Processo n.º ---/.
Sumário:
I – O
contrato de prestação de serviços médicos é um contrato bilateral, sem
regulamentação legal típica, que se inclui na categoria genérica dos contratos
de prestação de serviços, subordinado às regras supletivas do contrato de
mandato e enquadrado pelo que consta dos regulamentos deontológicos
próprios.
II – A
clássica distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultados para
qualificar a prestação do médico deve ser ultrapassada, considerando que o
devedor (médico) se obriga a uma prestação e o credor (paciente/doente) visa um
resultado, sendo que ao devedor cabe a prova de que a realizou ou de que a
falta de cumprimento lhe não é imputável.
III – Em
especial quanto às prestações com conteúdo mais indefinido, a prova do devedor
passa sempre pela comprovação de ter usado todo o cuidado e diligência no seu
cumprimento.
IV – Existe
uma violação das leges artis quando há
uma desconformidade objectiva entre os actos realizados e os que seriam devidos
de acordo com os conhecimentos técnicos da ciência médica à data.
VI – O
ponto de partida para qualquer acção de responsabilidade médica é o da
desconformidade entre a concreta actuação do agente, no confronto com aquele
padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente
e informado, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em
circunstâncias semelhantes, na mesma data.
VII - O
profissionalismo ou o padrão de diligência exigível ao médico corresponde ao do
bom profissional da sua categoria e
especialidade (competente, prudente, razoável e informado) perante as mesmas
circunstâncias factuais e no mesmo tempo histórico.
VIII – Há
uma distinção conceptual entre acontecimento
adverso e erro, sendo o primeiro
“algo que sucede na sequência de uma intervenção médica e que causa dano temporário
ou permanente, ou prolonga o internamento hospitalar” e o segundo “o
acontecimento adverso prevenível, que ocorre por falta de planeamento ou
execução”.
IX – A
violação das leges artis por parte de
um médico neste tipo de contrato faz preencher a ilicitude, como pressuposto de
responsabilidade civil.
X - Os processos de
tratamento médico (como ocorre de forma paradigmática com os odontológicos),
são processos partilhados com o
paciente, correspondendo a este um determinado tipo de condutas (umas prescritas
pelo médico – cumprir o tratamento sem interrupções injustificadas; outras de
bom senso), as quais, se não ocorrerem, terão de ser
consideradas no âmbito do juízo de valoração da sua contribuição para os danos
sofridos e cujo ressarcimento reclame.
Relatório
L………..
intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra os réus
- A………… e
- C…………, Lda.,
em que peticiona a condenação solidária destes a pagarem-lhe, a titulo de indemnização, a quantia de €49.900, acrescidos de €20 de juros moratórios à taxa legal.
Foi
admitida a intervenção principal provocada, ao lado dos Réus, da G……, SA., por
para ela ter sido transferida a responsabilidade civil pela sua actividade
profissional, através de contrato de seguro.
A
Autora alega, em síntese, que após consultas e exames de estomatologia com o
1.º Réu, na sede da 2.ª Ré, o primeiro procedeu à
colocação de implantes dentários, quer na arcada superior quer na arcada
inferior da boca da Autora (sendo que, no que respeita ao
trabalho realizado na inferior, um dos implantes se começou a soltar, com risco de vir a ser engolido;
e, na superior, o 1.º Réu agiu em desconformidade
com as legis artis, por ter colocado quatro dentes quando a ponte
metálico-acrílica tinha 12 dentes, e o protocolo
médico-odontológico exigir que tivessem sido colocados mais implantes).
Toda
esta situação deu origem à recolocação de novas próteses, ao padecimento de
dores e sangramento de gengivas, impossibilidade de comer sólidos e depressão.
Houve Contestação, por parte dos Réus
e da Interveniente.
Foi
realizada perícia médica por Perita
do INML.
Os autos prosseguiram para julgamento tendo sido proferida
Sentença que decretou
os factos provados
e não provados e, a final, julgou
a ação improcedente.
