vinculado nos termos do pedido do Autor.

27ª Ao desrespeitar tal norma imperativa, e ao condenar em objeto diverso do pedido, o Tribunal excedeu os limites da condenação impostos no art. 609º do Cód. Proc. Civil.

28ª Sendo, em consequência a Sentença nula nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. e) do Cód. Proc. Civil.

29ª A alteração do regime de atribuição da casa de morada de família só pode ter lugar se ocorrerem circunstâncias supervenientes que justifiquem a sua alteração.

30ª A superveniente alteração das circunstâncias deverá ser substancial, evidenciar sinais de permanência e modificar a base negocial ou os pressupostos fácticos que determinaram a celebração do Acordo.

31ª O Autor nada alegou quanto às circunstâncias que se verificavam à data da celebração do Acordo, nomeadamente quanto à situação pessoal, profissional e financeira de ambas as partes.

32ª A circunstância de se ter dado por provado que atualmente os filhos do Autor e da Ré já não vivem com esta não é suficiente para fazer cessar ou alterar o direito de uso e habitação atribuído à Ré nos termos do acordo.

33ª As declarações das partes nos acordos de atribuição de uso de casa de morada de família devem ser interpretadas no sentido da vontade real dos declarantes, desde que tal tenha um mínimo de correspondência com o texto onde estão exaradas.

34ª O texto do Acordo dos autos não consente qualquer interpretação no sentido de que o direito de uso atribuído à Ré cessaria ou deveria ser alterado quando o filho atingisse a maioridade ou deixasse de viver com a Mãe.

35ª Não ficou estabelecido no texto do Acordo qualquer limitação temporal ou condição resolutiva do direito de uso atribuído à Ré.

36ª O texto do Acordo e a factualidade provada não permitem concluir que um dos motivos determinantes da atribuição do uso da casa à Ré foi o facto de os filhos terem permanecido a viver com esta.

37ª O Tribunal deu apenas por provado que, atualmente, os filhos do Autor e da Ré não se encontram a residir com esta, não se tendo, porém, apurado se se trata de uma situação meramente temporária ou definitiva.

38ª O nascimento da filha menor do Autor não constitui uma circunstância superveniente, por já ser nascida aquando do divórcio do casal e da decisão de homologação do Acordo dos autos

39ª A factualidade provada, interpretada conjugadamente, demonstra que o Autor continua a ter o seu centro de vida, familiar e pessoal, na zona de Alcobaça, onde reside a sua filha menor e a Mãe desta.

40ª Nada do que o Autor alegou para justificar a necessidade de passar a viver no Estoril resultou provado.

41ª Ao invés, resulta dos autos com segurança que todo o apoio médico e educacional de que a sua filha necessita está a ser-lhe disponibilizado na zona de Alcobaça.

42ª Não tendo ficado demonstrada uma necessidade real, atual e séria de o Autor passar a residir na casa de morada de família, no Estoril.

43ª Em face da impossibilidade legal de fazer cessar o direito de uso e habitação da Ré, e de acordo com a factualidade provada, a única alteração admissível ao regime fixado por acordo passaria pela estipulação de uma renda pelo Tribunal, a fixar de acordo com os rendimentos e despesas das partes.

44ª Os autos não comportam ainda os elementos necessários à sua fixação, especialmente quanto às despesas correntes que Autor e Ré suportam.

45ª Devendo, em consequência, ordenar-se a baixa dos autos para ampliação da matéria factual pertinente.

46ª Decidindo como decidiu, o Tribunal recorrido violou, designadamente, as normas dos arts. 238º, nº 1; 352º, 358º, nº 1, 364º, nº 1; 393º, nº 1, 1069º; 1476º; 1485º e 1793º, nº 3, do Cod. Civil e 609º, nº 1 e 988º, nº 1, do Cód. Proc. Civil.

 

O Requerente apresentou Contra-Alegações, nas quais concluiu que:

                                               - o Tribunal recorrido apreciou devidamente os factos, tendo-os subsumido ao Direito de forma exemplar, reflectindo um apurado rigor técnico jurídico e uma enorme preocupação na aplicação criteriosa do direito ao caso concreto;

                                                           - tecer quaisquer considerações para além da douta fundamentação elaborada pelo Tribunal a quo seria supérfluo, portanto inútil, podendo mesmo retirar o brilho próprio do aresto em análise, obnubilando-o;

                                                           - a aqui Requerida tinha obrigação de saber que o acordo celebrado quanto à morada de família teria uma vigência transitória, tendo ficado provado que a requerida vive até aos dias de hoje na casa do Requerente, juntamente com o seu atual companheiro e que os filhos do extinto casal já nem sequer habitam com esta, (cfr. ponto 13. dos factos provados);

                                                           - Requerida e companheiro têm boa condição económica para arrendar uma casa e não viver às expensas do Requerente que, infelizmente, atravessa graves dificuldades económicas e não tem sequer possibilidades para arrendar uma casa, já que lhe escasseiam rendimentos e saúde para fazer face a rendas.

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES[1]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará:

                                   - verificar a matéria dada como provada nos Factos 12. e 14.;

                                   - verificar se existe alguma nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, por ter ocorrido uma condenação em objecto diverso do pedido;

                                   - verificar da presença das condições para alteração da atribuição da casa de morada de família (nomeadamente se existe algum direito de uso e habitação por parte da ex-cônjuge) e se os factos apurados permitem fazer a alteração pretendida, bem assim como da eventual necessidade de os autos baixarem à 1.ª Instância para ampliação da matéria de facto.

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

 

Fundamentação de Facto

Releva para a presente decisão a seguinte factualidade:

1. Requerente e Requerida casaram a 04.08.1991, tendo sido decretado o seu divórcio por decisão da conservatória do registo civil de 18.09.2013, transitada em julgado nessa mesma data;

2. No âmbito do processo de divórcio, Requerente e Requerida celebraram acordo quanto ao destino na casa de morada de família, o qual foi homologado, tendo o seguinte teor:

“A casa de morada de família sita à Rua Dr. …., n.º …, ---, 2765---- Estoril, fica atribuída ao cônjuge mulher”.

3. No mesmo processo, acordaram as partes na regulação das responsabilidades parentais relativamente ao seu filho, então menor, N….., nascido a 02.09.1997, fixando a residência deste junto da mãe.

