terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Alimentos e ex-cônjuges: as condições para a recíproca solidariedade pós-conjugal

 Sumário:

I – O artigo 2016.º, n.º 1, do Código Civil consagra o princípio da auto-suficiência de cada cônjuge após o divórcio.

II - A filosofia subjacente à obrigação de prestação de alimentos entre ex-cônjuges passa pelo reconhecimento de uma “recíproca solidariedade pós-conjugal”, decorrente da existência de uma vida em plena comunhão no passado que obriga a – subsidiária, tendencial, temporária e excepcionalmente – prolongar o dever de assistência conjugal, como um resto de solidariedade familiar.

III – Esse dever de prestação de alimentos reporta-se a situações de grande exigência resultantes de manifesta carência de meios de subsistência em quadros de impossibilidade ou séria dificuldade de obtenção de rendimentos suficientes para uma vida minimamente condigna (e não a colocação em posição idêntica, do ponto de vista financeiro, aquela que desfrutaria se o casamento não tivesse sido dissolvido) e que pode ser recusado por razões de equidade.

IV – A atribuição de uma pensão de alimentos a ex-cônjuge pressupõe dois momentos sucessivos:

                   1.º - Verificação da incapacidade do alimentado para prover à sua subsistência;

                   2.º - Ponderação das necessidades do demandante e das possibilidades do demandado.

V – De acordo com o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, é ao/à requerente dos alimentos que cabe o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu direito, ou seja:

                    i - da sua incapacidade para prover à sua subsistência (por exemplo, por força da sua idade, da sua saúde débil, da impossibilidade de iniciar o exercício de uma qualquer actividade profissional para prover à sua subsistência, etc.) - artigo 2016.ºA);

                    ii - das suas necessidades - artigos 2003.º e 2004.º;

                    iii - de o requerido ter possibilidades de os prestar - artigos 2003.º e 2004.º.

VI – Quanto ao requerido, caber-lhe-á o ónus (nos termos do n.º 2 do artigo 342.º) de provar as circunstâncias que poderão justificar a não atribuição do direito a alimentos:

                   i - a sua impossibilidade de dar alimentos em face da sua condição económica;

                   ii- a iniquidade em que se traduziria ficar com o encargo de pagar uma pensão de alimentos ao ex-cônjuge.

VII – Não tem direito a alimentos a ex-cônjuge, de 44 anos, saudável, com formação e sem nada que a impeça de desenvolver qualquer actividade profissional que lhe permita prover à sua subsistência com mínimos de dignidade.

 

 

Processo n.º   869/19.5T8SXL.L1 -Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Família e Menores do Seixal-Juiz 2

 

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório

H…………….. intentou a presente acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge contra G…………….. peticionando que seja decretada a dissolução do casamento nos termos do disposto na alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil.

O Autor alega, em síntese, que casou com a Ré em 17/06/2007, que na constância do matrimónio nasceu uma filha ainda menor de idade (E…………) e que se verifica uma situação de ruptura da vida em comum, bem como a inexistência, por parte do Autor, de qualquer intenção de retomar tal vivência.

 

Realizadas tentativas de conciliação e não tendo havido acordo quanto à regulação das responsabilidades parentais, foi cumprido o artigo 931.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

 

Veio, de seguida, a Ré apresentar Contestação, defendendo-se por impugnação e deduzindo Reconvenção, peticionando a final que a ação seja julgada improcedente por não provada e que:

                                   - o Autor-Reconvindo seja condenado a pagar-lhe uma indemnização fixada em valor não inferior a €6.500 (seis mil e quinhentos euros);

                                   - seja apreciado e julgado procedente o divórcio litigioso com fundamento na violação dos deveres conjugais do Autor-Reconvindo;

                                   - seja decretada uma pensão de alimentos mensal de €350 (trezentos e cinquenta euros);

                                   - seja atribuído o imóvel onde ambos residem como casa de morada de família da Ré Reconvinte e filha, E………………...

 

O Autor-Reconvindo respondeu, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional e pela sua absolvição de todos os pedidos.

 

Proferido Despacho Saneador, nele se decidiu:

                       - conhecer da excepção dilatória de conhecimento oficioso, de incompetência material do Tribunal quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, indeferindo-se parcial e liminarmente o pedido reconvencional no atinente a tal pedido, absolvendo nesta parte o Autor-Reconvindo da instância;

                       - admitir a Reconvenção quanto aos alimentos (artigos 555.º, n.º 2 e 266.º, n.º 1, do CPC, a prosseguir na presente ação;

                       - convolar a ação para divórcio por mútuo consentimento;

                       - atribuir da casa de morada de família ao cônjuge marido;

                       - atribuir o animal de companhia (cão) ao cônjuge mulher.

                       

Realizado o julgamento foi proferida Sentença que decretou os factos provados e não provados e, a final, julgou a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, fixou “uma pensão de alimentos de €175,00 (cento e cinquenta euros) a pagar pelo Autor Reconvindo à Ré Reconvinte pelo período de dois anos, por transferência bancária para uma conta cujo NIB a Ré Reconvinte indicará nos autos em 5 dias, até ao dia 8 do mês a que respeita, absolvendo o Autor Reconvindo do demais peticionado a título reconvencional no atinente a alimentos”.

 

O Réu-Reconvinte recorreu da Sentença lavrando as seguintes Conclusões:

A) De acordo com a douta sentença ora recorrida, foi julgada parcialmente procedente a reconvenção e fixada uma pensão de alimentos no valor de 175,00 euros a pagar pelo Autor Reconvindo à Ré Reconvinte, pelo período de dois anos, por transferência bancária para um NIB cuja Ré Reconvinte indicará nos autos em cinco dias, até ao dia 08 de cada mês a que respeita, absolvendo o Autor Reconvindo do demais peticionado a título reconvencional, no atinente a alimentos.

B) Alega para tanto, em síntese, a douta sentença proferida que durante parte significativa da união conjugal a ora Recorrida se dedicou ao estudo, tendo adquirido qualificação profissional como terapeuta de medicina chinesa/acupuntura.

C) Que exerceu por conta própria a actividade que interrompeu por motivos alheios à sua vontade.

