domingo, 7 de novembro de 2021

Empréstimo para aquisição de casa de morada de família de cônjuges com regime de separação: divórcio e regime até à liquidação do empréstimo

A vida jurídica de uma obrigação solidária de dois devedores, casados em regime de separação e, posteriormente, divorciados, tem dois momentos distintos que podem implicar diferente tratamento: no decurso do casamento (sob regime de separação) entre os devedores solidários; no decurso do período entre o divórcio e a liquidação do empréstimo que deu origem à dívida.

            Sumário:

I – Devem ser considerados não impugnados (e. como tal, assentes), nos termos do artigo 574.º do Código de Processo Civil, os factos alegados na Contestação-Reconvenção que não foram impugnados na Réplica que se lhe seguiu, mas apenas num articulado posterior surgido na sequência de um despacho de aperfeiçoamento da Reconvenção respeitante a outra factualidade.

II –O pagamento pela seguradora de um dos mutuários da sua parte (por força da ocorrência de uma situação de invalidez), situa-se no plano das relações segurado-seguradora, não afectando as relações externas da obrigação solidária, pelo que, independentemente desse pagamento, esta se mantém para com o Banco até total liquidação do empréstimo (sendo que, no âmbito das relações internas o valor pago relevará para efeitos de um eventual direito de regresso, após a extinção da obrigação).

III – A vida jurídica de uma obrigação solidária de dois devedores, casados em regime de separação e, posteriormente, divorciados, tem dois momentos distintos que podem implicar diferente tratamento: no decurso do casamento (sob regime de separação) entre os devedores solidários; no decurso do período entre o divórcio e a liquidação do empréstimo que deu origem à dívida.

IV – No primeiro momento (no decurso do casamento), apesar do regime de separação, a vida financeira do casal não deixa de estar enquadrada pelas normas que regem os efeitos do casamento, pois a “interpenetração patrimonial própria da plena comunhão de vida” é evidenciada mesmo quando é esse o regime de bens aplicável,

V - Tendo o empréstimo que deu origem à obrigação solidária servido para a aquisição da casa de morada de família, os valores pagos e entregues por um dos devedores solidários para liquidação do empréstimo (nesse primeiro período) começam por ser enquadrados como um “encargo da vida familiar”, nos termos do artigo 1676.º, n.º 1, do Código Civil.

VI – Com a reforma legislativa de 2008, foi eliminada a presunção de renúncia que constava do n.º 2 do artigo 1676.º do Código Civil, pelo que o cônjuge que se considere prejudicado e que pretenda exigir do outro a correspondente compensação, tem o ónus de provar os factos constitutivos da sua pretensão, de acordo com as regras gerais do ónus da prova (provar que a sua contribuição para os encargos da vida familiar foi consideravelmente superior ao previsto no n.º 1 do artigo 1676.º, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, com prejuízos patrimoniais importantes).

VII - A aferição da necessidade de compensação a um dos cônjuges por ter ido para lá do expectável no seu sacrifício em prol da “vida em comum”, não se faz com base num mero critério quantitativo ou monetário da sua contribuição, mas sim pelo critério do sacrifício da contribuição em prol da vida familiar que impõe a obtenção de um equilíbrio.

VIII – Esta averiguação complexa implica um particular cuidado na alegação e prova dos factos que descrevam a sua realidade da vida comum do casal (gastos, despesas e pagamentos, rendimentos, horários, lides domésticas, actividades em conjunto ou com o/a(s) filho/a(s), tempos nelas utilizados, tempos dedicados a cuidá-lo/a(s) - incluindo na educação -, vidas profissionais de cada um, existência ou não de apoios familiares ou empregadas, etc., etc., etc…), que permitam vislumbrar um quadro com uma imagem definida do seu sacrifício excessivo, da sua renúncia excessiva aos seus interesses em prol da vida em comum, relativamente ao outro cônjuge.

IX – Quando essa alegação e prova não é feita, e no respeitante a este primeiro momento, os valores entregues pelo devedor solidário na constância do casamento, para pagamento de capital e juros do empréstimo da casa de morada de família, têm de considerar-se contribuições para as necessidades dos encargos da vida familiar, sem que tais valores possam servir para qualquer tipo de compensação.

X – No que respeita ao segundo momento (entre o divórcio e a extinção da obrigação solidária), estando em causa apenas as relações internas entre os devedores, nos termos do artigo 524.º do Código Civil, apenas haverá que verificar o que cada um pagou, assim definindo a medida do que tem de devolver ao outro por direito de regresso.

 

 

 

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

 

Relatório

M………………………. intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o réu F………………….. em que peticiona a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 42.176,76 €, acrescida de juros à taxa legal, contados desde 08.06.2016, até à data da devolução, a título de direito de regresso.

A Autora alega, em síntese, que foi casada com o réu, no regime de separação de bens (tendo o casamento sido dissolvido, por divórcio, decretado por sentença proferida em 26.10.2010), sendo que com ele foi titular (em compropriedade e em partes iguais) de um prédio urbano (inscrito na matriz sob o artigo 2297.º e descrito na Conservatória do Registo Predial de C………..-2.ª Secção, sob o n.º 299), o qual foi adquirido em 2013 por recurso a crédito concedido pelo BCP.

Este prédio foi vendido no âmbito de acção judicial para sua divisão, na qual o Banco credor (BCP) reclamou o seu crédito (então no montante de 184.979,75 €, reconhecido por sentença de 14.01.2015).

Ora, a Autora ficou reformada por invalidez a partir de 31/12/2014, motivo pelo qual a seguradora (Ocidental Seguros), pagou ao referido BCP a quantia de 86.849,74 € (correspondente metade do débito, à data, da responsabilidade da autora), motivo pelo qual este requereu que tal valor fosse reduzido à quantia reclamada.

Assim, o prédio foi vendido pelo valor de 235.100 € (em 16.03.2015), tendo o BCP recebido da Seguradora a quantia de 86.849,74 €, o que veio comunicar aos autos em 17.03.2015.

A sentença de graduação dos créditos determinou que, pagas as custas, do remanescente do produto da venda seriam pagos, em primeiro lugar, o crédito reclamado, e, em segundo lugar, “as quotas partes de cada um dos proprietários em partes iguais”.

Retirados 56,76 € de custas ao produto da venda (235.100 €), os 235.044,24 € restantes haveriam de ser divididos por Autora e Réu (117.522,12 €, a cada um).

Todavia, o que sucedeu foi que ao valor da venda 235.100 € foram deduzidas as custas (56,76 €) e o montante ainda em dívida (82.746,42 €, mais juros e imposto de selo, pelo que foi o montante de 150.690,72 € que foi dividido em duas partes iguais de 75.345,36 €.

Com base nisto, entende a Autora que tendo já pago a sua metade do crédito reclamado (86.849,74 €), acabou por receber menos 42.176,76 € do que devia e que ficaram na posse do Réu (117.522,12 € que recebeu – 75.345,36 € que deveria ter recebido), valor esse que está na posse do referido Réu desde 08.06.2016, e que, por esta via pretende receber por direito de regresso.

 

Houve Contestação-Reconvenção por parte do Réu, na qual defendeu a falta de fundamento da acção, peticionado a condenação da Autora a pagar-lhe o montante de 57.696,37 €, acrescido de juros.

A posição do Réu passou por afirmar que durante a vigência do crédito amortizou, da responsabilidade da autora, o montante de 44.257,69 € (a que acrescem juros de mora vencidos de 13.168,68 €), pelo que, operada a devida compensação, o réu é ainda credor da autora pelo montante de 13.125,36 €.

Por outro lado, afirma que desde a sentença de divórcio efectuou amortizações do crédito de 46.008,50 € (a que devem acrescer juros de mora de 7.282,42 €, no total de 53.290,32 €, reclamando da autora o pagamento de 57.696,37 € e, operada a compensação com o crédito reclamado pela autora, tem a haver dela o    remanescente de 13.125,36 €.

 

Na Réplica, a Autora pugnou pela improcedência da reconvenção, sustentando que a matéria da contestação se mostra contrariada pela admissão que o réu efectuou da matéria da petição inicial, que ao réu não assistente qualquer direito de retenção da quantia paga pela Seguradora que é valor próprio da autora, que o réu não discrimina os valores alegadamente pagos,  que - em todo o caso - sempre se verificaria prescrição de juros e que, desde 27.01.2015 (data em que a Seguradora efectuou o pagamento), cessaram quaisquer obrigações da Autora, pelo que os valores de capital e juros desde aí devidos nunca seriam da sua responsabilidade.

 

Convidado a aperfeiçoar a Contestação/Reconvenção (concretizando  o cálculo, taxas e datas dos juros que calculou, bem como os pagamentos a que alude), veio o Réu-Reconvinte esclarecer que os montantes por si pagos oforam nos montantes e datas que se acham expressos e indicados no documento que junta; que pagou, durante a vida do indicado crédito hipotecário, o valor global de 89.541,92 € (que se decompõe em amortizações de capital pela quantia de 62.552,25 € e da quantia de 26.898,67 €, a título de juros; que foram assim consideradas todas as amortizações de capital feitas, ao longo da vida do empréstimo, e debitadas em conta, e todas as liquidadas e pagas a título de juros, entre 26/12/2003 e 25/06/2016, pelo que o réu sempre teria, e terá, a haver, da Autora o montante de 44.770,96 €, a que acrescem os respectivos juros de mora, calculados à taxa de 4%, desde a data de vencimento de cada prestação, em 13.283,15 €, tudo assim no valor de 58.054,11 €.

Volta o Réu a concluir que seria, e será, credor da Autora de, pelo menos, o valor de 13.284,11 € (58.054,11 € de amortizações de capital + juros pagos ao BCP) - deduzido de metade do valor pago pela Ocidental Seguros 43.424,87 € (86.849,74 € : 2).

Conclui reclamando a título de reconvenção, 58.054,11 (e não 57.696,37 €), operando, sendo procedente o pedido da Autora a compensação, tendo então a haver desta, o montante de 13.483,10 €.

 

Em resposta, a Autora defendeu que, durante o casamento e até Abril de 2007, a prestação bancária para amortização do empréstimo concedido para aquisição da casa, era paga com as remunerações do trabalho de ambos, sem que alguma vez tenha sido, sequer falada, a separação das despesas entre ambos (porque no início ou durante o casamento nada foi estipulado sobre a divisão das despesas que a cada um coubesse pagar, seria de presumir a renúncia por parte do Réu a exigir à Autora qualquer compensação, como refere o n.º 2 do artigo 1676.º do Código Civil, não lhe assistindo o direito de exigir o pagamento de qualquer valor reportado a esse período e até ao trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio).

Por outro lado, desde a data da sentença do divórcio e até Dezembro de 2014 o montante das prestações de capital pagas ao Banco é de 29. 000,06 € e esta não é a sede para o Réu reclamar da autora a compensação de valores por ele pagos ao BCP do divórcio até à data da incapacidade da Autora (sendo que o Réu, reclamou o pagamento de indemnizações, rendas, despesas, através da acção n.º 2311/11.0TBCSC, que correu pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal de Cascais, que foi julgada improcedente por Sentença de 07.08.2013).