4. A casa que foi de morada de família corresponde à fração autónoma designada pela letra - do prédio urbano, destinado a habitação, correspondente ao 2.º andar direito, sito na Rua ------, n.º --, lugar de -----, da União de Freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ----, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a descrição n.º ----/-------------- da freguesia de Estoril.

5. O referido imóvel tem a propriedade registada a favor do Requerente, pela Ap. 13, de 26.09.1997, sendo facto constitutivo a dação em cumprimento.

6. A 02.11.2006, Requerente e Requerida celebraram, como mutuários, dois contratos de mútuo com hipoteca e fiança, com o Banco Santander Totta, visando a realização de obras de beneficiação da referida casa.

7. O Requerente sofreu atropelamento aos cinco anos de idade, tendo sido sujeito a diversas cirurgias e transfusões de sangue e sofrido lesões permanentes, em virtude do que padece de uma incapacidade permanente global de 61%.

8. O imóvel acima identificado foi transmitido ao Requerente, em dação, para pagamento de indemnização em decorrência do referido atropelamento de que foi vítima.

9. O Requerente viveu em união de facto com C….., com quem tem uma filha nascida a 07.07.2013, actualmente com oito anos de idade, a qual sofre perturbação do espectro do autismo, com atraso global do desenvolvimento psicomotor, associado e défice na linguagem e obstipação, carecendo entre o mais de intervenção sistemática de equipa de intervenção precoce e terapia da fala.

10. A referida filha menor do Requerente não consegue falar e carece totalmente de autonomia, sendo necessária a sua supervisão permanente.

11. O Requerente paga mensalmente à mãe da sua filha a quantia de € 75,00 para contribuir para o sustento da mesma.

12. O Requerente, desde que deixou de viver com a mãe da sua filha menor, nunca tem esta a pernoitar consigo por não ter uma casa onde a possa receber, vivendo actualmente numa carrinha tipo auto-caravana.

13. Aquando da separação entre o Requerente e a Requerida, ambos os filhos destes ficaram a residir com a mãe, o que já não sucede actualmente.

14. O Requerente é proprietário de um outro imóvel, do qual tem usufruto vitalício o seu pai, tendo apenas uma divisão e encontrando-se arrendado.

15. A Requerida tem um estabelecimento de cabeleireiro e estética.

16. A Requerida declarou, quanto ao ano de 2019, um rendimento total de € 17.728,90 não tendo sido considerado fiscalmente qualquer rendimento face às perdas declaradas.

17. A Requerida declarou, quanto ao ano de 2020, um rendimento global de € 17.074,85.

18. O Requerente declarou, quanto ao ano de 2019, um rendimento global de € 3.727,94.

19. O Requerente aufere subsídio de doença no valor mensal de € 501,88.

 

**

 


Apreciação da Matéria de Facto

O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[2], nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:

            1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);

            2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).

 

Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[3], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[4], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[5].

 

Verificadas as Alegações e Conclusões do Réu-Recorrente este diverge apenas no que concerne ao Facto 12. (que entende deve ser considerado não provado) e ao Facto 14. (cuja redacção haveria de ser: “O Requerente é proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés do chão direito com 3 divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai”).

O Tribunal a quo justifica a factualidade que apurou da seguinte forma:

“Relativamente ao descrito no ponto 12, quanto à actual residência do Requerente numa carrinha tipo auto-caravana, foi também considerado o depoimento da testemunha J…………, pai do Requerente, que o confirmou, e da testemunha S…. (ex-companheiro da filha mais velha do Requerente), que referiu ver aquele numa carrinha desse género, quanto vai a sua casa para ver os netos”.

Ainda quanto a este facto o Tribunal considerou também outro depoimento (da testemunha C….), quando refere “Foi ainda tido em conta o depoimento da testemunha C… que referiu ter vivido em união de facto com o Requerente situação que declarou não se manter na actualidade a qual depôs de forma igualmente credível e coerente, mostrando-se assertiva e espontânea nas suas declarações, através das quais deu conhecimento da factualidade descrita nos pontos 9 a 12”.

Neste âmbito e com reflexos nesta matéria, o Tribunal tem ainda o cuidado de referir o seguinte: “as testemunhas D… e R… referiram ter visto, em Novembro de 2020, o Requerente sair de uma casa em Alcobaça, ir despejar o lixo e voltar a entrar na mesma, abrindo a porta.

Ora, dos referidos depoimentos resultou desde logo que as testemunhas em questão se deslocaram até junto da referida casa de Alcobaça, juntamente com o filho do Requerente e da Requerida, propositadamente para aí tentar ver o Requerente e posteriormente prestar depoimento nos presentes autos, por forma a fazer prova de que este se mantinha a residir com a companheira.

Tais diligências assumidamente encetadas pelas testemunhas em questão, com o único propósito de virem a prestar depoimento nestes autos em determinado sentido, desde logo levaria a questionar a respectiva credibilidade.

Por outro lado, e de todo o modo, o facto de o Requerente ter sido visto numa concreta ocasião a sair de uma casa a qual, em rigor, se desconhece se corresponde à da testemunha C… não é, em si mesma, apta a demonstrar que aquele ali resida (inúmeras circunstâncias poderiam explicar que o Requerente saísse da casa da sua ex-companheira, com quem mantém boa relação, e onde vive a sua filha, indo despejar o lixo e voltando a entrar, independentemente de lá residir ou não) nem, por isso mesmo, a pôr em causa o que resulta do depoimento desta última que, como acima se deixou escrito, se reputou de perfeitamente credível, coerente e espontâneo, sendo sem dúvida o conhecimento desta na matéria em questão muito superior ao das referidas testemunhas”.

 

Este Facto 12. poderia estar decomposto em três partes, porque – efectivamente – tem três factos incorporados: o requerente deixou de viver com a mãe da sua filha (1), nunca tem esta a pernoitar consigo por não ter uma casa onde a possa receber (2), o requerente vive actualmente numa carrinha autocaravana (3).

Ouvida a gravação de toda a prova testemunhal produzida, não é susceptível de dúvida razoável nenhum desses factos, desde logo em face do testemunho (por conhecimento) directo, claro, expressivo, assertivo, coerente, imparcial e credível da testemunha C….