D) Que o ora Recorrente não contribui com qualquer pensão de alimentos para a menor.

E) Que a situação económico-financeira do ora Recorrente é superior à da ora Recorrida, pelo que, subsistem fundamentos para que aquele seja obrigado a prestar alimentos a esta.

F) Não pode o ora Recorrente concordar com tal entendimento, pois

G) Se é verdade que a ora Recorrida se dedicou a estudar durante parte da vivência conjugal, também é verdade que a mesma exerceu a sua actividade durante largo período de tempo da vivência em comum.

H) Tendo, inclusivé, montado um negócio por conta própria onde exerceu a sua actividade durante vários anos, tendo ainda trabalhado noutros locais, inclusive na clínica do Dr. P……….., como foi referido em sede de julgamento pela própria ora Recorrida.

I) Facto que demonstra que a ora Recorrida é uma pessoa capaz e com formação suficiente para prover o seu sustento.

J) De salientar que a acção de divórcio foi instaurada em 04 de Abril de 2019 e a ora Recorrida veio apresentar a sua contestação em 04 de Dezembro de 2019, onde deduziu logo o pedido de alimentos, ou seja, já nessa altura, estando a trabalhar a ora Recorrida, veio deduzir o pedido da pensão de alimentos, facto que prova que a ora Recorrida teve sempre em mente continuar a viver às custas do ora Recorrente mesmo após a separação, como sempre fez, pois

K) A ora Recorrida é pessoa jovem, saudável e com todas as condições para exercer uma actividade com a qual consiga obter o seu sustento.

L) Sendo, inclusive, de salientar que a ora Recorrida não juntou aos autos as suas declarações de IRS ou notas de liquidação, nem qualquer documento emitido pela Autoridade Tributária a atestar que pela falta de rendimentos estaria dispensada da apresentação do IRS, pelo que não provou a ora Recorrida, nos presentes autos, a sua incapacidade de prover ao seu sustento, como defende a douta sentença ora recorrida, não podendo assim ser considerada a necessidade da mesma auferir de uma pensão de alimentos.

M) Mesmo que a mesma não pudesse exercer a sua actividade, o que não sucede, a ora Recorrida poderia sempre procurar outro trabalho onde pudesse ganhar para o seu sustento, sendo essa a sua obrigação, dado que cabe a cada cônjuge prover ao seu sustento.

N) Sendo a concessão da pensão de alimentos algo que só deve ser concedido em situações muito particulares e excecionais, nomeadamente quando por motivo de doença o cônjuge não pode trabalhar ou porque durante toda a vivência em comum se dedicou à família não exercendo qualquer atividade profissional, o que não é o caso, sendo clara a lei que determina que após a separação o outro cônjuge não tem que manter o mesmo padrão de vida que vivia na constância do matrimónio.

O) Tem a ora Recorrida todas as condições para poder subsistir pelos seus próprios

meios e tem condições de prover ao seu sustento.

P) O ora Recorrente para ter a sua vida organizada trabalha, arduamente, muitas horas ao longo do dia, não se compreende agora que vá pagar uma pensão à ora Recorrida que também pode trabalhar e trabalha, só porque a mesma não se esforça e é desorganizada, que é em suma o que acontece, na realidade.

Q) Na verdade, o pedido de alimentos da ora Recorrida não provém sequer da conjuntura que temos vindo a viver no nosso país porque foi formulado antes disso, mas da vontade que a ora Recorrida tem e sempre teve, de viver às custas do ora Recorrente, pois

R) Esse foi um dos motivos que levou o ora Recorrido a pedir o divórcio, a ora Recorrida sempre saiu para trabalhar mas era sempre o ora Recorrente quem

suportava todas as despesas, não sabendo o mesmo o que a ora Recorrida fazia ao seu dinheiro, constando isso já do requerimento do pedido de divórcio instaurado pelo ora Recorrente,

S) Como tal, entende o ora Recorrente não haver qualquer motivo para ser condenado no pagamento de uma pensão à ora Recorrida, isto, após a ter sustentado durante todos os anos em que viveram juntos, sem que a mesma comparticipasse para qualquer despesa, tendo ainda pago a sua formação profissional.

T) Quanto à pensão de alimentos da menor, o ora Recorrente só deixou de efectuar o seu pagamento quando o Tribunal o determinou, pois já foi decretado o regime provisório da guarda partilhada, que a ora Recorrida incumpriu.

U) Tendo depois sido fixada a entrega da menor ao progenitor aqui Recorrente face ao incumprimento da ora Recorrida, regime este que a ora Recorrida voltou a incumprir.

V) Pelo que, neste momento, a ora Recorrida tem a menor na sua companhia desobedecendo e incumprindo a uma decisão judicial, logo não pode o facto da Recorrida residir com a menor de 11 anos, servir como fundamento para a auxiliar e obter a pensão de alimentos.

W) Antes pelo contrário, se a ora Recorrida se recusa a entregar a menor ao pai é porque tem condições para prover ao seu sustento, sozinha, não carecendo assim da pensão de alimentos que requer.

X) Face ao exposto, entende-se assim que viola a douta sentença o disposto no n.º 1

do art.º 2016.º da Lei n.º 61/2008 de 31 de Outubro.

Y) Deve assim ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente ser

alterada a douta sentença, ora recorrida, no sentido de absolver o ora

Recorrente da totalidade do pedido reconvencional deduzido pela ora

Recorrida no que à pensão de alimentos se refere.

 

Não foram apresentadas contra-alegações.

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, ABRANTES GERALDES ), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

 

A factualidade apurada na 1.ª Instância não foi colocada em causa no recurso.

 

Em causa estará, assim, a verificação dos pressupostos para atribuição de uma pensão de alimentos por parte de um cônjuge ao outro, findo o casamento por divórcio, na base da factualidade dada como provada. 

 

Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.

 

Fundamentação de Facto

A sentença sob recurso considerou como provada e não factualidade que não é colocada em causa pelo apelante:

1. Autor e Ré são casados um com o outro no regime da comunhão de bens adquiridos, tendo celebrado entre si casamento, sem precedência de convenção antenupcial, no dia 17 de Junho de 2007.