 

Realizado o julgamento foi proferida Sentença que decretou os factos provados e não provados e, a final, julgou:

A - a acção procedente por provada, em consequência do que condenou o réu F…………………, a pagar à autora, M…………….., a quantia de 42.176,76 € (correspondente a capital), acrescida dos juros, à taxa de juros civis, vencidos desde 15.11.2017 até 24.02.2021 (no montante de 5.528,04 €) e dos vincendos, até integral cumprimento, absolvendo o Réu dos restantes juros peticionados;

B - o pedido reconvencional improcedente, por não provado, em consequência do que dele absolveu a reconvinda M……………….

 

O Réu-Reconvindo recorreu da Sentença lavrando as seguintes Conclusões:

1     - Em conformidade com as peças processuais: p.i., contestação/ reconvenção e réplica, a matéria de facto dada como provada, designadamente, face ao disposto no art. 574.º do C.P.C. não podia ser a que consta na sentença, já que deveriam ser tidos como provados outros factos.

 

2     - Estão nestas condições os factos que consta nos artigos art.º 8.º, 9.º, 10.º e 11.º da contestação / reconvenção.

 

3     - Assim, deverá ser dado como provado que:

                               a) “…..o crédito hipotecário em referência nos autos foi sempre pago e suportado integralmente pelo R.”.

                               b) “sendo o respectivo valor debitado em conta daquele com o n.º 9762371 do Millennium BCP”.

                               c) “Nunca a A. pagou ou suportou qualquer valor do indicado empréstimo contratualizado com o BCP”

                               d) Mais, deu nota, no art.º 11.º da contestação que “pagou o R., durante a vida do indicado crédito hipotecário, o valor global de € 88.515,38, sendo € 61.525,71 em amortizações de capital e € 26.898,67 a título de juros, tudo conforme documento n.º 1 que a final se junta e ora se dá aqui por reproduzido para todos os devidos efeitos.”

                               e) Deverá ser dado como provado, já que nunca foi impugnado, e se acha em complemento com os documentos juntos com a p.i., designadamente os documentos 6 e 9, e porque NUNCA foi o mesmo impugnado pela A., o qual tem o seguinte teor: “ DECLARAÇÃO DE CAPITAL E JUROS PAGOS O Banco Comercial Português S.A., sociedade aberta, com sede na Praça D. João I, n.º 28, no Porto, com 5.600.738.053,72 Euros de capital social, matriculado na Conservatória do Registo Comercial do Porto, com número único de matrícula e de identificação fiscal 501 525 882, declara, para os devidos efeitos e conforme solicitação dos interessados, que M……………., contribuinte número ------------------ e F…………………., contribuinte número -----------------, são titulares de um empréstimo destinado a Habitação Própria Permanente - Aquisição, designado internamente com o número 436061573, tendo liquidado no período compreendido entre 27 de novembro de 2003 e 22 de julho de 2016, as quantias discriminadas no quadro anexo. Por ser verdade e ter sido pedido o declara. Lisboa, 28 de Novembro de 2017 Pelo Banco Comercial Português, S.A. (assinaturas elegíveis)”

 

4. E, conforme referido no texto, fazendo parte integrante do dito documento encontra-se uma tabela referente às prestações do dito empréstimo, com os quadros contendo a seguinte informação: data de vencimento; data de pagamento; o valor do capital amortizado; o valor do juro, os juros de mora, o montante e; o saldo, que se verificava após o pagamento de cada prestação.

 

5. Deverá ser admitido e considerado que o referido documento é o espelho quanto aos pagamentos efectuados na vida do empréstimo.

 

6. Conforme resulta do doc. n.º 3 junto à p.i,, em conjugação com o documento n.º1 junto à contestação e anteriormente referido, deverá em qualquer caso ser considerado que o valor inicial do empréstimo foi de € 225.000,00.

 

7. Tratando-se de obrigações solidárias da A. e do R, ora Apelada e Apelante, o que importa para apurar qualquer crédito que um tenha para com o outro, em conformidade com o direito de regresso instituído no art.º 524.º do Código Civil, não é o valor que conste de dívida relativamente ao credor original (no caso o BCP) numa determinada data, mas antes e outrossim, há que considerar a dívida e os montantes pagos para amortização da mesma e juros desde o seu início e no caso até ao seu termo, sob pena de não se sabendo os valores que foram pagos por cada um não se consegue apurar o saldo que um do outro seja credor.

 

8. Ao ser simplisticamente considerado o referido valor de € 86.848,88 pago pela indemnização referente à Apólice de Seguro que cobria a A., e deduzida tal quantia ao valor que àquela data 27/01/2015, se encontrava em dívida, que era de € 172.672,08, para se apurar quem deve a quem, olvidando-se todos os valores que ao longo do empréstimo foram pagos, e por quem, não é admissível.

 

 9. Na verdade, o saldo da dívida de € 172.672,08 que se verificava em 27/01/2015, sendo o valor do empréstimo de € 225.000,00, só ocorre porque ao longo da vida do mesmo foram sendo realizados pagamentos de juros e capital.

 

10. Aliás, e por tal facto, é que o saldo devedor, em 25/01/2014 era de € 184.979,75 (ponto 6 da matéria de facto dada como provada) e, em 27/01/2015 era de € 172.672,08, conforme se pode verificar pelo doc. n.º 1 junto á contestação e pelos docs 1. Daí, a A. afirmar que o valor pago pela seguradora, agora em Janeiro de 2015, correspondia a metade do débito (art.º 6.º da p.i)

 

11. O BCP vem em 15/07/2017 informar que, nessa data, o valor que estava em débito era de € 82.746,42, veja-se aliás o ponto dos 18 dos factos dados como provados.

 

12. Tal só se verifica, uma vez que no referido período de 25/02/2014 a 25/12/2014, foram sendo feitos pagamentos de amortização de capital € 12.307,67 e de juros € 195,45, ou seja, foi pago o montante total de € 12.503,12, tendo-se por referência documento n.º 1 junto à contestação em conjugação com os demais valores dos documentos referentes ao empréstimo.

 

13. Pode-se verificar, isto mesmo, se ao valor de € 184.979,75 se deduzir o valor da indemnização entregue pela seguradora, já que se obtém por tal operação, o valor de € 98.129,26 e nunca o dito valor de 82.746,42 €, que estava depois a ser reclamado pelo BCP e se acha dado como facto assente na sentença, no Ponto 18.

 

14. Mais, há um juízo e afirmação errada na sentença, com consequências óbvias, quando na mesma se escreve que “Com efeito, do crédito reclamado pelo credor hipotecário (184.979,75 €), a quota parte da autora, de 86.849,74 €, foi integralmente paga pela seguradora, pelo que, do produto da venda, deduzidas as custas, e aplicado o regime da responsabilidade entre devedores, a autora caberia a proporção de 50% do remanescente”.

 Na verdade, sem prejuízo de quaisquer outras questões já levantadas, metade de 184.979,75 são € 92.489,87 e não € 86.849,74, o que não deixa de ser evidenciado da adesão à ficção construída pela A., sem a devida ponderação das coisas, sempre em evidente e inexplicável prejuízo do recorrente.

 

15. Pelo que nesses termos ocorreu uma deficiente interpretação e aplicação do disposto no art.º 524.º do Código Civil na sentença sob recurso.

 

16. Por outro lado, há que ter em atenção e considerar, desde logo, que não tendo ocorrido quaisquer vicissitudes na vida do empréstimo contraído junto do BCP, nada tendo quanto a tal sido alegado, os termos do respectivo pagamento, é matéria pessoal da A., e relativamente à qual a mesma tão pouco podia ou pode, razoavelmente, alegar qualquer ignorância ou desconhecimento, o que em bom rigor esta nem fez.

 

17. E, por isso mesmo, tendo a A. sido notificada da contestação reconvenção, para além de não ter colocado em crise o referido documento, igualmente, tão pouco, reitera-se, impugnou os já ditos artigos 8.º a 11.º da contestação.

 

18. Mais, tão pouco foram aqueles colocados em crise, pela Réplica por si só, ou sequer por esta em conjugação com a p.i.., já que na referida peça, a A. outrossim, sugere que deva ser dada como provada, face à contestação reconvenção do R., ora Apelante, variada factualidade que pela mesma se acha referida na sua petição inicial, mas não impugna, nada diz, relativamente àqueles factos pessoais, designadamente como já referidos os invocados pelo R., e que inclusivamente não podiam deixar de se considerar factos pessoais.

 

19. Não concedendo, em bom rigor, o que foi somente colocado em causa pela A. foram os juros reclamados pelo Reconvinte, ou e não concedendo, os valores em concreto devido a manifestos erros de cálculo admitidos pelo R., mas de menor importância para a boa decisão da causa.

 

20. Registe-se, em qualquer caso, para que dúvidas não haja, que os juros reclamados pelo R. não têm a ver com quaisquer juros pagos ao BCP referentes ao crédito hipotecário, tem isso sim a ver com os juros que eram reclamados à A. face aos pagamentos (amortizações de capital e juros) que tinham sido feitos pelo R. ao BCP no decorrer do empréstimo, e que relativamente aos quais a A. nada tinha pago.

 

21. Tendo o R., por despacho de que foi notificado em 05/2018, sido convidado a aperfeiçoar a sua contestação/reconvenção, concretizando o cálculo, taxas e datas dos juros que haviam sido por si calculados no art.º 14.º, bem como a concretizar os pagamentos a que alude em 11.º, 13.º, 14.º, 19. e 20.º da contestação, este admitiu logo a questão da confusão que estava ocorrendo quanto à questão dos juros por si reclamados.

 

22. E, por tal facto, em cumprimento deste despacho, e porque o mesmo tão pouco era passível de recurso, o R. /reconvinte afirmou, reiterou, no art.º 1 que. “os pagamentos feitos ao BCP pelo R. Reconvinte, foram-no nos montantes e datas que se acham expressos e indicados no doc. n.º 1 que o mesmo juntou na sua contestação reconvenção, e que ora se dá aqui por 49 reproduzido, em conta de que é titular com o n.º 9762372, conforme havia sido alegado no art.º 8.º da contestação / reconvenção.

 

23. Procedendo ainda, como determinado ao cálculo dos juros vencidos relativamente a cada uma das quantias que por si haviam sido pagas ao BCP, enquanto banco credor do empréstimo, em conformidade com as tabelas de cálculo que juntou enquanto docs. 1A e 2A.

 

24. A verdade, àquela peça do R., e sem prejuízo de se entender que tal matéria extravasa a admissibilidade da resposta, e que, salvo melhor opinião, já não podia afastar, precludir, a confissão que sem qualquer margem para dúvida resulta do teor da réplica apresentada anteriormente pela A, em Fevereiro de 2018, quanto ao pagamento do empréstimo pelo R., veio agora a A. alegar, no art.º 3.º dessa sua peça que “Durante o casamento e até Abril de 2007 data em que o R. abandonou a A. e os filhos, as despesas da família, incluindo a prestação bancária para amortização do empréstimo concedido para aquisição da casa, eram pagas com as remunerações do trabalho de ambos, sem que alguma vez tenha sido, sequer falada, a separação das despesas entre ambos.”