De facto, esta testemunha, que foi companheira do Requerente até 2018 e é mãe de uma filha em comum, confirmou quer o final do seu relacionamento de facto, quer as boas relações que com ele mantém, quer o contexto decorrente de ser cuidadora de uma filha com problemas de autismo, quer do esforço que o pai faz para ajudar e acompanhar e da impossibilidade de fazerem neste momento uma guarda partilhada por ele não ter um espaço que o permita (e, como mãe cuidadora isso sempre seria um factor premente na sua apreciação), quer o local em que ele vive actualmente.

E explicou e contextualizou o porquê de o requerente ir muitas a vezes a sua casa (adquirida pelos seus pais), quase diariamente (até porque a autocaravana onde reside está parqueada perto da casa), para poder estar com a filha, sendo que até tem a chave para lá ir alimentar os animais de companhia quando ela própria lá não está.

Os extractos de depoimentos que a Recorrente transcreve em nada contrariam o quadro factual que resultou adquirido, sendo que a “questão do lixo”, que numa circunstância normal poderia permitir outras conclusões, neste caso, previamente contextualizado pela testemunha C…, torna perfeitamente compreensível que um ex-companheiro, que com frequência quase diária frequente a casa desta, vá ocasionalmente despejar o lixo da casa.

O Tribunal a quo abordou a questão e fê-lo bem, explicando a forma como valorizou os depoimentos em causa.

Por aqui, portanto, nada há a alterar ao Facto 12.

 

A Recorrente pretende ainda:

                       - dar relevância à morada que o Requerente indica na Petição Inicial e na Procuração: ora, isso corresponderá a uma morada antiga (aliás a própria testemunha Clarisse deixou constância disso ao referir que o Requerente por dificuldades financeiras teria deixado de poder pagar a renda da casa onde tinham vivido e por isso estava na já referida auto-caravana) e daí não é possível extrair quaisquer outras conclusões (nomeadamente perante a clara prova produzida);

                       - dar relevância ao artigo 11.º da Petição Inicial (“É que neste momento vive em casa da sua companheira que tem condições de habitabilidade bastante inferiores à sua casa aqui objeto dos presentes Autos”) que, pressupostamente, consubstanciaria a confissão de que continuaria a viver com a ex-companheira: é uma questão de jogo de palavras, de semântica, e em que a Recorrente não tem razão, uma vez que este artigo vem na sequência do 10. (“Aliada ao facto de o requerente pretender regressar ao Estoril de modo a proporcionar todos os cuidados médicos que a sua filha mais nova necessita, cfr. documento n.º 6 que aqui se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido”).

O Requerente limita-se a dizer que a casa do Estoril tem melhores condições de habitabilidade do que a da companheira com quem a filha de ambos reside.

Esta é a leitura linear dos dois artigos, no contexto do que consta da Petição Inicial, sendo abusiva a pretensão de qualquer confissão.

 

Em conclusão, nada se altera quanto ao Facto 12, em nenhuma das suas vertentes.

**

Quanto ao Facto 14. (“O Requerente é proprietário de um outro imóvel, do qual tem usufruto vitalício o seu pai, tendo apenas uma divisão e encontrando-se arrendado”).

O Tribunal refere que “Para prova do descrito no ponto 14 foi considerado o teor da caderneta predial urbana do imóvel em causa, junta pela Requerida, conjugada com o depoimento de J… que, de forma segura e tida por isenta, deu conta do arrendamento de tal imóvel e da composição deste”.

A Recorrente pretende que o Facto 14. passe a dizer que “O Requerente é proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés do chão direito com 3 divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai”, porque é isso o que resulta da caderneta predial e porque o arrendamento não pode ser dado como provado por não constar de documento escrito.

Embora se tenha como algo irrelevante, de facto, fica mais clara a referência à descrição do rés do chão com três divisões (que não é necessariamente, em conversa comum, distinto do que consta escrito: “uma divisão”, para além de sala e cozinha) e, por isso se corrigirá a redacção em conformidade.

No que respeita ao arrendamento, nada obsta a que se dê como provado o que consta do facto e tal como dele consta, uma vez que se trata de uma circunstância completamente lateral ao objecto dos presentes autos (relevando apenas para o efeito de se saber que o imóvel em causa está ocupado).

Em consequência do exposto, apenas se altera a redacção do Facto 14., nos termos já assinalados e em termos de passar a dizer: 

“O Requerente é proprietário de um outro imóvel, correspondente a um rés do chão direito com 3 divisões, do qual tem usufruto vitalício o seu pai e que se encontrando arrendado”.

 

***

 

 

Fundamentação de Direito

A primeira das questões a abordar neste ponto é a da verificação se existe alguma nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, por ter ocorrido uma condenação em objecto diverso do pedido.

O pedido formulado pelo Requerente, logo no início do seu Requerimento inicial é o de “REQUERER ALTERAÇAO DO REGIME FIXADO QUANTO À CASA DE MORADA DE FAMÍLIA”, terminando por requerer “a alteração do regime fixado quanto à morada de família, nos termos do presente articulado e documentos juntos, com a consequente cessação do Direito da requerida a permanecer na fração autónoma designada pela letra ‘-’ do prédio urbano, destinado a habitação, correspondente ao 2.º andar direito, sito na Rua ------------ , n.º --, lugar de ------------, da União de Freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ----, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a descrição n.º ----/---------- da freguesia do Estoril”.

 

O Tribunal a quo, na Sentença em análise, termina por decidir “julgar a presente acção procedente, por provada, em consequência alterando o regime fixado por acordo homologado a 18.09.2013 e atribuindo o uso da casa de morada de família a que corresponde a fração (…) ao Requerente F---”.

 

A Recorrente pretende que o Requerente quer apenas a cessação do direito da Requerida usar e habitar aquela que foi a casa de morada de família e que nunca peticiona que lhe seja atribuído o uso da fracção autónoma em causa, pelo que o Tribunal estaria impedido de condenar em algo distinto do que foi peticionado.

 

Neste ponto mais do que uma questão de semântica, a Recorrente-Requerida joga com as palavras, atingindo o cume quando diz que o Tribunal não pode atribuir “um direito a alguém que já o tem”…

Só que esquece que o Requerente não tinha o direito de usar e habitar aquela que foi a casa de morada de família, pelo que o direito que o Tribunal lhe atribui ele não o tinha…

Acabamos por ficar (como a própria Requerida assinala), diante de uma situação de confusão, em que se junta o direito de propriedade do bem (que nunca foi retirado ao Requerente), com o de poder dele usufruir na plenitude.