A Autora
recorreu da Sentença lavrando as seguintes conclusões:
1
- A sentença recorrida fundamentou a inexistência de nexo de causalidade entre as
lesões sofridas pela Recorrente, dadas como provadas
nos números 19 a 22, 25,
27, 29, 30, 31, 38, 53, da matéria
assente, os quais deram origem a que, entre 23/09/2015 e 11/07/2017, a Recorrente se tenha deslocado à clínica dentária, por 44 vezes, e à remoção
e execução, por três
vezes, da ponte dentária
superior (conforme também
consta dos factos
provados), e o tratamento odontológico prestado pelos Recorridos, apenas
com base no relatório
pericial e numa análise acrítica do mesmo.
2
– O Tribunal a
quo deveria ter tido em conta a matéria de facto que deu como provada,
relativamente às lesões provocadas na recorrente pelo tratamento odontológico,
e suas consequências dolorosas, de ânimo e incómodos, para as conexionar com a
regra do ónus da prova do incumprimento contratual presumido.
3
– Pelo que os danos, pelo menos morais,
decorrentes das dores, mal-estar e incómodos decorrentes do tratamento (que
devem ser dados como assentes por presunção natural, e segundo as regras de
experiência comum), no domínio do prejuízo correspectivo que causaram à
recorrente, deveriam e devem ser indemnizados.
4
– Na verdade, durante os períodos em que a
recorrente permaneceu sem dentes no maxilar superior, é do conhecimento comum
que sofreu dificuldades de mastigação e sentimento de vergonha (53), bem como o
stress e incómodos de 44 consultas, é relevante como dano susceptível de
reparação, sendo certo que o stress e as dores decorrentes de intervenções
ontológicas são do conhecimento geral.
5
– E deveriam ter sido objecto de indemnização.
6
– Nomeadamente, porque como o tribunal a quo bem
refere, tratando-se de responsabilidade contratual, a responsabilidade dos
Réus, ora recorridos, presume-se.
7
– Os ora recorridos não ilidiram essa presunção,
porquanto não se pode considerar como tal o relatório pericial, prova de
terceiros e não deles.
8
– Violou aqui a sentença recorrida o preceituado
nos artigos 799.º e 800.º do CC.
9
– Os factos dados como provados na sentença são
suficientes para dar provimento ao pedido indemnizatório da recorrente, pelo
menos no montante de €25.000, com vista a ressarci-la dos prejuízos que sofreu,
pelos danos não patrimoniais comprovados.
A
interveniente G………, SA contra-alegou, defendendo que o argumentário da
recorrente é vago e se limita a repetir o apreciado pelo Tribunal, não
apreciando com clareza a globalidade dos factos, apenas conseguindo protelar o
desfecho da acção.
A
Autora beneficia de apoio judiciário, nas modalidades de apoio judiciário, dispensa de taxa de justiça e demais encargos
com o processo e nomeação e
pagamento de compensação de patrono.
Questões
a Decidir
São as Conclusões
do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º
1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do
tribunal ad quem (exercendo uma
função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina,
2018, pág. 115), sendo certo que tal limitação já não
abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código
de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação
de questões de conhecimento oficioso.
Assim,
em causa nestes autos estará a decisão quanto às seguintes questões:
-
má apreciação dos factos dados como provados;
- verificação
dos pressupostos da responsabilidade civil por acto médico.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
de Facto
A
sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1
- O 1.º Réu é o único sócio e gerente da 2.ª Ré.
2
- O 1.º Réu trabalha para a 2.ª Ré enquanto médico dentista.
3
- O 1.º Réu é o único médico dentista da 2.ª Ré.
4
- Por contrato de seguro, os Réus transferiram para a Interveniente na
qualidade de ré a sua responsabilidade civil profissional.
5
- No dia 23/09/2015, a Autora dirigiu-se à sede da 2.ª Ré, com vista a ter uma
consulta de estomatologia com o 1.º Réu e com o objectivo de pedir um orçamento
para a colocação de implantes dentários.
6
- A Autora tinha próteses dentárias removíveis.
7
- A Autora estava descontente com as próteses dentárias removíveis que possuía.
8
- O 1.º Réu atendeu a Autora, observou-a, tirou-lhe radiografias à boca e
concluiu, depois, que tinha massa óssea bastante para proceder aos referidos
implantes.