 

25. Acrescentando no art.º 4.º “Assim, a totalidade do salário, pelo menos da A. era gasto em família”.

 

 26. Era agora, apresentada e confessada pela A. enquanto limite temporal, que pelo menos a partir de Abril de 2007 a mesma não tinha feito, fosse de que jeito fosse, qualquer pagamento, pelo que estes só poderiam ter sido feitos e imputados ao R, tudo a ser conjugado com a primeira parte do art.º 3.º, 8.º e 16.º e 17 daquela peça de resposta da A..

 

27. Ou seja, o que a A. agora invoca é que, até Abril de 2007, terá pago (comparticipado) no pagamento do empréstimo, já que considerava que as despesas familiares eram pagas com as remunerações do trabalho de ambas, no que se incluía a prestação da casa, não indicando, não avançando, no entanto, com quaisquer valores que em concreto haja pago.

 

28. Sem prejuízo, podemos verificar que após Abril de 2007 a Janeiro de 2015 foram pagos a título de capital € 33.902,04 e de juros € 15.664,00, no total de € 49.566,04, e de Abril de 2007 a Junho de 2015, temos pagos o valor de capital de € 42.775,94 e de juros € 15.583,64, no total de € 58.359,58. 50.

 

29. Afirma depois a A., que ainda não assiste o direito de o R. reclamar o que seja antes do trânsito em julgado da sentença do divórcio, o que lhe cabia demonstrar a razoabilidade de tal afirmação.

 

30. Mesmo assim se dirá que, tendo a sentença de divórcio ocorrido em 26.10.2010,

conforme se acha pela A. invocado no art.º 1.º da sua petição, e se acha dado como provado na sentença em recurso, enquanto Ponto 2 da matéria de facto, a partir da referida data, no período compreendido entre Outubro de 2010 (sentença de divórcio) a Junho de 2016, foram pagos a título de capital € 41.562,10 e de juros € 4.162,43, no total de € 45.724,53., e por exercício de raciocínio se se considerasse o período de Outubro de 2010 a Janeiro de 2015, teríamos a título de capital € 33.902,04 e de juros € 4.131,80, o que dá o total de € 38.033,84.

 

31. Há que ponderar que em nenhum momento a A. disse, afirmou, referiu, que tenham por sido liquidadas em concreto, quaisquer importâncias, do referido empréstimo, ou cujo pagamento lhe deva a ela ser considerado e imputado, e que, deva ser tido em consideração no deve e haver entre ela e o R., à excepção do valor referente ao Seguro ou seja a importância de € 86.849,74.

 

32. o Banco regista ter recebido em 23 de Janeiro de 2015, o valor de € 86.849,74 (Ponto 11 dos factos provados) sendo que o valor reclamado como estando em dívida em Janeiro de 2014 era de € 184.979,75, em conformidade com o doc. n.º 6 junto à p.i. e ponto 6 dos factos provados.

 

33. Ou seja a A. parte e constrói uma ficção a partir do montante da dívida em € 172.672,08, para daí extrapolar o que lhe é conveniente, o que veio a ser acolhido e mal na sentença sob recurso.

 

34. Aliás, convêm salientar que ao contrário do que se acha referido e pressuposto na sentença- quando na mesma se escreve que: “A este crédito da autora - que o réu não coloca em crise — opõe o réu, pretendendo operar a respetiva compensação, um alegado contra crédito sobre a autora.”, o certo é que o R., Apelante, rejeita liminarmente, que haja em algum momento reconhecido um qualquer crédito da A. sobre o mesmo.

 

35. O que o R., aceitou foi sim, e coisa bem diferente, foi que houve um valor, mais concretamente de € 86.849,74, decorrente do pagamento da Seguradora pela reforma de invalidez da A., o qual foi utilizado para amortizar o empréstimo hipotecário junto do BCP, e que por ambos havia sido contraído, e de que eram responsáveis solidários.

 

36. Precisamente, face aos valores pagos durante o empréstimo por si é que o R. colocou em causa esse, pretenso crédito invocado pela A. sobre o mesmo.

 

37. Apesar disso, afirma depois A., por força da dita questão da contribuição para as despesas comuns, no art.º 8.º de que: “Do que fica dito conclui a A. que ao R. não assiste o direito de exigir da A. pagamento de qualquer valor reportado ao período de duração do casamento e até ao trânsito em julgado da sentença de divórcio”.

 

38. A A. admite também que nada pagou relativamente ao empréstimo desde a data do divórcio, resultando, a contrario, em conformidade com o art.º 3.º, ter continuado a viver na mesma, logo após a separação., o que decorre ainda, sem qualquer margem para dúvida, nos artigos 16.º e 17., do seu requerimento.

 

39. Há, a liberdade de apreciação da prova ´não se pode confundir com discricionariedade de apreciação da mesma, e podemos ler na sentença: “Como se referiu, não foram ouvidas testemunhas, pelo que o Tribunal, na formação da sua convicção relativamente aos factos provados, analisou o teor da prova documental junta aos autos, que as partes não impugnaram, tendo sido nos sobreditos termos que foram por exemplo considerados como provados, os pontos: “22. No ano do 2007, a autora auferiu a remuneração de 27 443,14 €, ao serviço do BCP; 23. No mesmo ano, o réu auferiu a remuneração de 98 220,78 €, ao serviço do BCP.”

 

40. Referindo em concreto, para o efeito que: “No que tange aos rendimentos das partes ao serviço do BCP no ano de 2007, constantes de pontos 22. e 23. dos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção pela análise dos documentos de fls. 60 e 60 v de que os mesmos resultam.”

 

41. Não pode o Apelante aceitar, e mesmo sem prejuízo do demais já referido quanto às questões da cominação, estes dois pesos e duas medidas, na apreciação da prova, quando na sentença se descarta o teor do documento 52 apresentado com a contestação e, para mais, se trata de documentos emitidos pela mesma entidade - o BCP.

 

42. Ou seja, na mesmíssima sentença em que se dão os dois referidos factos por provados com a dita fundamentação, quanto aos rendimentos, já não se dão como provados os factos referentes aos pagamentos ocorridos no empréstimo, (doc. n.º 1 junto à contestação) indicados por esse mesmo banco, e que não se acha impugnado, que respeitava por exemplo às datas de pagamento, montantes e valores em dívida, (saldo), que têm de ser tidos como de natureza pessoal da própria A., e que inclusivamente podem ser, como já referido anteriormente compaginados com outros documentos, juntos pela A. à p.i. e que serviram para fundamentar a prova de outros factos.

 

43. Tudo conjugado, não se pode acompanhar o que se acha decidido quanto à factualidade não provada, quando se diz que: “Com efeito do único documento junto com a Contestação - uma declaração emitida pelo BCP datada de 28.11.2007 e o quadro a ela anexos - cfr. fls. 39v a 42 - e do documento junto com o aperfeiçoamento da reconvenção, uma tabela elaborada pelo reu relativa as prestações do empréstimo e juros (fls. 54) não resulta,

                               i) nem de que conta eram efetuados os pagamentos,

                               ii) nem se essa conta era titulada pelo réu,

                               iii) nem se foi ele a única pessoa que suportou os pagamentos das prestações aí refletidas, pelo que os documentos em causa não são suficientes para a prova da matéria das alíneas a) a e) dos factos não provados.”

 

44. Vejamos, em primeiro lugar, que o R. não tinha, nem teria que provar, produzir prova, relativamente a factos que não foram contestados pela A. e como referido, e quando para mais se tratavam de factos pessoais e de que a mesma não deveria desconhecer.

 

45. Assim, perguntamo-nos, em que momento da Réplica decorre que a A. tenha colocado em causa, questionado, as prestações e montantes que se acham indicadas no referido quadro do documento emitido BCP (doc. n.º 1 junto à contestação/reconvenção), e muito menos que o tenha feito de forma explícita, de modo claro, face ao que se acha preceituado no art.º 574.º do C.P.C.?

 

46. A sentença é absolutamente omissa quanto a esta apreciação crítica dos factos, relativamente também à posição assumida pela A., (não oposição) relativamente ao pagamento do crédito de que a mesma era titular, e que havia sido invocado pelo R., designadamente, por exemplo que os valores, para pagamento do empréstimo eram debitados da conta indicada no art.º 9.º da contestação/reconvenção do R..

 

47. Ora, face ao tudo o que se acha nos autos, não se pode admitir que tenha a A. pago, nem sequer a sua quota parte, ou seja metade, do valor da dívida contraída no valor de € 225.000,00 a que acresceriam os juros, junto do BCP, nos termos da referida escritura que se se acha junto aos autos, pela A., enquanto doc. n.º 3 com a p.i., e que veria deveria ser paga em 300 prestações, em conformidade com o doc. n.º 6. junto à p.i.

 

48. Ou seja, o condenar o R. no referido montante implicaria reconhecer que a A. teria liquidado a mais, na vida do empréstimo, o valor correspondente da condenação, o que não se acha alegado e, muito menos, provado.

 

49. E, mesmo que se entenda que a A., nos mesmos participou / comparticipou, tal só se pode admitir como tendo sido até Abril de 2007 data da saída de casa do R., ou no pior dos casos, considerando-se a posição e interesses do R., da data do divórcio Outubro de 2010, assim como ainda pretende, sem qualquer margem de dúvida, como deixa claro no art.º 16.º da sua peça que nada tem a ver com os valores que foram pagos posteriores à data da sua reforma por invalidez, Janeiro de 2015, em conformidade com o art.º 16. º da dita peça processual.

 

50. A sentença recorrida faz uma errada interpretação e avaliação dos factos perante o litígio e faz uma desconforme aplicação das normas jurídicas para a decisão final,

 

51. Mais, conforme se acha estabelecido, deverão utilizar-se as regras da experiência, enquanto raciocínios, juízos hipotéticos do conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria,

 

52. (indicada como 54) permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.

 

53. (indicada como 52) Tendo-se o uso, pelas instâncias, em processo civil, de regras de experiência comum é um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto, que fortalece o princípio da livre apreciação da prova, como meio de descoberta da verdade, apenas subordinado à razão e à lógica.

 

54. (indicada como 53) É, pois, neste contexto, em conformidade com o disposto no n.º 4 do art.º 607.º do C.P.C. que se deveriam ser apreciados os factos da presente acção, se dúvidas ainda subsistissem.

 

55. (indicada como 54) Neste particular, considerando-se as posições das partes assumidas nos autos, não poderão ocorrer dúvidas, e demais evidências no processo e documentos, que os pagamentos do empréstimo hipotecário foram sendo feitos pelo R., ou pelo menos na sua maioria, à excepção do referido valor entregue pela Seguradora.