2. Desse casamento existe uma filha menor: E…….., nascida em 09/04/2010, tendo - à data - o pai, 33 anos e, a mãe, 31 anos.

3. A presente acção foi instaurada a 04/04/2019, data em que o Autor-Reconvindo requereu que fosse decretada a dissolução do casamento e a Ré Reconvinte contestou a ação em 04/12/2019, apresentando Reconvenção na qual peticiona a atribuição de uma pensão de alimentos mensal de €350 a pagar pelo Autor Reconvindo à Ré Reconvinte.

4. A Ré Reconvinte e o Autor Reconvindo residem em casas separadas desde Março de 2020.

5. A Ré Reconvinte tem formação em acupuntura.

6. A Ré Reconvinte efectuou os seus estudos em acupuntura em período em que vivia com o Autor Reconvindo.

7. Em Fevereiro de 2020, a Ré Reconvinte, por motivos alheios à sua vontade, deixou o espaço físico onde exercia a sua profissão.

8. A Ré Reconvinte beneficiou até Maio de 2021 de um apoio atribuído pelo ISS, no âmbito da Pandemia por Covid 19, no valor de €219.

9. A Ré Reconvinte confeciona bolos e salgados, para venda a particulares, estimando auferir cerca de €80 mensais com esta atividade.

10. Em maio de 2021 a Ré Reconvinte auferiu cerca de €160 em trabalhos de acupuntura, executados em regime de domicilio.

11. A Ré Reconvinte encontra-se na atualidade a desenvolver diligências para desenvolver a sua atividade profissional de terapeuta de medicina chinesa / acupuncturista por conta própria.

12. A Ré Reconvinte apresenta as seguintes despesas mensais fixas:

• renda de casa – €300 (trezentos euros).

• condomínio – €119.

• água / eletricidade / gás – €83,33 (€500 semestrais).

• Crédito pessoal – €170 euros (cento e setenta euros).

13. A Ré Reconvinte apresenta 6 mensalidades de renda de casa e 2 mensalidades de condomínio em atraso.

14. O Autor Reconvindo exerce a atividade profissional de mecânico de refrigeração.

15. O Autor Reconvindo aufere aproximadamente €1.432 mensais líquidos no exercício da sua atividade profissional por conta de outrem.

16. O montante referido em 14. contempla complemento de isenção de horário e de responsabilidade por uma unidade operativa.

17. Pontualmente, o Autor Reconvindo exerce a sua atividade profissional por conta própria, daí auferindo proventos variáveis e incertos.

18. O Autor Reconvindo apresenta as seguintes despesas mensais fixas:

• Crédito habitação – 400.

• Água – 20.

• Eletricidade – 70.

• Crédito pessoal – 187,53 euros.

• Telefone – 40.

19. O Autor Reconvindo reside atualmente com uma companheira, em casa desta, a qual exerce atividade profissional de professora de natação numa autarquia, um filho menor de idade (11 anos) da companheira e a progenitora da companheira, reformada.

20. O Autor Reconvindo comparticipa as despesas comuns do seu atual agregado familiar.

21. A Ré Reconvinte reside com a filha comum do casal, de 11 anos de idade.

Factos não provados

a) O Réu Reconvinte está obrigado a proceder ao pagamento de uma pensão de alimentos à sua filha, no valor mensal de 125 euros (cento e vinte e cinco euros).

b) O Réu Reconvinte está obrigado a proceder ao pagamento de ¾ das despesas com ATL, Hip Hop, Balet, Sala de estudo, explicações, despesas médicas e medicamentosas, na parte não comparticipada, despesas escolares e despesas com terapias e psicólogos:

• Ballet e Hip Hop – 45 euros (quarenta e cinco euros);

• ATL – 150 euros (cento e cinquenta euros) (cfr. Doc. 25);

• Psicóloga – 26 euros x 4 = 104 euros (cento e quatro euros);

c) Durante o período em que o casal coabitou, foi sempre o Autor Reconvindo quem suportou todas as despesas da casa.

 

 

Fundamentação de Direito

A sentença sob recurso julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção, com base no seguinte processo de raciocínio:

               - a medida dos alimentos depende da verificação das seguintes condições: possibilidade do alimentante; necessidade do alimentado; possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência;

               - a obrigação de alimentos mantém-se mesmo após a dissolução do casamento por divórcio nos termos dos artigos 2009.º, n.º 1, al. a), 2016.º e 2016-A.º do Código Civil;

               - o artigo 2016.º-A - introduzido pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro e vigente a partir de 30 de Novembro de 2008 - introduziu uma importante alteração em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, estabelecendo a regra de que o direito a alimentos não deve perdurar para sempre, competindo ao ex-cônjuge providenciar e esforçar-se pela angariação de meios de subsistência e não ficar dependente do outro ex-cônjuge e, este, por sua vez, eternamente vinculado a essa obrigação, assumindo natureza temporária, com vista a permitir ao cônjuge que deles carece a satisfação das suas necessidades básicas nos primeiros tempos subsequentes ao divórcio, de modo a permitir-lhe o mínimo de condições para reorganizar a sua vida;

               - para a determinação do montante de alimentos a atribuir ao ex-cônjuge necessitado, além dos elementos indicados no artigo 2016.º, n.º 3, acrescentara-se três factores de ponderação: a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal e um novo casamento ou união de facto;

               - cada um dos ex-cônjuges deverá em princípio prover à sua subsistência e só se a um deles tal não for de todo possível, terá então o direito a receber alimentos do outro cônjuge, em montante que lhe permita garantir um mínimo de vida digna, e sempre de acordo com as reais possibilidades económicas do ex-cônjuge obrigado a prestá-los;

               - para apuramento das necessidades do cônjuge beneficiário - credor da prestação de alimentos -, tem o Tribunal de tomar em consideração, em face do custo de vida, todos os gastos necessários ao seu sustento (alimentação, saúde), para além dos referentes à habitação (onde se deverão incluir os consumos de energia, água e telecomunicações) e vestuário, a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade e estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, um novo casamento ou união de facto e, de modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e as possibilidades do que os presta;