9
- O 1.º Réu apresentou à Autora um orçamento de €6.000.00 para os seguintes
tratamentos:
Arcada dentária superior
-
Implante dos dentes 11, 14, 21 e 24 – (€ 500,00 x 4 = € 2.000.00).
- Ponte
metálica-acrílica aparafusada com 12 dentes - 11, 15, 26, 12, 13, 14, 15, 16,
21, 22, 23 e 24 – (€1.300,00).
- Arcada
dentária inferior
-
Implante dos dentes 32, 36, 42 e 46 – (€ 500,00 x 4 = € 2.000.00).
- Ponte
metálica-acrílica aparafusada com 4 dentes, 31, 32, 41 e 42 – (€500,00).
-
Dentes metálicos acrílicos aparafusados 36 e 46 – (€ 150,00 x 2 = €300,00).
-
Extracção dos dentes 31, 32, 41 e 42 – (oferta).
11
- O 1.º Réu apresentou à Autora outros orçamentos, de valor mais elevado, para
colocação de pontes metalocerâmicas.
12
- O 1.º Réu informou a Autora que o orçamento de €6.000,00 dizia respeito à
colocação de uma ponte metaloacrílica e dentes de pior qualidade.
13 - A Autora
escolheu o orçamento de €6.000,00.
14
– Antes da colocação dos implantes, por indicação do 1.º Réu, a Autora foi medicada
com antibióticos e anti-inflamatórios.
15
- No dia 02/10/2015, o 1.º Réu procedeu à colocação de oito implantes, sendo
quatro na arcada dentária superior.
16 - No dia
24/12/2015, o 1.º Réu procedeu à colocação das pontes metálicas.
17 - A ponte metáloacrílica
aparafusada na arcada superior tinha doze dentes.
18
- O 1.º Réu informou a Autora que o protésico se tinha enganado e tinha feito
um trabalho de qualidade superior à do orçamento feito e entregue à Autora:
ponte para a arcada maxiliar inferior em metalocerâmica em vez de
metaloacrílica.
19 - A Autora aceitou
a colocação da ponte metalocerâmica no maxilar inferior.
20 - Em 01/02/2016, o
1.º Réu retirou a ponte metáloacrílica superior.
21 - Em 03/02/2016, o
1.º Réu recolocou a ponte metáloacrílica superior.
22
- Em 30/08/2016, a Autora apresentava pequena hipertrofia gengival, que
contribuía para que os alimentos ficassem debaixo da ponte, inflamação e
sangramento.
23
- O 1.º Réu fez gengivectomia, seguida de aplicação de compósito gengival, para
dar contorno à estrutura na região.
24
- O 1.º Réu advertiu a Autora que deveria utilizar um aparelho Waterpic para a
higienização da boca.
25 - A Autora recusou
a aquisição e utilização do aparelho Waterpic.
26 - Em 26/09/2016, a
Autora apresentava gengivite no mesmo local que em 30/08/2016.
28
- O 1.º Réu, em conjunto com o técnico do laboratório responsável, decidiu
refazer a ponte metálica superior.
29 - Em 04/10/2016, o 1.º Réu
retirou a ponte metálica superior.
30 - Em 11/10/2016, o 1.º Réu
colocou a nova ponte metálica superior.
31 - Em 14/11/2016, a Autora
apresentava hipertrofia gengival no 2.º quadrante com sangramento.
32 - Em 16/11/2016, o 1.º Réu
retirou a ponte metálica superior e fez exérese de tecido hiperplasiado no 2.º
quadrante com electrobisturi, aplicação de lite na ponte, colocação de
cacratizadores e recolocação da ponte com utilização de parafusos novos, ajuste
oclusal e reconstruções.
33 - Em 05/01/2017, a Autora
padecia de uma inflamação na região dos dentes 1.4. e 2.4..
34 - Em 05/01/2017, o 1.º Réu
advertiu a Autora para ter cuidado com a higienização e, caso a lesão não
desaparecesse, para voltar à clínica para cauterizar a lesão.
35 - Em 25/01/2017, o 1.º Réu
retirou a ponte metáloacrílica superior.
36 - Em 10/02/2017, o 1.º Réu fez
novos moldes e encomendou o fabrico de uma nova ponte metáloacrílica a outro
laboratório.