 

56. (indicada como 55) Em qualquer caso e, não se concedendo quanto à questão dos factos que deveriam ter sido dado como provados, então sempre se deveria considerar, o que ora se requer, nos termos do art.º 609.º :

                i) Que, não havendo elementos suficientes para proceder à condenação da A. quanto ao pedido reconvencional, deveriam os Autos ser remetidos para efeitos do que viesse a ser liquidado em processo declarativo de liquidação a ser interposto pelo R., já que deveriam ser apurados os valores pagos durante o decurso do empréstimo.

                ii) Ou caso se entendesse que o pedido reconvencional deveria ser julgado improcedente, então deveriam os Autos ser remetidos para os efeitos do que viesse a ser liquidado em processo declarativo de liquidação a ser interposto pela A., já que deveriam ser apurados os valores pagos durante o decurso do empréstimo, ou então subsidiariamente,

                iii) Ser a A. e o R. reconvinte, ora Apelada e Apelante, serem condenados reciprocamente quanto no pagamento, do montante que se viesse a ser apurado em conformidade com o disposto no artigo 524.º do Código Civil, a ser liquidado em processo declarativo de liquidação a ser interposto por cada um, já que deveriam ser apurados os valores pagos durante o decurso do empréstimo. Sempre para apurar os valores pagos a mais na liquidação do empréstimo por cada um dos condevedores.

 

57. (indicada como 56) Em qualquer caso, não se poderá considerar a dívida num determinado momento, sem qualquer apreciação crítica, relativamente aos pagamentos que tenham ocorrido e, a partir desse mesmo ponto, apurar a quota parte de cada um dos condevedores, para os efeitos do disposto no art.º 524.º do Código Civil, ou seja, para saber quem pode reclamar o quantum, ou o quantum que um pode reclamar do outro, e tendo-se para mais em consideração que o empréstimo foi liquidado, enquanto um verdadeiro facto constitutivo do direito invocado pela A., haverá que ter em consideração os valores pagos durante toda a vida do empréstimo e por quem.

 

58. (indicada como 57) Por recurso ao disposto no art.º 662.º do C.P.C., nos termos do respectivo n.º 1, sempre poderá o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos já anteriormente reclamados, e fazer uma aplicação do direito em conformidade.

 

59. Mais, estando em causa a justa composição do litígio e, perante as incongruências e deficiências do presente processo, havendo o desiderato da prevalência da verdade da Justiça material sobre a formal, sempre assistirá a esse douto Tribunal, a possibilidade de ordenar a renovação da produção de novos meios de prova, se nisso vir necessidade, para a justa composição do litígio nos termos do disposto na al. b) do n.º 2 da dita norma, ou mesmo anular a decisão, nos termos da respectiva al. c) do dito art.º 662.º do C.P.C.

 

Não foram apresentadas contra-alegações.

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina, 2018, pág. 115), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

 

Para além de excessivamente longas e repetitivas (a sugerir a necessidade de utilização do mecanismo do n.º 3, do artigo 663.º do Código de Processo Civil), as Conclusões do Réu apresentam-se mal numeradas a partir da Conclusão 52, pelo que foram elas renumeradas a partir daí (52 a 58), fazendo-se a respectiva referência no local.

Todavia, uma vez que a base do recurso assenta praticamente na discordância do Réu-apelante quanto à não prova dos factos 8.º a 11.º da sua Contestação-Reconvenção e para que o processo não atrase (sem mais utilidade que a decorrente deste corrigir a sua prolixidade), entendemos não ser necessário o uso deste mecanismo.

 

Assim, em causa nestes autos estará a decisão quanto às seguintes questões:

            I - os factos 8.º a 11.º da Contestação deviam ter sido dados como provados, em função de a Autora os não ter impugnado;

            II - os mesmos factos (dados como não provados nas três primeiras alíneas – A, B e C – da factualidade considerada não provada pelo Tribunal de 1.ª Instância) deveriam ter sido dados como provados com fundamento na prova produzida (nomeadamente nos documentos juntos pelo Réu e que não foram impugnados);

            III - o facto considerado não provado em D, deveria ser julgado provado em face da prova documental apresentada;

            IV - qual o efectivo valor da comparticipação de Autora e Réu para o pagamento do empréstimo, em face do regime das obrigações solidárias, com as respectivas consequências;

            V – a procedência do pedido reconvencional, em função dos factos dados como provados e do direito aplicável (obrigações solidárias e créditos compensatórios dos ex-cônjuges).

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

Fundamentação de Facto

A sentença sob recurso considerou como provada factualidade que não é colocada em causa pelo apelante.

 

Já quanto aos factos não provados foram estes os considerados pelo Tribunal de 1.ª Instância:

            A - O crédito hipotecário em referência nos autos foi sempre pago e suportado integralmente pelo réu,

               B - Sendo o respectivo valor debitado em conta daquele com o n.º 9762372 do Millennium BCP;

               C - A autora nunca pagou ou suportou qualquer valor do indicado empréstimo contratualizado com o BCP;

               D - O réu, durante a vida do indicado crédito hipotecário, entre 26.12.2003 e 25.06.2016, pagou o valor global de 89 541,92 €, sendo 62 552,25 € em amortizações de capital e 26 898,67 €, a título de juros;

               E - Desde a data da sentença de divórcio, 26.10.2010, o valor liquidado pelo réu, a título de capital, foi de 43 089,64 € e, de juros, de 4.061,32 €.

               F - Durante o casamento, e até Abril de 2007, data em que o réu abandonou a autora e os filhos, as despesas da família, incluindo a prestação bancária para amortização do empréstimo concedido para aquisição da casa, eram pagas com as remunerações do trabalho de ambos, sem que alguma vez tenha sido, sequer falada, a separação das despesas entre ambos;

               G - A totalidade do salário da autora era gasto na família;

               H - Antes da aquisição do imóvel a que se reporta 3. dos factos provados, autora e réu compraram outro, que venderam para adquirir este;

               I - O réu, já por mais de uma vez, reclamou da autora o pagamento de indemnizações, rendas, despesas, concretamente, através da acção n.º 2311/11.0TBCSC que correu pelo 1.º Juízo Cível desse Tribunal, julgada improcedente por sentença de 07.08.2013.

 

 

Apreciação da Matéria de Facto

O Réu na sua Contestação-Reconvenção alegou, nos artigos 8.º, 9.º 10.º e 11.º que:

                        - “o crédito hipotecário em referência nos autos foi sempre pago e suportado integralmente pelo Réu” (8.º);

                              - “Sendo o respectivo valor debitado em conta daquele com o n.º 9762372 do Millennium BCP” (9.º);

                              - “Nunca a A. pagou ou suportou qualquer valor do indicado empréstimo contratualizado com o BCP, o que a mesma bem sabe” (10.º);

                              - o R. pagou “durante a vida do indicado crédito hipotecário, o valor global de € 88.515,38, sendo € 61,525,71 em amortizações de capital e € 26.898,67 € a título de juros, conforme documento” que junta (11.º).

 

Na Réplica, a Autora toma posição sobre os artigos 3.º (não entendendo o aí afirmado), 5.º e 6.º (entendendo que ficou contrariado na PI, com o alegado nos artigos 10.º, 11.º e 13.º, da PI), mas nada diz sobre os artigos 8.º, 9.º e 10.º (sendo que, quanto ao artigo 11.º afirma – artigo 11.º da Réplica – que “remetendo apenas para o documento que juntou, não se entendem as diferenças de valores indicados nos artºs 13.º, 14,º e 19.º”)

 

Verificados os autos, conclui-se que a Autora, na PI, não disse - em momento algum - que fora ela a proceder ao pagamento do empréstimo (para além do que respeita ao valor pago pela Seguradora), ou que o fez parcialmente, ou que não fora o Réu a fazê-lo exclusivamente.

Na Réplica também o não faz.

O primeiro momento em que “impugna” esta factualidade é na segunda Réplica por si apresentada (no caso, em resposta à Contestação-Reconvenção aperfeiçoada, apresentada pelo Réu no que concerne à concretização do cálculo de juros e pagamentos aludidos em 11.º, 13.º, 14.º, 19.º e 20.º do seu primeiro articulado reconvencional), quando afirma que:

               “Durante o casamento, e até Abril de 2007, data em que o Réu abandonou a Autora e os filhos, as despesas da família, incluindo a prestação bancária para amortização do empréstimo concedido para aquisição da casa, eram pagas com as remunerações do trabalho de ambos, sem que alguma vez tenha sido, sequer falada, a separação das despesas entre ambos” (artigo 3.º da Réplica apresentada a 29/05/2018)”.

 

O Réu entende no seu Recurso, que esta factualidade devia ser considerada como provada.

O Tribunal de primeira instância sujeitou a matéria a produção de prova e considerou os três artigos em causa (8.º, 9.º e 10.º da Contestação-reconvenção) não provados, justificando da seguinte forma:

 “O Tribunal não logrou formar a sua convicção quanto aos factos vertidos na als. a) a i) dos factos não provados, uma vez que, sobre os mesmos, não foi produzida prova.

Com efeito do único documento junto com a Contestação – uma declaração emitida pelo BCP datada de 28.11.2007 e o quadro a ela anexos – cfr. fls. 39v a 42 – e do documento junto com o aperfeiçoamento da reconvenção, uma tabela elaborada pelo réu relativa às prestações do empréstimo e juros (fls. 54V-57) não resulta, i) nem de que conta eram efectuados os pagamentos, ii) nem se essa conta era titulada pelo réu, iii) nem se foi ele a única pessoa que suportou os pagamentos das prestações reflectidas, pelo que os documentos em causa não são suficientes para a prova da matéria das alíneas a) a e) dos factos não provados”.

 

O artigo 574.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus de impugnação”, refere que ao “contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” (n.º 1) e que se consideram “admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior” (n.º 2).

 

“Regra basilar no campo da defesa é o ónus da impugnação que impende sobre o Réu, querendo isso significar que este há de “tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” (A.Abrantes Geraldes-P.Pimenta-L.F.Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 672).

Assim, o Réu (ou o reconvindo, acrescentamos) “não pode remeter-se a uma atitude passiva, não se pronunciando sobre os factos articulados pelo autor, devendo impugnar os factos que não reconheça ou não aceite como verdadeiros” (ob. loc. cit.).

Sob pena de serem considerados assentes.

 

In casu:

            - a matéria não está em manifesta oposição com a defesa da Reconvinda considerada no seu conjunto (aqui considerado apenas o seu primeiro articulado de Réplica, uma vez que o segundo apenas poderia pronunciar-se sobre a matéria objecto de aperfeiçoamento), pois em momento algum se refere à matéria, ou mesmo diz que foi ela ou ele que fizeram os pagamentos do empréstimo;

            - não estão em causa factos sobre os quais não possa haver confissão;

            - não estão em causa factos que só possam ser provados por documento;

            - não estão em causa factos instrumentais que permitissem posterior afastamento.