Mas o Tribunal não atribui nada que o Requerente não tivesse pedido. Pelo contrário.

O Requerente pede para se alterar o regime fixado “com a consequente cessação do Direito da requerida a permanecer na fração autónoma” e o Tribunal dá-lhe razão, atribuindo-lhe o uso da casa.

De forma alguma o Tribunal vai além do que é pedido, ou condena em coisa distinta do que se pretendia.

Inexiste, portanto, a pretendida nulidade.

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Resta a apreciação do que verdadeiramente está em causa nos presentes autos.

Requerente e Requerida estiveram casados, formaram uma família, que viveu num prédio pertença do primeiro.

Decidindo cessar a sua relação através de um divórcio consensualizado, elaboraram todos os acordos necessários incluindo o da casa de morada de família, nela incluindo esta cláusula: “A casa de morada de família sita à Rua Dr. ……….., n.º ---, 2º Dt.º, 2765---- Estoril, fica atribuída ao cônjuge mulher”.

O Divórcio ocorreu em 2013 e, com o presente processo, pretende-se alterar esta situação, de forma a que o prédio em causa deixe de estar atribuído à ex-cônjuge (e volte, portanto, para o seu proprietário).

 

O Tribunal a quo decidiu julgar procedente a acção utilizando a seguinte argumentação e processo de raciocínio:

               I - o artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil, permite ao Tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal;

                II - o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do Tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária;

               III - no caso de ocorrerem circunstâncias supervenientes que o justifiquem, o regime fixado para o uso da casa de morada de família, pode ser alterado nos termos do artigo 988.º, n.º 1, do CPC;

               IV - da factualidade apurada resulta que, aquando da celebração do aludido acordo, as partes regularam ainda as responsabilidades parentais relativamente ao seu filho então ainda menor, ficando este a residir com a mãe, juntamente com a outra filha (essa, já maior), sendo que, neste momento, os dois filhos já ali não residem;

               V - face às regras da experiência comum, a presença dos dois filhos na referida casa terá sido (pelo menos) um dos motivos determinantes da atribuição do seu uso à ex-cônjuge;

               VI - o facto de os dois filhos comuns do casal já não residirem no prédio em causa constitui uma alteração significativa e atendível das circunstâncias;

               VII - para essa alteração contribui ainda o facto de o Requerente ter tido mais uma filha (nascida de outro relacionamento), agora com oito anos, a qual não pode ter consigo em períodos de visita com pernoita, por não dispor de casa onde o possa fazer;

               VIII - recorrendo aos critérios abertos do artigo 1793.º, n.º 1 (necessidades de cada um e interesse dos filhos do casal), actualmente as necessidades de habitação do Requerente estão acentuadas por respeitarem também à possibilidade de ter a sua filha menor consigo (pelo menos, em períodos de visitas), sendo que, os outros filhos, já não residem com a mãe;

               IX - qualquer das partes tem parcos rendimentos, embora os do Requerente sejam inferiores, pois subsiste unicamente do subsidio de doença que aufere (incapacidade permanente global de 61%), sendo pouco provável que venha a auferir rendimentos de trabalho superiores e tendo uma capacidade de ganho inferior à da Requerida que não tem limitações físicas e explora um negócio, o que fornece uma perspectiva mais favorável quanto a possíveis rendimentos de trabalho (ou empresariais) que lhe permitam arrendar ou adquirir outra habitação;

               X - acresce a situação da nova filha do Requerente, para cujo sustento este também contribui, mais necessário ainda em face dos problemas e necessidades específicas que apresenta (autismo);

               XI - releva ainda a circunstância apurada de a referida casa pertencer ao Requerente, por via de uma dação em cumprimento, como indemnização pelo grave acidente que o vitimou em criança e que originou os problemas de saúde determinantes da incapacidade permanente de 61% que padece;

               XII - a atribuição do uso da casa ao Requerente não carece de operar através do arrendamento a que alude o artigo 1793.º, n.ºs 1 e 2, por se tratar de um bem próprio seu.

 

O raciocínio é linear e claro, mas a Requerida entende que a acção foi mal decidida porque, com o acordo inicialmente celebrado, ficou titular de um direito real de habitação que só podia ser extinto nos termos dos artigos 1485.º e 1476.º do Código Civil.

 

Vejamos melhor o enquadramento jurídico da situação.

E a primeira questão a abordar passa pela qualificação jurídica do direito que resulta para o beneficiário da atribuição da casa que foi morada de família.

O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 01 de Julho de 2021 (Processo n.º 5484/18.8T8VNG.P1.S1-Abrantes Geraldes), relativamente a uma situação em que existiu uma cláusula semelhante à dos presentes autos, escreveu o seguinte: “No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória Registo Civil (art. 1775º, nº 1, al. d), e art. 12º, nº 1, al. b), do DL nº 272/01, de 13-10), foi apresentado um acordo subscrito por ambos, nos termos do qual “a casa, enquanto habitação da requerente mulher CC e da filha DD, fica destinada à utilização habitacional da requerente mulher, a título gratuito”.

A homologação deste acordo, juntamente com a homologação do divórcio por mútuo consentimento, resolveu a questão de direito material regulada no art. 1793º do CC em torno da atribuição da casa de morada de família.

Existem, aliás, múltiplas formas de dar execução a tal direito que, em função das circunstâncias, pode ser conferido a qualquer dos cônjuges. Umas dependem do facto de o bem imóvel em causa ser bem comum do casal ou bem próprio de algum dos cônjuges; outras do facto de a casa de morada de família estar instalada em imóvel sujeito a contrato de arrendamento ou mesmo a um contrato de comodato. Em qualquer dos casos, importa sempre considerar os efeitos que, dentro dos limites legais, podem resultar do acordo de vontades estabelecido pelos cônjuges interessados relativamente à regulação dessa esfera de interesses.