37 - A Autora combinou com amigas
ir passar o período de Carnaval de 2017 a Tomar.
38 - Por não ter dentes na arcada superior
a Autora não passou o período de Carnaval em Tomar.
39 - Em 03/03/2017, o 1.º Réu
colocou a nova ponte metáloacrílica superior.
40 - Nos dias 21/03/2017, o 1.º
Réu diminuiu a altura das cúspides vestibulares dos premolares e molares do 2.º
quadrante.
41 - Em 31/05/2017, o 1.º Réu fez
polimento.
42 - Em 11/07/2017, a Autora
apresentou queixas de halitose.
43 - Em 11/07/2017, o 1.º Réu
submeteu a Autora a uma radiografia, após o que lhe receitou Elupério puro para
bochechar pela manhã e ao deitar.
44 - Entre 23/09/2015 e
11/07/2017, a Autora deslocou-se à clínica dentária da 2.ª Ré 44 vezes.
45 - No dia 02/10/2015, a Autora
entregou à 2.ª Ré a quantia de €4.000,00 para pagamento do preço.
46 - No dia 16/12/2015, a Autora
entregou à 2.ª Ré a quantia de €1.000,00 para pagamento do preço.
47 - No dia 24/12/2015, a Autora
entregou à 2.ª Ré a quantia de €1.000,00 para pagamento do preço.
48 - As referidas quantias eram do
filho da Autora, que pretendeu oferecer o trabalho odontológico à sua mãe.
49 - Os recibos das quantias pagas
foram emitidos, a pedido da Autora, em nome da sua filha S…..
50 - A Autora adquiriu os elixires
e medicamentos recomendados e receitados pelo 1.º Réu.
51 - Durante o período de tempo
que mediou entre a primeira remoção da ponte metálica e a colocação da segunda,
a Autora permaneceu sem dentes no maxilar superior.
52 - Durante o período de tempo
que mediou entre a remoção da segunda ponte metálica e a colocação da terceira
ponte metálica, a Autora permaneceu sem dentes no maxilar superior.
53 - O Réu recomendou à Autora a
utilização da prótese amovível que a mesma possuía, durante o tempo em que não
tinha a ponte metálica superior.
54 - A Autora recusou a utilização
da prótese amovível que possuía, durante o tempo em que não tinha a ponte
metálica superior.
55 - Durante os períodos em que a
Autora permaneceu sem dentes no maxilar superior, a mesma sofreu dificuldades
de mastigação e sentimento de vergonha.
56 - A Autora deu o seu
consentimento às intervenções efectuadas pelo 1.º Réu.
O
Tribunal recorrido considerou como não provados os seguintes factos:
A - Após a colocação
dos implantes, um dos implantes da arcada dentária inferior da Autora começou a
soltar-se.
B
- A situação referida causou risco de poder vir a ser engolido o implante.
C - No dia 24/12/ 2015, depois de
passar o efeito da anestesia, a Autora não conseguiu dormir com dores e não
conseguiu comer nada.
D - A Autora passou o período do
Natal de 2015 com dores e sangramento das gengivas.
E - No dia 28/12/2015, o 1.º Réu
retirou a ponte metálica superior à Autora, fez alguns ajustes e recolocou-a.
F - Entre 24/12/2015 e 05/01/2017,
a Autora contraiu abcessos.
G - Entre 24/12/2015 e 05/01/2017,
a Autora contraiu infecções.
H - As infecções foram causadas
pela acumulação de restos de comida entre as gengivas e a ponte metálica.
I - Em 05/01/2017, a Autora
padecia de uma infecção aguda.
J - Em 05/01/2017, o 1.º Réu
assumiu perante a Autora defeito na execução odontológica realizada no maxilar
superior.
K - Em 05/01/2017, o 1.º Réu
retirou à Autora a ponte metálica superior e realizou novo molde.
L - O 1.º Réu comprometeu-se a
colocar à Autora uma nova ponte metálica, antes do Carnaval de 2017
(28/02/2017).
M - A Autora realizou duas
cirurgias de urgência, que consistiram na raspagem das gengivas infectadas com
abcessos, com retirada de pedaços de mucosa para ajustar os dentes ao maxilar.