É certo que na sua segunda Réplica a Autora-reconvinda já vem produzir uma diferente narrativa, mas em momento processualmente tardio (não se tratando de situação similar à do artigo 46.º do CPC, em que se admite a possibilidade de rectificação ou retirada de afirmações ou confissões feitas pelo mandatário, enquanto a parte contrária as não tenha aceitado especificadamente). 

Assim sendo, não tendo – no momento adequado – impugnado especificadamente os aludidos artigos 8.º, 9.º e 10.º do primeiro articulado, a Autora-reconvinda aceitou que todos os pagamentos foram feitos pelo Réu-reconvinte, a partir da aí identificada conta dele, e que - ela própria - nunca fez qualquer pagamento.

 

Ficou apenas por apurar e por aceitar o concreto valor do “tudo” (que constava do artigo 11.º e que, no conjunto da defesa, por esta via, não podia considerar-se assente).

 

Em face do exposto, a matéria de facto terá de ser alterada e os acima referidos factos A, B e C, considerados não provados, deverão incorporar-se no elenco de factos provados (sem necessidade sequer de chegar a apreciar a prova documental junta aos autos, por nos situarmos a montante).

*

Por outro lado e nesta base, passamos de imediato à verificação do Facto dado como não provado em D.

Para esta apreciação partirmos do facto (agora) adquirido de que todos os pagamentos foram feitos pelo Réu, da sua conta, na vida do empréstimo (com excepção do valor pago pela seguradora).

A fundamentação do Tribunal de 1.ª instância no sentido de que da declaração emitida pelo BCP datada de 28.11.2007 e o quadro a ela anexos – cfr. fls. 39v a 42 – e do documento junto com o aperfeiçoamento da reconvenção (tabela elaborada pelo réu relativa às prestações do empréstimo e juros - fls. 54V-57) não resultava nem de que conta eram efectuados os pagamentos, nem se essa conta era titulada pelo réu, nem se fora ele a única pessoa que suportou os pagamentos das prestações aí reflectidas (e daí serem os documentos em causa insuficientes para a prova desses factos), acaba por perecer a partir do momento em que se tem como assente que os pagamentos foram todos feitos pelo Réu, saindo da sua conta.

Deste modo, a “Declaração de Capital e Juros Pagos”, emitida pelo BCP, indicando todas as quantias liquidadas no âmbito do empréstimo de que Autora e Réu eram titulares, entre 27/11/2003 e 22/07/2016 (fls. 39vs a 42) – documento que, sublinhe-se, não foi impugnado – conjugado com os assentes artigos 8.º a 10.º da Contestação-Reconvenção, leva a que se tenha também aqui de alterar a factualidade que vinha dada como não provada no Tribunal a quo.

O documento de fls. 54vs a 57 é um documento particular do Réu, do qual apenas decorre o que este entende serem as datas desde as quais lhe seriam devidos juros de mora, o que em nada releva para a factualidade a apurar.

 

Em face do exposto, a matéria de facto terá de ser alterada e acrescentado ao elenco de factos provados que:

            - O réu, durante a vida do indicado crédito hipotecário (entre 26.12.2003 e 25.06.2016), pagou o valor global de 89.541,92 €, sendo 62.552,25 € em amortizações de capital e 26.989,67 €, a título de juros;

            - Desde a data da sentença de divórcio (26.10.2010), o valor liquidado pelo réu, a título de capital, foi de 43.089,64 € e, de juros, de 4.061,32 €.

**

Por tudo o exposto, a factualidade a considerar para decisão deste processo, passa pela já apurada na Sentença sob recurso, incluindo ainda os factos agora acrescentados (não havendo necessidade de produzir qualquer outra prova nesta ou noutra instância):

1 - A autora e o réu casaram em 03.02.2001, no regime de separação de bens;

 2 - Por sentença proferida em 26.10.2010, no Proc. N.º 2151/09.7TBCSC, do 1.º Juízo de Família e Menores de …….., foi decretado o seu divórcio;

3 - Em compropriedade, e em partes iguais, a autora e o réu foram titulares do prédio urbano sito na freguesia de C-…………., concelho de ……….., inscrito na respectiva matriz sob o art. 2297.º, descrito na Conservatória do Registo Predial de ---  – 2ª Secção, sob o n.º 299;

4 - Este prédio, que constituiu a habitação do casal e dos filhos, foi adquirido por escritura outorgada em 27.11.2003, no 9.º Cartório Notarial de Lisboa, com recurso a crédito concedido pelo BCP, cujo pagamento ficou garantido por hipoteca sobre o mesmo;

5 - Após o divórcio, correu acção judicial para divisão do prédio a que se reporta 3. (Proc. n.º 9539/10.9TBCSC do ---.º Juízo Cível de ---);

6 - No decurso da acção de divisão o Banco credor reclamou o seu crédito, então no montante de 184.979,75 €, o qual foi reconhecido por sentença de 14.01.2015, proferida no respectivo processo n.º 9539/10.9TBCSC–A;

7 - A autora foi reformada por invalidez, com reconhecimento à data de 31 de Dezembro de 2014, em consequência do que a seguradora, Ocidental Seguros, pagou ao Banco credor a quantia de 86.849,74 € correspondente a metade do débito à data, facto que lhe foi comunicado pela Seguradora por carta de 26.01.2015;

8 - Em 14.01.2015, foi proferida sentença de graduação de créditos e determinado que, pagas as custas, do remanescente do produto da venda seriam pagos, em primeiro lugar, o crédito reclamado, e, em segundo lugar, “as quotas partes de cada um dos proprietários em partes iguais”;

9 - O prédio foi vendido pelo valor de 235.100 €, tendo a respectiva proposta de compra sido aceite em 16.03.2015;

10 - Em 16.03.2015 a autora informou os autos de divisão de coisa comum do pagamento efectuado pela Seguradora, juntando cópia da carta e requerendo a notificação do Banco para que confirmasse o recebimento e requeresse a redução do crédito, considerando que a requerente deixara de ser sua devedora;

11 - Em 17.03.2015, o BCP informou os autos de que, em 23.01.2015, recebera da Seguradora o indicado montante de 86.849,74 €, e requereu que esse valor fosse reduzido à quantia reclamada;

12 - Em 21.05.2015, a autora sustentou, no processo de divisão de coisa comum que, tendo o Banco recebido a indicada quantia de 86.849,74 € da Seguradora, ter deixado ela de ser parte no processo de reclamação de créditos, e ser o ora réu o único reclamado e único responsável pela liquidação da parte restante do crédito reclamado;

13 - Para esse efeito, invocando o disposto no art. 1733.º, n.º 1, al. d) do Código Civil, disse destinar-se a quantia paga ao Banco pela Seguradora exclusivamente a liquidar a parte da responsabilidade da ora requerente;

14 - Invocou também o disposto no art. 1695.º, n.º 2 do mesmo Código, dizendo que a solidariedade sobre os bens próprios, sendo de separação o regime de bens do casamento, só se verificaria quando, voluntariamente, os cônjuges se tivessem obrigado como devedores solidários;

15 - Sustentou ainda que, na escritura de aquisição, consta que o ora réu, o único a outorgar a escritura, disse que “em seu nome e em nome de sua mulher confessam devedores solidários ao BCP”. Porém, a procuração que lhe foi conferida pela autora nada contém sobre a obrigação de solidariedade a assumir pela então mandante;

16 - Referiu ainda que a não ser dessa forma, para além da quantia liquidada pela Seguradora, correspondente a ½ da dívida então existente, a autora ainda suportaria ½ da parte restante, ou seja, pagaria ¾ do valor reclamado;

17 - Por despacho de 15.06.2015, proferido nos autos de divisão de coisa comum, sobre o requerimento da autora, foi determinado que “os pagamentos efectuados directamente à entidade bancária serão apreciados no momento de elaboração de conta e pagamento”;

18 - Em 15.07.2015 o BCP comunicou aos autos de divisão de coisa comum ser de 82.746,42 € o valor em dívida nessa data, e que “Quanto a quem é devedor, ambos os intervenientes assumiram a posição de mutuários e são solidariamente responsáveis pelo pagamento da dívida, não existindo qualquer desoneração de nenhum dos mutuários. O facto de o pagamento ser proveniente do acionamento de um seguro de vida, em nada prejudica esta solidariedade, motivo pelo qual permanecem ambos devedores.”

19 - Em 17.03.2016, a autora foi notificada, naqueles autos de divisão de coisa comum, da liquidação e para juntar comprovativo da instituição bancária com o NICB a fim de o Tribunal lhe restituir a quantia de 75.345,36 €;

20 - Nessa liquidação, foram consideradas custas de 56,76 €;

21 - Ao valor total da venda (235.100 €) foram deduzidos as custas e o montante do crédito ainda em dívida, de 82.746,42 € e respectivos juros e imposto de selo, e a remanescente quantia de 150.690,72 € foi dividida em duas partes iguais de 75.345,36€, cada;

22 - No ano de 2007, a autora auferiu a remuneração de 27.443,14 €, ao serviço do BCP;

23 - No mesmo ano, o réu auferiu a remuneração de 98.220,78 €, ao serviço do BCP;

24 - O crédito hipotecário em referência nos autos foi sempre pago e suportado integralmente pelo Réu;

25 - Os valores foram sempre debitados na conta do Réu com o n.º 9762372 do Millennium BCP;

26 - Nunca a autora pagou ou suportou qualquer valor do indicado empréstimo contratualizado com o BCP (com excepção do valor referido em 7);

27 - O réu, durante a vida do indicado crédito hipotecário (entre 26.12.2003 e 25.06.2016), pagou o valor global de 89.541,92 €, sendo 62.552,25 € em amortizações de capital e 26.989,67 €, a título de juros;

 28 - Desde a data da sentença de divórcio (26.10.2010), o valor liquidado pelo réu, a título de capital, foi de 43.089,64 € e, de juros, de 4.061,32 €.