Tratando-se de uma situação em que a casa de morada de família estava implantada num imóvel que era propriedade exclusiva de um dos cônjuges, Teixeira de Sousa, citado por Nuno Salter Cid, em A proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, p. 305, nota, 33, aponta algumas soluções que podem passar por ser “arrendada, doada, emprestada, dada de usufruto a um dos cônjuges e pode ainda constituir-se um direito de habitação a favor de um dos cônjuges”.

No caso, a cedência gratuita por parte do cônjuge proprietário da utilização do imóvel para habitação do outro cônjuge (e da filha de ambos) poderia encontrar acolhimento na figura do contrato de comodato ou na figura do direito real de habitação.

Mas não seria indiferente uma ou outra qualificação, pois enquanto o contrato de comodato confere ao comodatário um mero direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, insuscetível de produzir efeitos relativamente a terceiros (art. 406º, nº 1, do CC), já o direito real de habitação produz eficácia erga omnes, como é típico dos direitos reais.

Ora, sem embargo das exigências formais que podem servir para diferenciar a constituição de um ou de outro vínculo jurídico, a qualificação de um acordo estabelecido entre os cônjuges que se pretendem divorciar fica essencialmente dependente do teor das declarações de vontade e do contexto em que são emitidas.

Característica do contrato de comodato é a natureza tendencialmente precária ou limitada, envolvendo necessariamente, ainda que de modo implícito, a obrigação de restituir o bem comodatado (art. 1129º do CC). Já no direito real de habitação prevalece o objetivo de satisfazer a necessidade de habitação do usuário e da sua família (art. 1484º), de modo semelhante ao que, por via legal, está previsto no art. 2103º-A ou, relativamente à união de facto, no art. 5º da Lei nº 7/01, de 12-5, na redação introduzida pela Lei nº 23/10, de 30-8.

No caso, é como direito real de habitação que deve ser qualificado o acordo a que os autos se reportam, tal como, noutra situação semelhante, foi assumido por este Supremo no Ac. de 8-5-13, 1064/11, www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere, além do mais, que:

“O direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo consentimento entre a ré e o seu ex-marido que teve por objeto a utilização da casa de morada de família, destinando esta à habitação da ré tendo em conta (e por medida) as suas necessidades e da sua família ao tempo em que o divórcio foi decretado, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação (arts. 1484º, 1485º e 1490º CC)”.

Menezes Leitão, em Direitos Reais, 5ª ed., p. 378, nota 749, citando um aresto da Relação de Lisboa, de 18-2-93, CJ, t. I, p. 149, refere que “tem sido ainda comum constituir, nos acordos de divórcio, um direito de uso e habitação sobre a casa de morada de família a favor de um dos cônjuges … sujeito ao regime geral dos arts. 1484º e ss. do CC”.

5. Assim ocorreu no caso concreto, tanto mais que a qualificação jurídica do acordo nem sequer é questionada pelas partes, depois de ambas as instâncias o terem qualificaram como constitutivo de um direito real de habitação.

A constituição de tal direito real de gozo representou, em termos objetivos, uma oneração do direito de propriedade sobre o imóvel na titularidade do ex-cônjuge EE, a que correspondeu a compressão desse direito real absoluto na justa medida dos poderes de uso que foram conferidos à 1ª R.

O direito real de habitação encontra cobertura legal nos arts. 1484º e ss. do CC, sendo que a sua constituição por via de contrato também é assegurada pelo art. 1440º, ex vi art. 1485º, sendo que o acordo foi apresentado perante o conservador do registo civil para a sua homologação e por este foi homologado nos seus precisos termos.

A partir de então, se caso o direito de propriedade se tivesse mantido na esfera do ex-cônjuge EE, o direito real de habitação manter-se-ia e seria eficaz independentemente do registo (art. 4º, nº 1, do CRP) até que ocorresse alguma das causas de extinção previstas no art. 1476º, para onde também remete o art. 1485º do CC, ou, porventura, até que o acordo fosse alterado, nos termos do regime especificamente previsto para os processos de jurisdição voluntária, atenta a norma genérica do nº 1 do art. 988º do CPC (semelhante ao que, relativamente à opção pelo arrendamento resulta do nº 3 do art. 1783º do CC)”.

 

Subscrevendo a análise[6], sublinha-se, em face do n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, o “regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.

Daqui decorre que a situação fixada no acordo celebrado entre Requerente e Requerida pode ser alterada em dois tipos de circunstâncias:

                       - ou com a ocorrência de alguma das causas de extinção previstas pelo artigo 1476.º do Código Civil;

                       - ou nos termos do n.º 1[7] do artigo 988.º do Código de Processo Civil (e sem prejuízo dos efeitos já produzidos), com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.

 

Ao contrário do que a Recorrente pretende, enquanto ex-cônjuge, não ficou a beneficiar de um direito (quase) eterno ou imutável (consequência essa que seria – no mínimo – iníqua).

Fica com enormes garantias de segurança para a sua situação jurídica (decorrentes da previsão dos citados normativos), mas sujeita a esta cláusula de salvaguarda das circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração do regime fixado.

Como assinala de forma certeira e lúcida Chandra Gracias ”a providência a que alude o art. 990.º do Código de Processo Civil (…) pressupõe como elemento objectivo fáctico, que já tenha havido decretamento do divórcio”, estando “legalmente enquadrada como um efeito do divórcio”, sendo importante “deixar bem vincado que esta providência não se caracteriza pela sua provisoriedade, mas sim pela sua alterabilidade, expressa no art. 1793.º n.º 3, do Código Civil, e que é típica dos processos de jurisdição voluntária – art. 988.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”[8] (assim, também, RP 26/05/2015, Processo n.º 5523/13.9TBVNG-B.P1-Carlos Querido; RG 17/09/2020, Processo n.º 114/14.0TCGMR-A.G1-Ana Cristina Duarte).

 

É necessário ter em consideração que este regime legal que se permite impor a um cônjuge proprietário um arrendamento suscita mesmo problemas de constitucionalidade que têm vindo a ser discutidos e abordados por Diogo Leite de Campos/Mónica Martinez de Campos[9] e Sandra Passinhas[10], e que, portanto, exige sempre os maiores cuidados no recurso que a ele se faz.

Para além de considerações ligadas à garantia constitucional do direito à habitação (artigos 1.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa), tem de se ter em conta que se trata de um regime que, pode dizer-se assim, obriga, força – tal como no caso paralelo dos alimentos a ex-cônjuge – a uma espécie de solidariedade pós-familiar ou pós-conjugal[11], sendo exactamente por isso que a referida cláusula de salvaguarda ou “válvula de escape” existe: para não prolongar uma situação que tenha deixado de se justificar[12].