               - o casamento dos autos durou cerca de 14 anos, os cônjuges residem em casas separadas desde Março de 2020;

               - a Ré Reconvinte durante parte significativa da união conjugal dedicou-se ao estudo, tendo adquirido qualificação profissional como terapeuta de medicina chinesa / acupuncturista (actividade que ainda exerceu por conta própria mas que interrompeu por ter recebido ordem de deixar o local onde a desenvolvia - propriedade de familiares do Autor Reconvindo e por força das medidas excepcionais decretadas aquando da pandemia de Covid19);

               - os cônjuges são saudáveis e jovens;

               - o Autor Reconvindo é mecânico de refrigeração por conta de outrem (e irregularmente por conta própria);

               - a filha de ambos, está – em desrespeito pela decisão do Tribunal – a residir com a mãe e que o pai não se encontra a contribuir com qualquer montante a título de pensão de alimentos ou para as despesas da menor;

               - estão demonstradas as necessidades da Ré Reconvinte no recebimento de alimentos (ausência de rendimentos fixos provenientes do trabalho, fracos proventos decorrentes da confecção caseira de bolos; despesas mensais fixas de cerca de €672);

               - o Reconvindo aufere cerca de €1.432 mensais líquidos, apresentando despesas (apuradas) na ordem dos €743;

               - a situação económico-financeira do Autor Reconvindo é significativamente superior à da Ré Reconvinte, pelo que subsistem fundamentos para que aquele seja obrigado a prestar-lhe alimentos;

               - a Ré Reconvinte cumpriu o ónus da prova das suas necessidades e de que o Autor Reconvindo tem possibilidades de os prestar;

               - €175[1] é um valor proporcional aos rendimentos e despesas do Autor Reconvindo e necessária perante as despesas (e receitas) actuais da Ré Reconvinte, tudo tendo em consideração que de momento o Autor Reconvindo não se encontra obrigado ao pagamento de prestação alimentícia devida à filha menor de ambos;

               - não obstante a ideia de solidariedade (pós) conjugal e de um dever de assistência, o legislador introduziu o carácter temporário da obrigação, estando em causa apenas a garantia de um mínimo de vida digno e de uma obrigação de socorro numa situação de grande exigência resultante de manifesta carência de meios de subsistência num quadro de impossibilidade ou séria dificuldade de obtenção de rendimento suficiente à realização de uma vida minimamente condigna;

               - a pensão atribuída será determinada por dois anos, porquanto é expectável que a Ré Reconvinte consiga começar a obter proventos que garantam a sua subsistência.

 

Entrando a decidir.

Convocados para a análise da questão dos autos temos as normas dos artigos:

            - 2003.º (Noção), n.º 1[2];

            - 2004.º (Medida dos alimentos)[3];

            - 2009.º (Pessoas obrigadas a alimentos), n.º 1, alínea a)[4];

            - 2016.º (Separação judicial de pessoas e bens e divórcio), n.º 1[5], 2[6], 3[7] e 4[8];

            - 2016.ºA (Montante dos alimentos), n.º 1[9], 2[10], 3[11] e 4[12], todos do Código Civil[13].

A regra que nos guiará na apreciação da situação dos presentes autos é a que consagra o chamado “princípio da auto-suficiência”[14] (cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio) e que decorre expressamente do n.º 1 do artigo 2016.º.

 

Os alimentos entre ex-cônjuges têm sido abordados pelo Código Civil português vigente sobre distintas perspectivas e que reflectem o contexto sócio-cultural dos respectivos momentos:

            - em 1966 (Decreto-Lei n.º 47.334, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o novo Código Civil) começaram por ser vistos como uma sanção sobre o cônjuge culpado ou principal culpado pelo divórcio;

            - com a Democracia (Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, que aprovou a reforma do Código Civil), passaram a ter um carácter essencialmente alimentar;

            - desde 2008 (Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que aprovou alterações ao Código Civil), restringindo a sua aplicação, mas mantendo essa natureza alimentar[15], eliminando mesmo a apreciação da culpa como factor relevante da atribuição de alimentos nestes casos.

 

Hoje em dia, portanto, a filosofia subjacente à obrigação de prestação de alimentos entre ex-cônjuges - que decorre fundamentalmente do estatuído nos artigos 2016.º e 2016.ºA - está imbuída (para usar uma expressão de J.P. Remédio Marques) de uma ideia de “recíproca solidariedade pós-conjugal”[16], ou se se preferir, radicada na ideia de um “dever de solidariedade/dever assistencial imposto em função da vida em comum ocorrida no passado, que a lei assume verificar-se na generalidade dos casos”[17].

Guilherme de Oliveira assinala que, nestas situações, estamos perante um “prolongamento do dever de assistência conjugal, um resto de solidariedade familiar[18] (tornado cada vez mais difícil, por força da banalização do divórcio e sucessão de núpcias e relações), que constitui uma medida justa e realista, ao conciliar “a aplicação de um ideal de solidariedade entre os indivíduos que se encontraram numa ‘plena comunhão de vida’ com a responsabilização individual daqueles que estão a dissolver esse vínculo e a caminhar no sentido da plena autonomia”[19]

Com Ana Resende podemos afirmar sem dúvidas que “o fundamento último, ético e jurídico, da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges encontra-se num princípio de solidariedade pós-conjugal. Não se pode, com efeito, tratar os ex-cônjuges como se nunca houvessem sido casados. É que o divórcio não pode apagar o passado nem obstar ao desenvolvimento actual de determinadas consequências do matrimónio. Trata-se como que de uma eficácia póstuma do vínculo matrimonial, de um efeito ultra-activo do  casamento”[20].

Ou seja, dissolvido o vínculo conjugal (e, como tal, também o dever de assistência previsto no artigo 1675.º do Código Civil), não desaparece necessariamente o direito a alimentos entre os ex-cônjuges (por qualquer deles, independentemente do tipo de divórcio e sem que esteja em causa manter o estatuto económico pré-divórcio[21]): têm é de estar reunidos os pressupostos (positivos e negativos) prevenidos pelos artigos 2016.º e 2016.ºA do Código Civil.