 

 

Fundamentação de Direito

A sentença sob recurso julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção, com base no seguinte processo de raciocínio:

               - está em causa na acção a existência de um direito de regresso da autora sobre o réu, por força de este ter beneficiado do pagamento de um montante que se destinava exclusivamente a liquidar a responsabilidade da autora junto do credor hipotecário;

               - está em causa na reconvenção, a existência de um crédito do reconvinte sobre a reconvinda por montantes que pagou, a mais, da sua quota parte de responsabilidade, ao credor hipotecário durante toda a vida do empréstimo (incluindo, na constância do casamento);

               - para decisão da acção aplica-se o regime das obrigações solidárias, na perspectiva do devedor solidário e, em especial, o das relações dos devedores solidários, entre si, regulado nos arts. 512.º e seguintes do Código Civil;

               - a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes;

               - o devedor solidário responde pela integralidade da dívida, nas relações entre os vários devedores solidários, presumindo-se que os mesmos comparticipam em partes iguais na dívida, sempre que, da relação jurídica entre eles existente, não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida, de acordo com o disposto no art. 516.º do Código Civil;

               - o devedor que satisfizer o direito do credor, além da parte que lhe competir, tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete (cfr. art. 524.º do Código Civil);

               - no contrato de empréstimo em causa nos autos, Autor e Réu assumiram-se como devedores solidários do BCP, podendo o credor exigir de qualquer deles o pagamento integral da dívida;

               - no âmbito do processo de reforma por invalidez da autora, ocorrido já após o divórcio das partes, a seguradora para a qual esta havia transferido a responsabilidade do pagamento do crédito hipotecário, assumiu o pagamento de 50% do montante em dívida ao credor hipotecário, correspondente à quota parte da responsabilidade da segurada na dívida, no montante de 86.849,74 €;

               - o indicado montante de 86.849,74 €, pago pela seguradora, foi imputado, no processo de divisão de coisa comum, à totalidade do crédito reclamado pelo credor hipotecário, liberando tanto a autora, como o réu, desse montante da dívida;

               - efectuada a venda do imóvel, deduzidas as custas, imputado o valor pago pela seguradora e deduzido o montante do crédito reclamado ainda em dívida, à autora foi restituído o remanescente pela proporção de 50%, tendo o réu sido reembolsado em igual montante;

               - a Autora suportou um pagamento para além do que lhe competia, por não lhe ter sido restituída a parte do remanescente que lhe competia, na perspectiva da relação entre devedores solidários;

               - tendo o imóvel sido vendido pela quantia de 235.100 € e sendo as custas de 56,76 €, a autora tem a haver metade do remanescente, pela quantia de 117 521,62 €, assim operando a divisão em partes iguais entre os devedores, quer do passivo, quer do activo;

               - ao invés de ter recebido o remanescente de 117.521,62 €, com a liquidação, a autora apenas recebeu 75.345,36 €¸tendo a diferença de 42.176, 76 € sido entregue ao réu com tal liquidação, valor este que, correspondendo a mais do que a sua quota parte da dívida, de harmonia com o disposto no artigo 524.º do Código Civil, tem a Autora o direito a haver do réu.

               - no que a juros respeita, uma vez que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, só a partir da citação a Autora tem direito a juros, até integral cumprimento.

               - quanto à Reconvenção nada se tendo provado a improcedência impôs-se.

 

Como é evidente, com os novos factos assentes importa verificar se o olhar jurídico sobre o conjunto da factualidade apurada se pode manter.

 

Há várias circunstâncias que têm de se ter presentes na abordagem do caso:

                        - Autora e Réu estiveram casados entre si, sob o regime de separação de bens, entre 3 de Fevereiro de 2001 e 26 de Outubro de 2010;

                        - a 27 de Novembro de 2003 Autora e Réu adquiriram um imóvel para habitação do casal, em compropriedade, com recurso a crédito concedido a ambos pelo BCP;

                        - após o divórcio (26/10/2010), correu termos um acção judicial para divisão do aludido imóvel e que a 26/05/2015, foi adjudicado ao aí adquirente por 235.000€;

                        - a Autora foi reformada por invalidez, com reconhecimento à data de 31 de Dezembro de 2014, em consequência do que a seguradora, Ocidental Seguros, pagou ao Banco credor a quantia de 86.849,74 € correspondente a metade do débito à data, facto que lhe foi comunicado pela Seguradora por carta de 26.01.2015;

                        - em cumprimento do determinado na Sentença de graduação de créditos, na liquidação efectuada, aos 235.100 € foram deduzidos as custas e o montante do crédito ainda em dívida, de 82.746,42 € e respectivos juros e imposto de selo, tendo a remanescente quantia de 150.690,72 €, sido dividida em duas partes iguais de 75.345,36 €, para a ora Autora e o ora Réu;

                       - entre a data do divórcio (26/10/2010) e a liquidação do empréstimo (25/06/2016), o Réu, a título de capital, entregou ao BCP 43.089,64 € e, de juros, de 4.061,32 €;

                       - o Réu, durante a vida do indicado crédito hipotecário (entre 26.12.2003 e 25.06.2016), pagou o valor global de 89.541,92 €, sendo 62.552,25 € em amortizações de capital e 26.989,67 €, a título de juros.

 

Em termos do Direito, temos de convocar para análise:

                       -  o regime das obrigações solidárias previsto nos artigos 512.º a 538.º do Código Civil (e, em especial, o dos artigos 518.º a 527.º respeitante à solidariedade entre devedores);

                       - o regime das dívidas dos cônjuges previsto nos artigos 1690.º a 1697.º do Código Civil, conjugado com as normas que regulam o regime da separação (artigos 1735.º e 1736.º do Código Civil);

                       - o regime do divórcio previsto nos artigos 1773.º a 1793.º do Código Civil (na versão posterior à Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro[1]).

 

 

Entrando a decidir.

 

Começa por se referir que não há dúvidas que o empréstimo celebrado entre Autora e Réu com o BCP criou para aqueles (voluntariamente – artigo 513.º do Código Civil), uma obrigação plural solidária, cujas especiais características, nos termos do artigo 512.º do Código Civil, passam, para efeitos do seu credor (no plano das relações externas[2], portanto):

                        - pelo “dever de prestação integral, que recai sobre qualquer dos devedores”[3] (cfr., artigos 512.º e 519.º, n.º 1, do Código Civil);

                        - pelo “efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer deles ao direito do credor” [4].

 

No que ao caso dos autos respeita, o contrato foi cumprido e o empréstimo devidamente liquidado, pelo que nos restará a análise do que concerne ao plano das relações internas em que “cada um dos obrigados deve apenas uma quota ou parte da prestação, em regra proporcional ao seu número”[5] (o que para o Credor é questão irrelevante).

Assim, o artigo 524.º do Código Civil vem dispor que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete, assim ficando concedido ex vi legis ao condevedor que satisfaz o direito do credor um verdadeiro direito de compensação[6].

“Este direito de regresso, diga-se, só nasce no momento em que o condevedor satisfaz o direito do credor além da sua quota, pois é “através desse acto que se determina o objecto do direito do solvens contra cada um dos seus condevedores, como é a partir dessa data (e não da constituição da obrigação solidária: art. 521.º, 1) que principia a correr o prazo da prescrição contra ele; etc.”[7].

 

Por outro lado, sublinhe-se que, nada impedindo que sejam desiguais as quotas de cada um dos condevedores, na “falta de convenção ou disposição em contrário, as quotas de cada um dos condevedores solidários presumir-se-ão iguais (cf. art. 497.º, 2; 500.º, 3 e 507.º, 2)”[8].

 

Ora vem isto a significar que, não havendo dúvidas de que a obrigação contraída por Autora e Réu com o empréstimo foi uma obrigação solidária (voluntariamente assumida, para obstar ao n.º 2 do artigo 1695.º do Código Civil), também não podem restar dúvidas de que existe uma presunção de que as suas quotas sejam iguais e de que só com a liquidação do empréstimo a 25/06/2016 se poderia ter constituído um eventual direito de regresso por parte de Autora ou Réu (repare-se que muito embora a seguradora tenha pago “a parte” que correspondia à dita Autora, ela se mantinha - e manteve - na relação com o Banco, até à liquidação do empréstimo, na posição de devedora solidária).

Mas antes de chegar ao momento de apreciar as relações internas dos devedores solidários (depois de extinta a obrigação, portanto) há que constatar os dois momentos em que a obrigação solidária se manteve (e a que as partes não deram a devida relevância):

            - no decurso do casamento entre Autora e Réu (sob regime da separação);

            - no decurso do período entre o divórcio e a liquidação do empréstimo.

 

São períodos distintos e que afectam o regime dos pagamentos nele efectuados pelos devedores.

 

No que ao primeiro concerne, muito embora o casamento entre Autora e Réu tenha sido celebrado sob o regime de separação de bens[9] (Facto 1; artigos 1735.º e 1736.º do Código Civil) e, portanto, não existir património ou bens comuns, a vida financeira do casal não deixa de estar enquadrada pelas normas que regem os efeitos do casamento (nomeadamente o artigo 1577.º e as disposições gerais dos artigos 1671.º a 1689.º do Código Civil): como bem assinala Rita Lobo Xavier, a “interpenetração patrimonial própria da plena comunhão de vida é evidenciada mesmo quando o regime é o da separação de bens”[10].

Este enquadramento tem consequências.

De facto, o empréstimo que deu origem à obrigação solidária serviu para aquisição da casa de morada de família (Facto 4), o que faz corresponder o pagamento das suas amortizações (26/01/2015 – Facto 7) e prestações (até à data do divórcio – 26/10/2010), a um “encargo da vida familiar”, nos termos do artigo 1676.º, n.º 1[11], do Código Civil (que prescinde de qualquer contribuição igualitária).

Como tal, os valores pagos e entregues pelo Réu para liquidação do empréstimo (porque nesta fase apenas ele contribuiu para o pagamento da dívida) estão aí incluídos, só podendo haver algum “ressarcimento” ou existir “crédito compensatório”, se “a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes” (n.º 2 do artigo 1676.º do Código Civil)[12].

A redacção deste normativo, introduzida em 2008 pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, afirma Sandra Passinhas, “foi pensada para restabelecer o equilíbrio entre os cônjuges, nas situações em que um deles se sacrificou excessivamente em prol da vida comum, isto é, renunciou à satisfação dos seus interesses individuais em favor da vida familiar, nomeadamente através de trabalho não remunerado”[13].

Assim, após ter sido eliminada a presunção de renúncia que constava da anterior redacção (e que a Autora, nos seus articulados parece continuar a entender estar em vigor), o cônjuge que se considere prejudicado e que pretenda exigir do outro a correspondente compensação, tem o ónus de provar os factos constitutivos da sua pretensão, de acordo com as regras gerais do ónus da prova. Ou seja, “que a sua contribuição para os encargos da vida familiar foi consideravelmente superior ao previsto no n.º 1 da mesma norma, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, com prejuízos patrimoniais importantes”[14].

De notar que, para esta aferição da necessidade de compensação por um dos cônjuges ter ido para lá do expectável no seu sacrifício em prol da “vida em comum”, não se tem em vista o mero critério quantitativo, ou se se preferir, monetário, da sua contribuição. O critério é, sim, “o do sacrifício da contribuição, o sacrifício de um dos cônjuges em prol da vida familiar. É este sacrifício, esta renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses, que vai ser objecto de compensação. Um dos cônjuges sacrificou-se mais: pelo outro, pelos filhos, pela família que construíram juntos, e esse sacrifício –repetimos, que não se confunde com a contribuição quantitativa de cada um dos cônjuges para os encargos da vida familiar, porque um dos cônjuges pode ter contribuído mais, financeiramente, e ainda assim se considerar que o outro foi o mais sacrificado em prol da vida em comum–, que consubstancia uma renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, é que gera a necessidade de uma compensação que venha repor o equilíbrio das contribuições”[15].

O que se procura com o mecanismo instituído por este normativo é permitir “repor algum equilíbrio entre os cônjuges. Para que ambos estejam numa situação paritária (não de igualdade, porque essa não será normalmente possível) no momento do relançamento da sua vida: que um deles não leve consigo todo o peso da relação conjugal anterior ou, pelo menos, não o leve sem uma compensação pelo excesso de sacrifício. Os “prejuízos patrimoniais importante” despem-se, pois, das vestes dogmáticas de uma quantificação objectiva, para assumirem um cariz relativo: os prejuízos de um dos cônjuges serão medidos pela bitola do enriquecimento, correspectivo, do outro cônjuge”[16].