 

Daqui resulta, portanto, que a Recorrente se limita a assumir uma visão parcial do Direito aplicável, esquecendo que a situação jurídica que lhe permite usufruir da casa por via do acordo subscrito aquando do divórcio é susceptível de ser alterada nos termos do artigo 988.º do Código do Processo Civil (e, portanto, não apenas por via da extinção prevista no artigo 1476.º do Código Civil).

 

É verdade que o acordo, nos termos em que foi celebrado, não definiu qualquer prazo ou condição especial para a atribuição da casa de morada de família à Requerida, mas não é minimamente escamoteável que esta restrição auto-imposta pelo Requerente (ou se se preferir, acordada e consensual), surge num determinado contexto (de divórcio) e não no âmbito de um acordo apenas baseado na autonomia contratual. Ou seja, o acordo homologado só ocorreu porque existiu um divórcio e no seu âmbito. Foi-o por causa do divórcio.

E se assim foi, fica necessariamente sujeito ao regime legal que dele decorre, nomeadamente o dos artigos 1793.º, n.º 3, do Código Civil e do 988.º do Código do Processo Civil.

A alterabilidade do acordado e homologado – nomeadamente no que concerne à atribuição da casa de morada de família – está inerente à sua ocorrência no âmbito do divórcio.

 

Fica assim ultrapassada a questão levantada pela Recorrente no que respeita à imperatividade do regime legal de extinção do direito de habitação de que beneficia: tendo tal direito sido criado no âmbito de um processo de divórcio (e dentro de um acordo que sempre teria de ser feito para permitir a sua homologação), está sempre sujeito à alterabilidade prevenida pelo artigo 1793.º, n.º 3, do Código Civil e pelo artigo 988.º do Código do Processo Civil.

*

 

Podemos, por fim, verificar se existiu alguma alteração de circunstâncias susceptível de permitir a alteração do acordado.

A Requerida-Recorrente entende que não, uma vez que:

                       - o Requerente não alegou os factos relativos à situação inicial, caracterizando a sua situação pessoal, profissional e financeira à data da celebração do Acordo, não caracterizando onde passou a viver, com quem e quando após a separação do casal, nem indicando as despesas suas e da Requerida, para permitir concluir sobre quem mais necessita da casa;

                       - a factualidade provada também não permite concluir o que quer que seja acerca das circunstâncias que que se verificavam à data da data da celebração do Acordo de atribuição da casa de morada de família.

 

Claramente não assiste razão à Recorrente-Requerida:

                                    - por um lado, porque os factos alegados no Requerimento Inicial são adequados a caracterizar a situação que o leva a formular o pedido;

                                    - por outro, porque os factos apurados são particularmente expressivos para caracterizar, não só a alteração das circunstâncias, como a premência da necessidade[13];

                                   - por fim, porque, em qualquer caso, e como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/06/2019 (Processo n.º 3607/17.3T8PBL-A.C1-António Carvalho Martins), a “providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido. Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos”.

 

Neste tipo de processos, como sublinhou o Desembargador Manuel Caimoto Jácome no Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2013 (Processo n.º 2891/11.0TBVNG.P1), “importa, a todo o tempo, estar atento às concretas situações da vida real e evitar manter situações desajustadas da realidade, com prejuízo das partes envolvidas e sem refletirem já os interesses em causa, pelo que importa dar corpo à forma de conduzir a essas adaptações.

Fernández Urzainqui, citado por Nuno de Salter Cid[14], deixou esquematizados de forma assertiva vários factores que nesta matéria de alteração de circunstâncias podem permitir a modificação dos acordos ou dos regimes fixados:

“a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula(...)

b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental(...)

c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva(...)

d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação”.

 

Pires de Lima e Antunes Varela, no seu Código Civil Anotado, adiantam como exemplos de circunstâncias supervenientes susceptíveis de ser relevantes, “a aquisição de um outro prédio pelo cônjuge arrendatário, em condições de satisfazer através dele a sua necessidade de habitação própria; a celebração de novo casamento pelo cônjuge arrendatário, a instalação na casa arrendada de pessoa com quem o arrendatário passou a viver maritalmente; o desaparecimento do interesse dos filhos do casal, que pesou decisivamente na celebração do casamento; etc.”[15].

 

Ora verificando o caso dos autos, temos uma situação inicial com:

                       - um casal, com dois filhos se divorcia;

                       - o cônjuge proprietário da casa de morada de família tem outro/a filho/a recém-nascido/a e é portador de uma incapacidade permanente global de 61%;

                       - por acordo, a casa de morada de família fica com a cônjuge e os dois filhos.

 

E a situação actual é a seguinte:

                       - a ex-cônjuge continua na casa em questão;

                       - os dois filhos do ex-casal já abandonaram a casa;

                       - o ex-cônjuge proprietário da casa está a viver numa autocaravana e mantém a incapacidade permanente global de 61%;

                       - a outra filha do cônjuge proprietário da casa tem agora 8 anos, tem problemas de autismo, e não pode conviver com o pai num espaço deste (nomeadamente em períodos de visitas), por falta de condições logísticas dele.

 

Ora, assumindo que são as necessidades de cada um dos ex-cônjuges e o interesse de cada um dos filhos do casal, a base dos critérios que fundamentarão a decisão a proferir (tal como resulta do n.º 1 do artigo 1793º do Código Civil), desde logo o que respeita ao segundo está ausente, uma vez que ambos deixaram de viver com a mãe na casa que foi de morada de família[16].

Por outro lado, é evidente que o interesse dos filhos era essencial para o acordo celebrado, quer porque era aí que residiam, quer porque esse interesse era um elemento essencial para a própria homologação do acordo, quer ainda porque isso justificava e permitia compreender a ausência de contrapartidas para a ocupação do prédio pela ex-cônjuge e filhos.

 

Quanto ao primeiro, diga-se, tal como o fez o já citado Acórdão da Relação de Coimbra de 11/06/2019, que a “necessidade da casa (ou, melhor, a premência da necessidade) é o factor principal e determinante a atender na decisão judicial, porque é a ela que se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”, não sendo é difícil concluir que, neste momento, as necessidades de habitação do Requerente são acentuadamente superiores às da Recorrente.