N - A Autora foi sujeita a
tratamentos com pontas de fogo.
O - Os referidos tratamentos
(raspagem das gengivas e pontas de fogo) foram, depois de passar o efeito da
anestesia, dolorosos e renitentes a analgésicos.
P - A Autora gastou €100,00 na
aquisição de elixires e medicamentos recomendados e receitados pelo 1.º Réu.
Q - A Autora queria uma ponte
metalocerâmica na arcada superior.
R - A Autora ficou descontente por
considerar que os dentes sobre os implantes cresceriam naturalmente.
S - Antes da intervenção do 1.º
Réu, a Autora, diariamente, saía de casa, relacionava-se e convivia com
conhecidos e amigos.
T - Durante os períodos em que a
Autora permaneceu sem dentes no maxilar superior, a mesma refugiou-se em casa e
evitou receber visitas.
U - Após 03/03/2017, a Autora
ingeriu apenas sopas e alimentos passados.
V - As dores e sangramento
sofridas pela Autora foram consequência da colocação da ponte metálica na
arcada superior.
Fundamentação
de Direito
A acção intentada pela Autora visava o
exercício do direito a uma indemnização por factos ilícitos respeitantes a
actos médicos.
Limitados como estamos pelas Conclusões
da recorrente resulta que são os factos apurados e (adequadamente) motivados
pelo Tribunal que proferiu a Sentença sob recurso, que esta Instância
considerará.
É, pois, necessário verificar se a
aplicação do Direito aos factos foi bem feita considerando inexistirem os que
permitiriam considerar verificados os pressupostos da responsabilidade civil
quanto aos Réus (com a sua consequente absolvição), ou, pelo contrário – como
entende a Autora/recorrente – se os factos permitem vislumbrar a sua presença
(com a consequente procedência do pedido de indemnização).
Efectivamente, a sentença apelada absolveu
do pedido os Réus e Interveniente, seguindo o raciocínio que ora se explana:
- está em causa uma situação de responsabilidade
contratual (aplicável em primeira linha, sem prejuízo de poder ser aplicável o
regime da responsabilidade civil extracontratual, como regime supletivo, por
também existir uma violação de um direito à integridade física do paciente),
face à existência de um contrato de prestação de serviços médicos com a 2.ª Ré
(tendo esta última utilizado o 1.º Réu para efectivar a prestação concreta dos
actos contratados), regido pelas cláusulas contratuais acordadas e pelas normas
reguladoras do exercício da actividade médica, em particular as constantes dos
respectivos regulamentos deontológicos: o artigo 5.º do Regulamento de
Deontologia Médica da Ordem dos Médicos; o Código Deontológico da Ordem dos
Médicos Dentistas, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 143, de
22/06/1999, alterado pelo regulamento interno n.º 4/2006, publicado no Diário
da República, 2.ª série, n.º 103, de 29/05/2006 e, actualmente, o Código
Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, publicado no Diário da República,
2.ª série, n.º 115, de 18/06/2019 [publicado
em data posterior à dos factos];
-
em face do artigo 800.º do Código Civil não é necessária a verificação da
relação de dependência prevista no artigo 500.º do Código Civil, bastando a
verificação de um vínculo contratual quer entre a clínica/hospital privado e o
médico e/ou entre o médico e os seus auxiliares para que os primeiros respondam
apenas com culpa dos últimos, assente que estejam reunidos os pressupostos da
responsabilidade civil;
-
num contrato com escolha de médico, há uma responsabilidade solidária entre a
clínica/hospital privado e o médico que executa o acto, pois ao lado da relação
contratual entre a clínica/hospital privado e o paciente, existe também uma
relação entre o médico e o paciente (pautada pela elevada autonomia do médico e
pelos deveres deontológicos a que este está adstrito);
-
sendo responsáveis os Réus sê-lo-á também a seguradora interveniente, em face
do contrato de seguro existente;
-
defendendo a Autora ter existido uma prestação defeituosa por parte do primeiro
Réu, haveria de ter provado que este poderia e deveria ter actuado de modo diferente, não actuando zelosamente, nem
colocando em acção todas as suas capacidades técnicas e científicas na execução