 

Assim, na base do já referido princípio da auto-suficiência, “a solidariedade, por via da obrigação de alimentos, tende a ser uma exceção. Mas a obrigação não é afastada radicalmente, porque as realidades sociais não mudam à velocidade da lei e continua a haver pessoas com necessidades que não lhes permitem sobreviver sem ajudas”, pelo que, o “ex-cônjuge continua a poder ser chamado a prestar alguma solidariedade pós-matrimonial, porventura apenas transitoriamente, num quadro que pode ser designado por “alimentos reabilitadores”[22] (expressão também usada por Paula Távora Vítor[23]), a não ser em situações que rocem a iniquidade (cfr. n.º 3 do artigo 2016.º[24]).

Este direito a alimentos após o divórcio, como se diz paradigmaticamente no Acórdão da Relação do Porto de 15/09/2011 (Filipe Caroço)[25], assenta – assim – num “dever assistencial” que perdura para além do casamento e que “passou a ter carácter subsidiário e, seguramente, limitado pela obrigação de socorro numa situação de grande exigência resultante de manifesta carência de meios de subsistência num quadro de impossibilidade ou séria dificuldade de obtenção de rendimento suficiente à realização de uma vida minimamente condigna”.

 

Por seu turno, o Supremo Tribunal de Justiça, tem seguido o mesmo entendimento, afirmando que:

                        - a obrigação alimentar entre ex-cônjuges na decorrência de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens se funda no chamado princípio da recíproca solidariedade pós-conjugal induzido pela anterior comunhão plena de vida e justificado pelo desequilíbrio que a rutura dessa comunhão possa provocar nas condições de vida de um dos ex-cônjuges em relação ao outro[26];

                        - ao “redigir o artigo 2016.º-A, n.º 1, do CC, não teve o legislador português como intenção colocar o ex-cônjuge carecido de alimentos numa posição idêntica, do ponto de vista financeiro, aquela que desfrutaria se o casamento não tivesse sido dissolvido, desmistificando uma certa expectativa jurídica de garantia da auto-suficiência, durante e após a dissolução do matrimónio, que consubstanciaria o casamento como um verdadeiro «seguro de vida», por não ser «concebível a manutenção de um status económico atinente a uma relação jurídica já extinta», até porque não se pode subestimar a ideia básica, hoje vigente neste âmbito do Direito da Família, de que “cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio”, porquanto o direito a alimentos pode ser negado, por razões manifestas de equidade.

É que o direito do cônjuge a uma existência, economicamente, autónoma e condigna, já não é, presentemente, uma realidade a tomar em consideração nas situações posteriores ao divórcio, pois que a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade, o estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, um novo casamento ou união de facto e, de um modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe alimentos e as possibilidades daquele que os presta, a que alude o nº 1, do artigo 2016º-A, do CC, são apenas «índices» do critério da fixação do montante dos alimentos e não a «razão de ser» da existência do direito do autor do pedido”[27].

 

Em face de tudo o já exposto, podemos concluir que o direito a alimentos entre ex-cônjuges é um direito especial e com uma natureza excepcional e subsidiária, tendo-se como objectivo “prestar um socorro que atinja um mínimo decente[28].

Ou seja, partindo do princípio geral de que após o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens “cada cônjuge deve prover à sua subsistência” (esta é a regra), só há direito a alimentos se um dos ex-cônjuges não tiver possibilidades de prover à sua subsistência[29].

 

Deste modo, quando é pedida (como ocorre in casu) uma pensão de alimentos, começa por ser necessário proceder ao apuramento da incapacidade de quem a pede para subsistir pelos seus próprios meios, só depois se partindo para a verificação dos restantes requisitos.

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/12/2013[30], “pedida pensão de alimentos a ex-cônjuge, importa apurar a incapacidade de o demandante prover à sua subsistência”, sendo que só “a partir dessa constatação é que se avança para a verificação dos demais requisitos, i. e., a ponderação das necessidades de quem os pretende e as possibilidade daquele que os presta”.

Ou seja, e na mesma linha, agora em concordância com o Acórdão da Relação de Coimbra de 17/04/2012[31], “constatada que esteja a qualidade de ex-cônjuge do demandante de alimentos, tem que se apurar a sua incapacidade de prover à sua subsistência e somente após a constatação desta é que se parte para a verificação dos requisitos daquele preceito, i. e, a ponderação das necessidades de quem os pretende e as possibilidade daquele que os presta, sendo de considerar as várias circunstâncias ali enumeradas, com a finalidade de fixar o montante respectivo”[32].

 

Há, pois, assim, dois momentos sucessivos[33] que importa atender:

            1.º - Verificação da incapacidade do alimentado para prover à sua subsistência;

            2.º - Ponderação das necessidades do demandante e das possibilidades do demandado[34].

 

Quanto a estes dois momentos, diga-se que, em termos de ónus da prova, de acordo com o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, é ao/à requerente dos alimentos que cabe o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu direito, ou seja:

                        - da sua incapacidade para prover à sua subsistência (por exemplo, por força da sua idade, da sua saúde débil, da impossibilidade de iniciar o exercício de uma qualquer actividade profissional para prover à sua subsistência, etc.)[35] (artigo 2016.ºA);       

                        - das suas necessidades (artigos 2003.º e 2004.º);

                        - de o requerido ter possibilidades de os prestar (artigos 2003.º e 2004.º).

 

Quanto ao requerido, caber-lhe-á o ónus (nos termos do n.º 2 do artigo 342.º) de provar as circunstâncias que poderão justificar a não atribuição do direito a alimentos:

            - a sua impossibilidade de dar alimentos em face da sua condição económica;

            - a iniquidade em que se traduziria ficar com o encargo de pagar uma pensão de alimentos ao ex-cônjuge.

 

No que ao primeiro momento concerne e seguindo Maria João Vaz Tomé, será necessário que se mostre comprovado no processo que o ex-cônjuge está efectivamente com necessidade de alimentos, “qualquer que seja a causa que produziu o seu estado de necessidade, desde que tal necessidade não seja susceptível de ser satisfeita mediante um empenhamento diligente.