O Requerente vive actualmente numa autocaravana, tem como rendimento um subsídio de doença de € 501,88 (Facto 19.), tendo tudo um rendimento anual de € 3.727,94 (Facto 18.), mantendo uma incapacidade permanente global de 61% (Facto 7.).

Em contrapartida, a Requerida vive sem os filhos na casa em questão, tem um estabelecimento de cabeleireiro e estética (Facto 15.) e tem um rendimento anual de cerca de 17.000 euros (Factos 16 e 17.).

 

O Tribunal a quo, a este propósito, diz - de forma lapidar – que, este contexto, “leva a ter como pouco provável vir o mesmo a auferir rendimentos designadamente de trabalho superiores, sendo assim a sua capacidade de ganho inferior à da Requerida, que explora um negócio e, não padecendo de limitação equivalente na sua capacidade de trabalho, terá sempre uma perspectiva mais favorável quanto a possíveis rendimentos de trabalho (ou empresariais) que lhe permitam arrendar ou adquirir outra habitação.

A situação financeira (também por força da sua situação de saúde) mais desfavorável do Requerente é ainda acentuada pela circunstancia, que quanto à Requerida não se verifica, de aquele ter ainda uma filha menor, para cujo sustento precisa de contribuir e demonstrou-se que contribui carecendo aliás a mesma, pelos problemas de saúde de que padece, e como se provou, de terapia e particular acompanhamento clínico”.

 

Repare-se e sublinhe-se que, por força da circunstância de não poder usufruir desta sua casa (e da outra que tem como usufrutuário o seu pai), está – no mínimo – impedido de poder construir o seu projecto de vida nela incluindo a sua filha menor (uma criança com problemas muito específicos e que exigem um acompanhamento próximo), sendo certo que tem demonstrado uma capacidade parental assinalável, por (mesmo nas suas condições económico-financeiras) não deixar de contribuir para os seus gastos (com € 75) e ser um “pai presente” (quase diariamente com ela).

 

Para reforçar a diferente situação dos dois momentos que importa considerar (o do acordo e o actual), parece-nos relevante sublinhar que o próprio decurso do tempo[17] introduz aqui um factor, que, aliado às restantes circunstâncias, não pode ser menosprezado.

Como se discorreu no Acórdão da Relação de Coimbra de 24/10/2017 (Processo n.º 273/13.9TBCTB-A.C1-Alberto Ruço), em “sede de relações familiares, o decurso do tempo pode alterar, só por si, as circunstâncias factuais, mormente quando se trata de crianças na primeira infância, pois estas crescem de modo acelerado, física e espiritualmente, à medida que o tempo passa nesses primeiros anos de vida. Por isso, a mera passagem do tempo pode ser relevante para efeitos de alterar uma decisão. O tribunal poderá tomar medidas diversas, quanto à mesma criança e à mesma questão, consoante ela seja recém-nascida (ou tenha um ou dois anos) ou tenha 5, 6 ou 7 anos. E o decurso do tempo também pode alterar as posturas comportamentais dos progenitores em relação aos filhos ou ao outro progenitor, porque o decurso do tempo tende a diluir os ressentimentos e a promover a tolerância e a compreensão das atitudes alheias, mormente quando anteriormente não se dispunha de informação suficiente que só o tempo trouxe”.

 

No caso dos autos, o tempo serviu para os filhos crescerem e se autonomizarem (os comuns), para fazerem sentir outras necessidades (a filha), mas serviu também para tornar mais velhos os intervenientes e reduzir a sua perspectiva de melhoria de capacidade de trabalho e de ganho (o Requerente).

 

A Recorrente entende que não está provada a alteração das circunstâncias, mas esta resulta evidente da factualidade apurada, da motivação da Sentença do Tribunal e de tudo quanto já se teve oportunidade de aqui escrever.

 

In casu, pode mesmo dizer-se que roçaria a iniquidade que, em circunstâncias como as actuais, em que a evolução da vida do Requerente não foi para melhor e sendo proprietário de uma casa (que chegou ao seu património como indemnização pelo acidente que o vitimou em criança e deu origem aos problemas de saúde que condicionam a sua capacidade de trabalho), continuasse a viver numa autocaravana e a ex-cônjuge Recorrente (sem quaisquer limitações alegadas e já sem os filhos a viver consigo) a dela usufruir em plenitude: não há, aqui, fundamento ou base para sustentar qualquer solidariedade pós-familiar, nem para argumentar que se justifica a manutenção de um status quo lógico, compreensível e justificado no momento da sua geração, mas que actualmente o não é.

 

Diga-se, ainda, que não há qualquer necessidade de apurar quaisquer outros factos, uma vez que, em face da alteração gritante de circunstâncias, não chega sequer a ser configurável que se equacionasse a fixação de uma renda (tornando a Requerida inquilina): em face do circunstancialismo factual alegado (filhos terem deixado de viver na casa e Requerente ter necessidade dela) teria cabido à Requerida - no momento processual adequado - alegar e fundamentar as suas (mais) prementes necessidades daquela habitação e nem o fez, nem conseguiu obstar à real comprovação do aludido circunstancialismo factual.

 

Concluindo como no já citado Acórdão da Relação do Porto de 25/02/2013, na “verdade, a factualidade apurada evidencia, a nosso ver, em termos de razoabilidade, equidade e proporcionalidade”, que a Recorrente-Requerida, “em comparação com a situação” do Requerente-Recorrido “precisa, actualmente, da referenciada casa de habitação para aí viver, sendo essa necessidade premente”.

 

Assim, e em conformidade com o exposto, porque o Tribunal a quo decidiu bem, fundada e fundamentadamente, a Sentença será confirmada in totum.

 

 

 

* *

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação, confirmando a Sentença recorrida.

 

Custas a cargo da Recorrente.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

***

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2022

 Edgar Taborda Lopes

Luís Filipe Pires de Sousa 

José Capacete



[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.

[2] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.

[3] António Abrantes Geraldes, Recursos…, página 200.

[4] António Abrantes Geraldes, Recursos…, páginas 201 a 205.

[5] António Abrantes Geraldes, Recursos…, páginas 206-207.