 

É evidente que esta será sempre uma averiguação complexa e que “deve ser feita cuidadosamente uma vez que (…) não tendo os cônjuges de manter uma contabilidade organizada e tratando-se da realização de prestações de facto em prol da família, a sua quantificação e qualificação ‘serão sempre difíceis de dirimir, não apenas pela sua inerente subjectividade, como, também, dado o seu objecto, pela óbvia dificuldade de prova’”[17], sendo que, quando “o preenchimento deste requisito não pode ser feito, presume-se que a contribuição prestada pelo cônjuge seja consoante com as necessidades dos encargos da vida familiar nada havendo para compensar”[18].

 

Ao Réu cabia a alegação e prova dos factos que permitissem demonstrar o seu sacrifício excessivo, cabia-lhe alegar e provar o funcionamento da sua vida em comum[19], em termos de resultar um quadro com uma imagem definida do seu sacrifício excessivo, da sua renúncia excessiva aos seus interesses em prol da vida em comum, relativamente a outrem (ao outro cônjuge, pois esta será sempre uma aferição perante dois intervenientes, os dois cônjuges).

E para isso, para além de gastos, despesas e pagamentos, relevaria um sem fim de factores que as características da realidade concreta de cada casal farão vir ao de cima, mas que passarão pela descrição de rendimentos, horários, lides domésticas, actividades em conjunto ou com o/a(s) filho/a(s), tempos nelas utilizados, tempos dedicados a cuidá-lo/a(s) (incluindo na educação), vidas profissionais de cada um, existência ou não de apoios familiares ou empregadas, etc., etc., etc..

Mas o Réu limitou-se à alegação dos montantes despendidos.

 

Neste contexto (deixando de fora os valores pagos pelo Réu a partir do divórcio e até liquidação do empréstimo, bem como o valor pago pela seguradora por força da invalidez da Autora, que mais adiante abordaremos), os valores entregues pelo Réu para pagamento de capital e juros do empréstimo na pendência do casamento valem “apenas” como a sua contribuição para os encargos familiares, nada quanto a eles havendo a reclamar, ou a compensar (uma vez, também, que nada foi alegado ou provado que permitisse acobertar-se à previsão do aludido artigo 1676.º, n.º 2, do Código Civil, nos precisos termos acabados de expor): nem Autora nem Réu alegaram ou configuraram as suas posições de forma a poderem usufruir das potencialidades do normativo em causa (pelo contrário, ambos se cingem ao regime da solidariedade e suas decorrências).

Desta conclusão derivarão, adiante, consequências quanto ao pedido reconvencional formulado pelo Réu.

 

Assinale-se que, sobre esta matéria, num Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 07/06/2016 (relatado por António Valente e disponível em www.dgsi.pt), se decidiu sobre a situação de um Autor que, no decurso do casamento (no regime de separação) com uma Ré, adquiriu um imóvel para habitação própria e permanente do agregado familiar, mas admitiu que esta outorgasse com ele a escritura de compra e venda enquanto compradora (apesar de todos os encargos com o preço e demais encargos da aquisição terem sido exclusivamente suportados por si),  entendendo que esse constituíra um benefício para a Ré mulher concedido em consideração do estado de casados, pelo que, tendo o divórcio ocorrido posteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, seria lícito ao Autor peticionar o pagamento pela Ré de metade das despesas que teve com a aquisição do imóvel, nos termos do artigo 1791.º, n.º 1, do Código Civil.

 

A situação dos presentes autos tem bases e contornos distintos.

Naquele caso o marido comprou o imóvel com o seu dinheiro e a mulher também outorgou na escritura por vontade do marido.

Nos presentes autos temos a aquisição por ambos da casa, com um empréstimo a ambos, e em que - de uma forma ou de outra - ambos contribuem para o seu pagamento, sendo certo que o Réu nem sequer configurou adequadamente a sua pretensão.

 

Acresce neste ponto, por fim, que nada autoriza o recurso ao regime do artigo 1791.º, no sentido de concluir que estivéssemos perante um benefício para a mulher (no caso, a Autora) concedido em consideração do estado de casados.

 

Conclui-se, portanto, que no respeitante a este primeiro momento, os valores entregues pelo Réu, na constância do casamento, para pagamento de capital e juros do empréstimo da casa de morada de família, têm de considerar-se contribuições para as necessidades dos encargos da vida familiar, sem que tais valores possam servir para qualquer tipo de compensação.

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Entrando no segundo momento, já os valores despendidos pelo Réu em capital e juros até à data do divórcio, bem assim como o valor pago pela seguradora na sequência da invalidez da Autora terão de ter um tratamento distinto.

 

De facto, a partir do divórcio e cessada a plena comunhão de vida (referida no artigo 1577.º do Código Civil) e os encargos familiares que justificavam o regime aplicado à situação anterior, caímos sem restrições no regime das obrigações solidárias (até ao momento da liquidação do empréstimo que faz cessar a solidariedade dos devedores).     

Não havendo dúvidas de que a obrigação contraída por Autora e Réu com o empréstimo foi uma obrigação solidária (voluntariamente assumida, para obstar ao n.º 2 do artigo 1695.º do Código Civil), também não podem restar dúvidas de que existe uma presunção de que as suas quotas sejam iguais e de que só com a liquidação do empréstimo a 25/06/2016 se poderia ter constituído um eventual direito de regresso por parte de Autora ou Réu (repare-se que muito embora a seguradora tenha pago “a parte” que correspondia à dita Autora, ela se mantinha - e manteve - na relação com o Banco, até à liquidação do empréstimo, na posição de devedora solidária).

 

Assim sendo, e retomando o artigo 524.º do Código Civil (que dispõe que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete), aqui já importa averiguar se a obrigação solidária de Autora e Réu (que, repete-se, para efeitos do credor Banco se manteve até ao momento da liquidação) originou pagamentos que – a final – impliquem que algum tenha ido além da sua quota (e, como tal, possa ter direito de regresso perante o outro).

 

Está agora em causa, portanto, o período temporal decorrido entre a data do divórcio (26/10/2010) e a liquidação do empréstimo (25/06/2016).

Nesse período:

            - o Réu liquidou 47.150,96 € (43.089,64 € de capital e 4.061,32 € de juros – Facto 28);

            - a Autora, através da seguradora e em face da sua invalidez, pagou 86.849,74 €, imputados a título de capital (Factos 7 e 11).

 

O que a Autora defendeu nos autos e foi aceite na Sentença de primeira instância foi que o pagamento feito pela seguradora a eximia de responsabilidades quanto ao crédito reclamado e que, como tal, o valor restante que ficou em dívida seria todo a cargo do Réu.

E na decorrência do mesmo entendimento, se já nada tinha a pagar nesse processo, tendo o produto da venda (descontadas as custas) sido de 235.044,24 €, teria direito a receber 117.522,12 € (sendo eventuais montantes ainda em dívida, da responsabilidade do aqui Réu e a imputar nos outros 117.522,12 €), sucedendo, todavia que apenas recebeu 75.346,36 €.

Repare-se que este ponto de vista dá-nos apenas uma perspectiva de relações internas, sendo que, para efeitos da relação com o Credor e da acção de divisão de coisa comum, o que interessava era a perspectiva das relações externas, ou seja, o da satisfação da pretensão do Credor:  é essa que tem de relevar até ao momento da liquidação.

 

Vejamos a situação devidamente decomposta e de forma cronológica.

Na acção de divisão de coisa comum, com a venda do imóvel e as custas pagas, ficaram disponíveis 235.044,24 € (seguindo as regras e o determinado na sentença e graduação de créditos).

A esse valor fez-se a imputação dos 84.353,42 € em dívida (Facto 21[20]), assim ficando satisfeito o crédito do Banco e extinta a dívida solidária.

O valor sobrante (150.690,72 €) ficou então para dividir entre os proprietários do imóvel dividido e vendido (ora Autora e ora Réu) tendo sido entregues 75.345,36 € a cada um dos iniciais proprietários do imóvel.

*

Chegados ao ponto em que a dívida solidária está extinta (com o pagamento dos 84.353,42 € ao Credor-Banco) pode – agora sim – falar-se e discutir-se o plano das relações internas: “Uma vez realizada por um dos condevedores a prestação devida, com a correlativa extinção de todos os vínculos face ao credor, há lugar a uma fase que a lei cristaliza nos arts. 524 a 526: é a fase das relações internas, onde pontifica o direito de regresso[21].

Este é o momento da liquidação, em que se faz a definição das responsabilidades internas entre os devedores solidários: “terminada a situação de solidariedade, haverá que proceder ao “acerto de contas” (lato sensu) não já entre todos os intervenientes da relação obrigacional de ordem superior, atenta a “saída” do credor pela satisfação do seu interesse, mas agora entre os devedores, intervenientes sobrantes”[22].

Em concreto o que sucedeu foi que o valor disponível no final da acção de divisão de coisa comum foi simplesmente dividido em duas partes iguais de 75.345,36 €, uma para ora Autora, outra para ora Réu.

Mal na perspectiva da Autora, bem na perspectiva do Réu.

 

A Autora (e o Tribunal de 1.ª Instância) entenderam que ao fazer a divisão nestes termos, o ora Réu saía beneficiado, pela circunstância de a seguradora ter feito o pagamento da metade da parte em dívida da Autora (num exercício virtual, relevando a sua posição interna na relação com o condevedor perante o credor-Banco, uma vez que ela permaneceria obrigada solidária até liquidação da dívida) e de a partir daí, pressupostamente, os valores em dívida (para efeitos da relação interna entre os condevedores) serem apenas da responsabilidade do ora Réu.

E este raciocínio está correcto na sua base: a seguradora assegura o pagamento da parte em dívida que corresponderia à Autora (metade da dívida à data em que fez o pagamento).

Mas este pagamento não extinguiu a obrigação da Autora perante o Banco, nem extinguiu a obrigação (solidária) de Autora e Réu, apenas fez cumprir a obrigação da seguradora perante a sua segurada no âmbito dessa (paralela, para este efeito) relação contratual[23].

Daqui decorre que, virtualmente (porque - repete-se - a obrigação da Autora não se extinguiu nessa altura), a partir do momento em que a seguradora faz aquele pagamento, no âmbito das relações internas dos devedores solidários, todos os outros montantes em dívida haveria de ser da responsabilidade do outro co-devedor (o ora Réu).

 

E eis-nos chegado ao ponto em que a divergência se consolida.

É que fazendo o referido “acerto de contas”, dos montantes em dívida desde a data do divórcio à data da liquidação:

                        - a Autora pagou 86.849,74 € (Factos 7 e 11)

                        - o Réu pagou 47.150,96 € (Facto 28).