Encontra-se em necessidade quem não consegue satisfazer adequadamente as necessidades de uma vida autónoma e digna, quer com o seu património, quer com a sua força de trabalho. Se a necessidade do alimentando for susceptível de cessar com o seu trabalho (de acordo com as suas possibilidades físicas e intelectuais, o seu estado de saúde, etc.), com a abstenção da prática do jogo, da prodigalidade ou de outros vícios e condutas impeditivas do desenvolvimento de uma actividade profissional, não deve então ter direito a alimentos, pois que inexiste uma verdadeira e própria necessidade”[36]. (...)

Acrescenta a mesma Autora que, na apreciação da capacidade de trabalho do ex-cônjuge carente de alimentos, “relevam a sua formação, as suas aptidões, a sua idade, o seu estado de saúde, assim como o tempo requerido pelo cuidado dos filhos após o divórcio. Não basta a mera aptidão do alimentando para o trabalho, sendo necessária a possibilidade real de efectivo desempenho do mesmo, dada a dificuldade com que pode deparar em encontrar um posto de trabalho em virtude de crise económica e desemprego. Na verdade, no caso de o alimentando dispor de qualificações profissionais, mas sendo as suas possibilidades de aplicação, deverá esta circunstância ser apreciada globalmente enquanto impossibilidade real e actual de satisfazer as suas próprias necessidades. O que não significa, todavia, que ao alimentando seja consentido abdicar do exercício de outra actividade remunerada em virtude de esta ser alheia às suas qualificações académicas ou profissionais”[37].

Nestas circunstâncias, como se assinala no Acórdão da Relação de Guimarães de 12/09/2013[38], não basta que o alimentando alegue que não dispõe de rendimentos para assegurar “a sua subsistência, e que precisa de prover ao seu sustento, pois isso é apanágio de qualquer cidadão, devendo a Autora provar que está impossibilitada de angariar trabalho para garantir a sua subsistência”.

 

Este é pois o ponto decisivo para a análise desta matéria: saber como comprovar que o ex-cônjuge está impossibilitado de angariar a sua subsistência. E, nas palavras de Jorge Pais do Amaral, ele “só não tem possibilidades de angariar, pelo seu próprio esforço, os meios de que necessita para viver, nos casos em que, por exemplo, sofre de alguma limitação que o impede de trabalhar ou já revela incapacidade para o trabalho devido à avançada idade ou à falta de habilitações. Estes e outros casos semelhantes fazem surgir o direito a receber alimentos”[39].

 

Em face destas considerações, há que começar por verificar se dos factos dados como provados é possível ultrapassar o primeiro momento de apreciação acabado de referir e concluir que a Reconvinte-Recorrida provou estar capaz de prover à sua subsistência.

Assim, para o que nos interessa, temos provado que:

- o casamento de Autor e Ré data de 2007 (1);

- Autor tem actualmente 44 anos (2);

- Ré-Reconvinte tem actualmente 42 anos /2);

- a Reconvenção foi apresentada em 04/12/2019 (3);

- Ré Reconvinte e Autor Reconvindo residem em casas separadas desde Março de 2020 (4);

- Ré Reconvinte tem formação em acupuntura (6);

- Ré-Reconvinte efectuou os seus estudos em acupuntura em período em que vivia com o Autor Reconvindo (6);

- em Fevereiro de 2020, a Ré Reconvinte, por motivos alheios à sua vontade, deixou o espaço físico onde exercia a sua profissão (7);

- Ré Reconvinte beneficiou até Maio de 2021 de um apoio atribuído pelo ISS, no âmbito da Pandemia por Covid 19, no valor de €219 (8);

- Ré Reconvinte confeciona bolos e salgados, para venda a particulares, estimando auferir cerca de €80 mensais com esta actividade (9);

- em maio de 2021 a Ré Reconvinte auferiu cerca de €160 em trabalhos de acupuntura, executados em regime de domicilio (10);

- Ré Reconvinte encontra-se a desenvolver diligências para exercer a sua atividade profissional de terapeuta de medicina chinesa / acupuncturista por conta própria (11);

- Ré Reconvinte apresenta as seguintes despesas mensais fixas: €300 de renda de casa; €119 de condomínio, €83,33 de água / eletricidade / gás; €170 de crédito pessoal (12);

- Ré Reconvinte apresenta 6 mensalidades de renda de casa e 2 mensalidades de condomínio em atraso (13).

 

Perante estes factos o Tribunal a quo concluiu que a Ré Reconvinte estava impossibilitada de prover ao seu sustento.

Compreendendo embora o raciocínio realizado (ausência de rendimentos fixos provenientes do trabalho, fracos proventos decorrentes da confecção caseira de bolos; despesas mensais fixas de cerca de €672), cremos não lhe assistir razão, por perder a visão de conjunto da matéria.

De facto, não pode esquecer-se que falamos de uma mulher saudável, jovem (com 42 anos) e com formação como acupunctora.

Nada nos parece justificar que findo o casamento entre Autor e Ré, aquele tenha de continuar a assegurar a subsistência desta, dado que a solidariedade (pós) familiar que aí estaria em causa, teria de assentar em razões factuais claras que demostrassem a sua excepcionalidade.

A regra, como se disse, é a de que cada ex-cônjuge deve assegurar a sua subsistência, sendo a fixação de alimentos uma medida excepcional, subsidiária e tendencialmente temporária[40].

E a situação dos autos nada tem de excepcional: a Reconvinte, pela idade, pelas condições de saúde, pela formação, não tem qualquer handicap que lhe impeça desenvolver qualquer actividade que lhe permita prover à sua subsistência com mínimos de dignidade.

A Reconvinte tem plena capacidade para exercer uma actividade profissional que a sustente.

Certo que tem gastos superiores aos seus proventos, mas disso não pode o Autor ser vítima: é também à Reconvinte que cabe adequar as suas despesas aos seus proventos.

A atribuição de alimentos a ex-cônjuges, como se refere no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2012, está limitada “pela obrigação de socorro numa situação de grande exigência resultante de manifesta carência de meios de subsistência num quadro de impossibilidade ou séria dificuldade de obtenção de rendimento suficiente à realização de uma vida minimamente condigna”, que não conseguimos vislumbrar: a Ré Reconvinte pode – querendo – ter um empenho diligente e adequado, colocando a sua força de trabalho, capacidades, inteligência e motivação ao serviço de actividades que lhe proporcionem rendimentos de subsistência.