[6] Anotando-se que, embora fazendo referência a este acórdão nas suas Alegações, a Recorrente omite na transcrição que faz, a parte em que se assinala a possível alteração do acordo, nos termos do artigo 988.º…

[7] Artigo 988.º

(Valor das resoluções)

1 - Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.

2 - (…)

[8] Chandra Gracias, A casa de morada de família à luz da jurisprudência recente, in II Jornadas de Direito da Família e das Crianças - O Direito e a Pática Forense, [em linha], E-book CEJ-CRLOA, 2018, página 142, disponível em https://www.cnpdpcj.gov.pt/documents/10182/14804/II+Jornadas+de+Direito+da+Fam%C3%ADlia+e+da+Crian%C3%A7a/454ea0a5-12fa-4c59-ac77-aee0415d7ea9.

[9] Diogo Leite de Campos-Mónica Martinez de Campos, Lições de Direito da Família, 3.ª edição, Almedina, 2016, página 305. 

[10] Sandra Passinhas, A casa de morada de família – aspectos substantivos, in Revista do CEJ, 2021-I, páginas 169 a 194 (183) e, também, A Atribuição do uso da casa de morada de família nos casos de divórcio em Portugal: contributo para um “aggiornamento” interpretativo, [em linha] in Actualidad Jurídica Iberoamericana, número 3bis, Noviembre 2015, páginas 165-191, disponível em http://www.idibe.org/wp-content/uploads/2013/09/6._Sandra_Passinhas_pp._165-191.pdf [consultado a 14/02/2022].

O Tribunal Constitucional no Acórdão de 13/02/2004 (Acórdão n.º 127/13, no Processo n.º 672/2012-Vítor Gomes, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130127.html), já decidiu não julgar inconstitucional o artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil, na parte em que, em caso de divórcio, permite a constituição, por decisão judicial, de uma relação de arrendamento da casa de morada da família a favor de um dos ex-cônjuges, quando o imóvel seja um bem próprio do outro cônjuge e contra a vontade deste, na consideração de que encontra “legitimação na defesa de um elemento constitucionalmente proclamado como elemento fundamental da sociedade, sendo meio idóneo a prosseguir essa finalidade e de modo algum podendo ser acusada de “reduzir a nada” os poderes de disposição, fruição e utilização, a solução normativa questionada não viola a garantia constitucional do artigo 62.º da Constituição” e de que “É uma norma de vinculação da propriedade, mas enquanto incidente sobre um bem em especial e de um tipo de proprietário e beneficiário: a casa de morada de família e o ex-cônjuge relativamente ao outro. Cabe, atendendo à imposição constitucional de protecção da família, nos poderes de determinação legislativa do conteúdo da propriedade “nos termos da Constituição”.

Todavia, não deixou de sublinhar que “Não se exclui que outros princípios constitucionais, designadamente os decorrentes do princípio da proporcionalidade, devam intervir no escrutínio da conformidade à Constituição de específicos sentidos normativos com que o preceito seja aplicado. Mas não caberia na competência deste Tribunal – nem isso, aliás, lhe é pedido, atendo-se o recorrente a uma rigorosa formulação normativa da questão – determinar se, nas concretas circunstâncias, ocorrem os pressupostos capazes de justificar a solução. E, ainda que fosse possível configurar normativamente uma questão que permitisse absorver para o controlo de constitucionalidade tal realidade, não pode o Tribunal proceder oficiosamente a essa definição, apenas podendo pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade da norma tal como o recorrente a identificou”.

[11] Como assinala Ana Resende, não “se pode, com efeito, tratar os ex-cônjuges como se nunca houvessem sido casados. É que o divórcio não pode apagar o passado nem obstar ao desenvolvimento actual de determinadas consequências do matrimónio. Trata-se como que de uma eficácia póstuma do vínculo matrimonial, de um efeito ultra-activo do  casamento” - Ana Resende, Alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, in II Jornadas de Direito da Família e das Crianças – direito e prática forense, [em linha] e-book CEJ-CRLOA, 2018, página 175, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_JornadasFamiliaC2018.pdf [consultado a 25/11/2021].

[12] É Sandra Passinhas quem afirma que ao “aplicar o artigo 1793.º num caso concreto, em que esteja em causa a atribuição da casa de morada de família a um ex-cônjuge, o juiz deve fazer uma interpretação conforme à Constituição, e aplicá-la apenas quando exista uma justificação constitucional para a restrição do direito de propriedade do ex-cônjuge, ou seja, quando filhos ou outros parentes do titular fiquem a viver na casa. Os juízes devem fazer uma aplicação do direito privado legalmente positivado em conformidade com os direitos fundamentais por via da interpretação conforme a constituição. As normas de direito civil que prevejam a situação sub judice não podem ser lidas isoladamente, como um complexo normativo separado e auto-suficiente, devendo antes ser pensadas em conjunto com as normas constitucionalizadoras dos direitos afectados pelo caso em apreço” (Sandra Passinhas, A casa…, cit., página 188.

[13] Sendo que, o Tribunal a quo teve o cuidado de consignar que, nos termos do disposto no artigo 986.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, foi considerada factualidade que não foi expressamente alegada pelas partes, por a mesma ter resultado da prova produzida e revestir relevo para a decisão de mérito.

[14] Nuno de Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, Almedina, 1996, páginas 314 a 316.

[15] Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume IV, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1992, página 571.

Com exemplos similares, Nuno Salter Cid, A protecção…, cit., página 315.

Vd., ainda, com interesse, Sandra Cristina Martins Morgado Marques, A Transmissão da Casa de Morada de Família, [em linha], Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Coimbra, 2014, páginas 25 a 42, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B198b13e5-ab4f-47aa-80e3-5e9268214f88%7D.pdf [consultado a 14/02/2022].

[16] Sendo de assinalar que se essa ausência fosse provisória, pontual ou acidental isso devia ter sido alegado e comprovado no processo, de forma que a referência a esta possibilidade, por parte da Recorrente, em sede de Alegações é meramente especulativa e, como tal, inócua.

[17] E o "tempo é também na vida do direito um importante factor, um grande modificador das relações jurídicas", como diz Luís Cabral de Moncada (Lições de Direito Civil, Parte Geral, II, 2.ª edição, Atlântida, Coimbra, 1955, página 423).

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