Donde, a Autora pagou – efectivamente – no período pós-divórcio (que é o que aqui releva pois, na constância do casamento, os valores pagos pelo Réu foram um encargo comum do casal, como atrás se disse) 39.698,78 € a mais que o outro devedor, tendo direito a esse valor.

 

Sublinhe-se que o Réu pretendia ainda o pagamento de juros desde a realização das suas prestações, sem qualquer fundamento legal, uma vez que só depois da extinção da obrigação seria possível a aferição das responsabilidades internas dos devedores solidários e, portanto, só poderia haver juros a partir da data da citação nesta acção.

 

O valor que cada um recebeu na acção de divisão de coisa comum é um valor em bruto e foi regularmente recebido, porque nesse momento da distribuição do produto da venda (descontado o crédito do Banco e as custas do processo), a determinação concreta do estado das relações internas dos devedores solidários ainda não fora realizada (cada um recebeu 75.345,36 €, valor este que é prévio ao nivelamento do sacrifício patrimonial que cada um dos devedores solidários suportou).

 

Tudo visto, o Réu terá de pagar à Autora o montante de 39.698,78 €, valor esse que nos termos dos artigos 559.º, 805.º e 806.º do Código Civil, será acrescido de juros moratórios, à taxa de 4% (Portaria n.º 291/03, de 08 de Abril), até integral pagamento, calculados desde a data da citação.

 

A Sentença de 1.ª Instância vai praticamente confirmada no que tange à sua parte decisória, embora com fundamentos distintos e um concreto valor diverso.

A Reconvenção, por seu turno mantém a sua improcedência, também por razões diversas.

 

A presente apelação acaba assim por ser apenas parcialmente procedente (alteração da factualidade apurada nos termos peticionados e – embora com fundamento distinto da Sentença de 1.ª Instância – alterar o valor da condenação do Réu).

 

 

 

 

 

 

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a sentença recorrida:

                       I - fazer proceder a acção e condenar o Réu no pagamento à Autora do montante de trinta e nove mil seiscentos e noventa e oito euros e setenta e oito cêntimos (39.698,78 €), acrescidos de juros, à taxa de quatro por cento (4%), desde a data da citação (15/11/2017) até integral pagamento;

                       II - fazer improceder a Reconvenção, dela absolvendo a Autora do pedido;

                       III – as custas ficam a cargo de Autora e Réu na proporção dos respectivos decaimentos (artigos 527.º, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

Lisboa, 12 de Outubro de 2021

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Sousa

 

 

 

José Capacete



[1] Aqui plenamente aplicável uma vez que o divórcio entre Autora e Réu ocorreu já na sua vigência e o processo de divórcio – n.º 2151/09.7TB--- – ainda não tinha entrado em juízo à data da entrada em vigor do diploma (01 de Dezembro de 2008) - artigos 9.º e 10.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro.

[2] Sobre a matéria, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, Almedina, 2009, páginas 722 a 724.

[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 8.ª edição, Almedina, 1994, página 765.

[4] Ob. loc. cit..

[5] Ob. cit., página 767.

[6] Ob. cIt., página 804; Menezes Cordeiro, ob. cit., páginas 724 a 726; ou uma “providência de equidade”, na expressão de Gomes da Silva, Da solidariedade nas obrigações, RFDUL, IV, 1947, páginas 338 a 345.

[7] Ob. cit., página 805.

[8] Ob. cit., página 796.

[9] Por todos, vd. Cristina Araújo Dias, Do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, Coimbra Editora, 2009, páginas 138 a 152 e 699 a 706.

[10] O Divórcio, o Regime de Bens e a Partilha do Património Conjugal, in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book CEJ-OA, 2019, página 44, disponível na internet em https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/ebook.pdf [consultado em 27/09/2021].

E a mesma Autora acrescenta que são “evidentes as dificuldades e a complexidade das operações de divisão dos patrimónios dos cônjuges, mesmo no contexto do regime da separação de bens.   Note-se que nem a própria Lei supõe uma total independência dos patrimónios dos cônjuges, impondo-se que a comunhão de vida conjugal (cf. artigo 1577.º do CC) se traduza num mínimo de solidariedade, manifestado no dever de contribuir para os encargos da vida familiar e na correlativa responsabilidade de ambos os cônjuges pelas dívidas contraídas para acorrer aos encargos normais da vida familiar [n.º 1, do artigo 1676.º e al. b), do n.º 1 do artigo 1691.º do CC]”. E que a “reforma do regime do divórcio levada a cabo em 2008 proclamou que, tal como o casamento, o divórcio não deveria ser visto como um meio de aquisição de património, como oportunidade de um dos cônjuges se enriquecer à custa do outro. No entanto, o divórcio também não deve ter o efeito pernicioso inverso, propiciando situações de empobrecimento ilegítimas que a Lei não deve tolerar. A interpenetração patrimonial que ocorre durante o casamento poderá exigir a reintegração das massas patrimoniais após o divórcio para impedir situações de enriquecimento injustificado. Daí a importância da ponderação global das relações patrimoniais no momento do divórcio, com vista à promoção de um (re)equilíbrio patrimonial entre os cônjuges” (ob. cit., páginas 44 e 45).

[11] O dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afectação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos” (artigo 1676.º, n.º 1, do Código Civil).

Rita Lobo Xavier (ob. cit., página 47), refere que em 2008 “ficou expressamente consagrado o direito de um ex-cônjuge a exigir do outro um crédito de compensação por contribuição excessiva para os encargos da vida familiar, verificados determinados pressupostos (n.ºs 2 e 3, do artigo 1676.º). Ter-se-á tido em vista manter a situação paritária das contribuições para os encargos da vida familiar, corrigindo eventuais distorções no que diz respeito à remuneração do trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos e que poderá ter envolvido a renúncia de um dos cônjuges (total ou parcial) ao exercício de uma profissão remunerada, ou a cumulação de ambas as atividades (implicando uma renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses pessoais em favor da vida em comum). A exposição de motivos do projeto inicial manifestava precisamente esse propósito de reconhecer a importância do trabalho em casa e nos cuidados com os filhos e de “compensar” as “assimetrias” verificadas entre os cônjuges neste âmbito, sobretudo no que diz respeito à “penalização” das mulheres nas suas “carreiras profissionais”. Considero, contudo, que a renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum pode ter a ver, não apenas com o chamado «trabalho doméstico», mas, em sentido mais vasto, com outras formas de colaboração familiar – não remunerada – como a colaboração na profissão do outro cônjuge ou na “empresa familiar”.  Do meu ponto de vista, a palavra “compensação” exprime o sentido mais geral de procurar equilibrar, contrabalançar, a diferença entre as contribuições para a vida em comum durante o casamento. A referência legal a prejuízos patrimoniais importantes, em rigor, não faz depender a atribuição da compensação da prova de «danos» sofridos pelo cônjuge que requer a compensação, pois não está em causa um pedido indemnizatório. O direito a exigir do ex-cônjuge uma compensação aproxima-se do instituto do enriquecimento sem causa e não do da responsabilidade civil”.

[12] “O caso mais evidente em que este desequilíbrio se observa é quando um dos cônjuges prescinde do seu emprego para se dedicar ao lar e aos filhos. Contudo a atualidade do nosso quotidiano impõe que consideremos outro tipo de casos (…) como, por exemplo, quando um dos cônjuges exerce a sua atividade laboral, contribuindo assim com os seus rendimentos para os encargos da vida familiar e também realiza todas (ou a maioria) das tarefas domésticas e cuida dos filhos, ou quando um dos filhos do casal sofre de uma doença incapacitante que implica que um dos cônjuges tenha de trabalhar a tempo parcial para conseguir fornecer o maior cuidado possível a esse filho” (Margarida Malheiro Tomás, O crédito compensatório a ex-cônjuge no contexto das contribuições para os encargos familiares, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Fevereiro de 2021, páginas 22-23, disponível na internet, em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/49463/1/ulfd0148936_tese.pdf [consultado em 27/09/2021]).

[13] In, O Crédito compensatório previsto no artigo 1676, n. 2, do Código Civil Português: o que o legislador disse e o que realmente quis dizer, in Actualidad Jurídica Iberoamericana, ISSN 2386-4567, IDIBE, núm. 6, feb. 2017, páginas 70 a 89, disponível na internet em https://www.fd.uc.pt/~sandrap/pdfs/Sandra_Passinhas_pp_70-89.pdf [consultado em 29-09/2021]

[14] Sandra Passinhas, ob. cit., página 77. Prejuízos que têm de ser “importantes, quer no sentido de serem ostensivos, quer no sentido de serem especialmente relevantes para quem os sofreu” (ob. cit., página 83).

[15] Sandra Passinhas, ob. cit., páginas 79 e 80 (onde também se acrescenta que se abdica “da consideração objectiva da contribuição: mais do que saber se ela excede substancialmente a contribuição que era exigida ao cônjuge em termos normais, de acordo com as suas possibilidades e capacidades, o que releva é o impacto que a renúncia dos interesses pessoais do cônjuge em favor da vida em comum tem na dinâmica daquele casal, ou seja, negativamente, nas aspirações e possibilidades do cônjuge renunciante, bem como, positivamente, nas possibilidades e realizações do cônjuge beneficiado”.

[16] Sandra Passinhas, ob. cit., página 84.

[17] Amadeu Colaço, citado por Margarida Malheiro Tomás, ob. cit., página 23.

[18] Margarida Malheiro Tomás, ob. loc. cit..

[19] A ideia que me parece decisiva é a de o juiz dispor de um leque fáctico que permita ajuizar por comparação entre a prestação de um e a prestação do outro cônjuge e entre a capacidade de um e a capacidade do outro. Mas este  dever não  desonera  as  partes  do ónus  da  alegação  e  do  respectivo  ónus  da  prova (…)  Ao cônjuge  que  afirma  ser  titular  desse  crédito  de  compensação  compete  o  ónus  da  prova  dos respectivos  factos  constitutivos  e  ao  outro  cônjuge  compete  a  prova  de  todos  os  factos impeditivos,  modificativos  ou  extintivos  desse  direito,  assim  se  acolhendo  a  regra  geral material  do  ónus da  prova” - João Guilherme Pires da Silva, As  implicações  patrimoniais  do  novo  regime  do  divórcio, in O Divórcio, e-book CEJ, 2014, páginas 81 a 159 (101) [consultado em 29/09/2021].

 

[20] 82.746,42 € + 1.607,10 € (juros e imposto de selo, aqui apurados por mera operação aritmética de subtracção aos 235.044,24 € obtidos e os 150.690,72 € que ficaram disponíveis para dividir entre Autora e Réu).

[21] Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida – Sobre o sentido e âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, páginas 247-254.

[22] Ob. cit., página 249.

[23] Aliás, se a Autora tivesse ainda de assegurar algum pagamento na acção de divisão de coisa comum – por exemplo, por o valor da venda não ser suficiente para o pagamento do crédito – esta mesma Autora teria de se entender com a sua Seguradora, pois essa relação contratual é irrelevante para efeito da solidariedade da dívida.

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