 

E não vale a pena usar a “argumentação COVID 19”, uma vez que o pedido de alimentos até foi feito antes de decretada a pandemia e, mesmo em contexto de crise, nada impederia a Reconvinte de prosseguir a sua actividade de acupunctora como tem feito (ao domicílio, nomeadamente), ou outra (fazer bolos, como também tem feito).

 

Não é uma questão de ter aptidões e não ter emprego por causa da crise. De querer e não poder. É uma questão de fazer mais, de se esforçar mais.

Consideramos, assim, que a Ré-Reconvinte não provou a excepcionalidade da sua situação de impossibilidade de prover à sua subsistência, o que não permite sequer passar ao segundo momento (de aferição das necessidades da Reconvinte e das possibilidades do Reconvindo).

A apelação tem de proceder e a sentença tem de ser revogada, julgando-se o pedido de fixação de alimentos formulado, improcedente.

 

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e absolvendo o Autor-Reconvindo do pedido de alimentos formulado.

Custas a cargo da Ré-Reconvinte.

 

Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).

 

Lisboa, 07 de Dezembro de 2021

 

 

Edgar Taborda Lopes

 

 

 

Luís Filipe Sousa

 

 

 

José Capacete



[1] Na parte decisória da Sentença escreve-se “€175.00 (cento e cinquenta euros)”, num manifesto lapso de escrita.

[2] “Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”.

[3] “1. Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.

       2. Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”.

[4] “1. Estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:

              a) O cônjuge ou o ex-cônjuge;

              b) Os descendentes;

              c) Os ascendentes;

              d) Os irmãos;

              e) Os tios, durante a menoridade do alimentando;

              f) O padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste”.

[5] “1. Cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio”.

[6] “2. Qualquer dos cônjuges tem direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio”.

[7] “3. Por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser negado”.

[8] “4. O disposto nos números anteriores é aplicável ao caso de ter sido decretada a separação judicial de pessoas e bens”.

[9]1. Na fixação do montante dos alimentos deve o tribunal tomar em conta a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade e estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, um novo casamento ou união de facto e, de modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e as possibilidades do que os presta.

[10]2. O tribunal deve dar prevalência a qualquer obrigação de alimentos relativamente a um filho do cônjuge devedor sobre a obrigação emergente do divórcio em favor do ex-cônjuge”.

[11] “3. O cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio”.

[12] “4. O disposto nos números anteriores é aplicável ao caso de ter sido decretada a separação judicial de pessoas e bens”.

[13] Na redacção que foi introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro e que vigora desde 30 de Novembro de 2008.

[14] Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Moura Ramos), Manual de Direito da Família, 2.ª edição, Almedina, 2021, página 329.

[15] Vd., com interesse, RP 15/9/2011 (Processo n.º 11425/08.3TBVNG.P1-Filipe Caroço), disponível em www.dgsi.pt.

[16] Expressão usada em 2000, in Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores) «Versus» O Dever de Assistência dos Pais para Com os Filhos (Em Especial Filhos Menores), Coimbra Editora, 2000, páginas 12 (nota 11) e 162 (nota 214);

A expressão é também assumida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/04/2017 (Processo n.º 1412/14.8T8VNG.P1.S1-Graça Trigo), disponível em www.dgsi.pt (“Como vem sendo afirmado por este Supremo Tribunal de Justiça, a obrigação de prestar alimentos entre ex-cônjuges após o divórcio constitui um efeito jurídico novo, que radica na dissolução do casamento, mas cujo fundamento deriva da recíproca solidariedade pós-conjugal”).

[17] RL 15-09-2015 (Processo n.º 2836/13.3TBCSC.L1-1-Rijo Ferreira), disponível em www.dgsi.pt.

[18] Guilherme de Oliveira, ob. loc. cit..

[19] Guilherme de Oliveira, ob. cit., página 333.

[20] Ana Resende, Alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, in II Jornadas de Direito da Família e das Crianças – direito e prática forense, em linha, e-book CEJ-CRLOA, 2018, página 175 [consultado a 25/11/2021], disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_JornadasFamiliaC2018.pdf.

No mesmo sentido, ainda, Maria João Vaz Tomé, Reflexões sobre a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, Textos de Direito de Família, para Francisco Pereira Coelho, Coordenação de Guilherme de Oliveira, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, página 588.

[21] “Na verdade, o cônjuge divorciado não tem o direito adquirido de exigir a manutenção do nível de vida existente ao tempo em que a comunidade do casal se mantinha, o que significa que o dever de assistência, enquanto existir a comunhão duradoura de vida, tem uma extensão muito maior do que o cumprimento do mero dever de alimentos, quando essa comunhão tiver cessado” - STJ 23/10/2012 (Processo n.º 320/10.6TBTMR.C1.S1-Helder Roque), disponível em www.dgsi.pt.

[22] Guilherme de Oliveira, ob. loc. cit..

[23] Os alimentos pós-divórcio – entre a solidariedade e a responsabilidade, Julgar, n.º 40, Janeiro/Abril 2020, ASJP, página 190.

Cfr., também, assinalando a sua natureza reabilitadora, RL 12/07/2017 (Processo n.º 3070/12.5TBBRR-2-Pedro Martins), disponível em www.dgsi.pt.

[24] Se for “chocante onerar o outro com a obrigação correspondente”, referia-se na exposição de motivos do Projecto de Lei nº 509/X.

Expressivamente, o já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 15-09-2015 (Processo n.º 2836/13.3TBCSC.L1-1-Rijo Ferreira), sobre esta matéria explica o contexto que leva a que nesses casos, não pode haver lugar a alimentos: “Na enorme diversidade que a realidade nos oferece podem ocorrer, porém, situações em que esse dever de solidariedade/dever assistencial se encontra inibido, esvaziado de conteúdo ou completamente diluído em face das concretas circunstâncias do caso; situações em que a obrigação de prestação de alimentos surgiria aos olhos do sentir social, do bom pai de família, como algo irrazoável, injusto, iníquo”.

“A expressão ‘razões manifestas de equidade’ significa, em nosso entender, mais do que a mera culpa no divórcio, situação que na anterior redacção do artº 2016º excluía o direito a alimentos.

 O legislador ao abolir a necessidade de averiguar e imputar a culpa no divórcio com as alterações da Lei 61/2008 não quis obviamente ‘restaurar’ essa ideia redenominando a culpa em equidade (presumindo-se que o legislador é conhecedor da diversidade de tais conceitos).

As razões manifestas de equidade têm, pois, de consistir em circunstâncias de acentuada relevância que tornem imperioso, segundo o sentir social, o afastamento daquele dever de solidariedade/dever assistencial.

Como situações em que tal deva ocorrer vislumbramos:

                   a) os comportamentos do requerente de alimentos que atentem gravemente contra a vida ou integridade física, psíquica ou sexual (v.g. homicídio tentado, maus tratos, coacção, violação) daquele a quem são pedidos alimentos;

                   b) os comportamentos, intencionais ou de grosseira negligência, do requerente de alimentos tendentes a criar a necessidade de alimentos (v.g. dissipação do património, insolvência devido a negócios ruinosos ou actividades criminosas);

                   c) o comprometimento do requerente noutro projecto de vida em comum (novo casamento, união de facto ou estabelecimento de parceria);

                   d) mas também outros padrões comportamentais ligados a circunstâncias marcadamente aptas a produzir efeitos jurídicos, como seja o tempo (que determina importantes figuras jurídicas quanto à aquisição e extinção de direitos, como seja a prescrição, a caducidade, o não uso, a usucapião)”.

Em sentido concordante, Ana Resende, Alimentos…, cit., páginas 176-177.

[25] RP 15/09/2011 (Processo n.º 11425/08.3TBVNG.P1-Filipe Caroço), disponível em www.dgsi.pt.

[26] STJ 19/06/2019 (Processo n.º 3589/15.6T8CSC-A.L1.S1-Tomé Gomes), disponível em www.dgsi.pt.

[27] STJ 23/10/2012 (Processo n.º 320/10.6TBTMR.C1.S1-Helder Roque), disponível em www.dgsi.pt.

[28] Guilherme de Oliveira, ob. cit., página 333.

[29] O “legislador visou explicitar, de uma forma clara, que o direito a alimentos na sequência do divórcio só se constitui se o ex-cônjuge não tiver possibilidades de prover à sua subsistência» - RC 17/04/2012 (Processo n.º 320/10.6TBTMR.C1-Sílvia Pires), disponível em www.dgsi.pt.

[30] RL 19/12/2013 (Processo n.º 27156/10.1T2SNT.L1-1-Rui Torres Vouga), disponível em www.dgsi.pt.

[31] RC 17/04/2012 (Processo n.º 320/10.6TBTMR.C1-Sílvia Pires), cit..

[32] Onde se acrescenta ainda que “a necessidade do alimentando consiste na impossibilidade de prover total ou parcialmente à sua subsistência, seja com os seus bens pessoais seja com o seu trabalho, sendo, pois, a impossibilidade de prover ao seu sustento aferida pelo seu património e pela sua capacidade de trabalho. No caso de poder prover às suas necessidades através do seu trabalho ou de outros meios que lhe proporcionem um rendimento suficiente, o direito a alimentos pelo ex-cônjuge não lhe deve ser reconhecido, dado ser um meio subsidiário, só justificável na ausência de outros meios de subsistência”.

[33] Com uma perspectiva ligeiramente distinta, mas que chega às mesmas conclusões, no Acórdão da Relação de Coimbra de 14/12/2020 (Processo n.º 487/18.5T8CLD.C1-Carlos Moreira), defende-se a realização de duas ponderações:

“a) Ponderação primária tripartida das necessidades do alimentando/possibilidades do obrigado/possibilidades do alimentando em prover à sua subsistência;

b) Ponderação subsequente (de afinação) tendo em conta, entre outras, a duração do casamento, colaboração prestada à economia do casal, idade e estado de saúde, qualificações profissionais e possibilidades de emprego, tempo para a criação de filhos comuns, um novo casamento ou união de facto por parte de cada um dos cônjuges”.

[34] O chamado binómio necessidade do alimentando-possibilidade do alimentante (Pedro Dias Ferreira, A pensão alimentar na sequência de divórcio, separação e dissolução da união de facto; sua alteração e cessação, in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças – diálogo teórico-prático, em linha, e-book CEJ-CRLOA, 2019, página 28 [consultado a 25/11/2021], disponível em https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/ebook.pdf.

[35]Está fora de qualquer dúvida que a prova da incapacidade de prover à subsistência, que está na génese do direito a alimentos entre divorciados, impende, como facto constitutivo desse direito, àquele que deles pretende beneficiar, sendo assim a Autora que terá que ter demonstrado os factos donde resulte essa incapacidade, seja com os seus bens pessoais, rendimentos do trabalho ou de capital” - RC 17/04/2012 (Processo n.º 320/10.6TBTMR.C1-Sílvia Pires), cit.; RL 19/12/2013 (Processo n.º 27156/10.1T2SNT.L1-1-Rui Torres Vouga), cit..

[36] Maria João Vaz Tomé, Reflexões…, cit., páginas 596-597.

No mesmo sentido, STJ 14/01/2021 (Processo n.º 5279/17.6T8LSB.L1.S1-Maria da Graça Trigo), disponível em www.dgsi.pt.

[37] Ob. loc. cit..

[38] Processo n.º 228/11.8TMBRG.G1-Estelita de Mendonça, disponível em www.dgsi.pt.

[39] Jorge Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, 4.ª edição, Almedina, 2017, páginas 201-202.

[40] Assim, também, RL 12/07/2017 (Processo n.º 3070/12.5TBBRR-2-Pedro Martins), RL 19/12/2013 (Processo n.º 27156/10.1T2SNT.L1-1-Rui Torres Vouga), RL 17/09/2013 (Processo n.º 13588/13.7T28NT-1-Afonso Henrique), disponíveis em www.dgsi.pt.

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