das suas tarefas acordadas, para objectivo pretendido, ou mesmo que tivesse
utilizado na melhor técnica utilizada;
-
estão em causa actos médicos desprovidos de finalidades terapêuticas (colocação
de próteses fixas), fundamentados por razões de ordem pessoal e estética
(descontentamento com a prótese amovível que possuía), sendo que os actos médicos
praticados respeitaram, por um lado, à preparação
da boca da Autora para a colocação das próteses (sempre com um resultado final
incerto, por não estar da disponibilidade do médico o controlo dos mecanismos biológicos da Autora e as suas reacções) e, por outro, à
colocação, em si mesmas, das próteses (aqui já com a exigência de resultado objectivo
e concreto: a colocação de um objecto
fabricado de forma a
adaptar-se correctamente à anatomia das gengivas da Autora, independentemente
que quem as fabrique, atento o disposto no artigo 800.º do CPC);
-
a presunção de culpa por parte do devedor/prestador dos serviços médicos
constante do artigo 799.º, n.º 1, do
Código Civil, não afasta o ónus de alegação e prova por parte do credor/paciente de que existe um
defeito/desconformidade entre o que foi praticado e o que deveria ter sido (só dessa forma se
assegurando o direito de defesa do devedor/prestador dos serviços de alegar e provar que o defeito/desconformidade
não adveio de culpa sua);
-
a violação das leges artis por parte
do primeiro Réu, no sentido da opção incorrecta (uma planificação errada do número de implantes a colocar
face ao tamanho da prótese, que teria causado
uma “desadaptação” da prótese do maxilar
superior à anatomia da boca da Autora),
de colocar apenas quatro implantes para uma ponte aparafusada com doze
dentes, não se comprovou, desde logo por inexistir essa regra/norma
técnica (e, ainda, face à osteointegração dos implantes e à passividade da prótese);
-
esgotando a factualidade alegada para encontrar outras possibilidades de
sustentar a existência de uma prestação defeituosa:
-
um dos implantes ter começado a soltar-se (não se provou); falta de qualidade da prótese
da arcada superior (não se provou); falta de convergência entre a prótese e os moldes
(não se provou);
-
prestação dos serviços médicos desadequados à preparação da boca da Autora e tratamento
dos sintomas/lesões que a mesma ia
apresentando: raspagem das gengivas
infectadas com abcessos (não se provou); tratamentos com “pontas de fogo”
(não se provou), falta de colocação de prótese de substituição (para além de inexistir regra de leges artis que a imponha, foi
recomendada à Autora a utilização da prótese amovível que já possuía e
esta apenas não o fez porque não quis), sendo certo que, dos efectivamente comprovados, nada se
apurou quanto a qualquer incorrecção (caso da utilização de electrobisturi para
tratamento de hipertofia gengival com sangramento);
- incumprimento da prestação no prazo contratualizado:
falta de colocação da prótese antes do Carnaval (não se provou a fixação desse
prazo);
-
de tudo resulta a inexistência de qualquer nexo causal entre quaisquer danos
morais, estéticos, decorrentes da ausência de dentes e qualquer facto praticado pelo 1.º Réu.
-
a Autora não logrou provar qualquer defeito/desconformidade do serviço médico prestado (em sede de
responsabilidade extracontratual, equivalente à ilicitude) nem qualquer nexo
causal entre os danos comprovados e a colocação das próteses;
-
tratando-se de um contrato bilateral a Autora não cumpriu a sua parte (cumprir
o tratamento sem interrupções e exactamente da forma como o médico estipulou), ao não efectuar uma higiene
bucodentária adequada a evitar a acumulação de restos de comida junto da prótese e ao recusar-se a adquirir o aparelho (Waterpic) que a poderia auxiliar
a isso (sendo essa uma das causas adequadas para as inflamações, dores e sangramentos ocorridos).
Perante este entendimento e decisão, a
recorrente entende que as lesões descritas nos factos
.
19 a 22 (colocação e recolocação das pontes; pequena hipertrofia gengival a
30/08; realização de gengivectomia e aplicação de compósito gengival para dar
contorno à estrutura),
.
25 (gengivite a 26/09, no mesmo local de 30/08),
.
27 (retirada da ponte metálica superior),
.
29 (hipertrofia gengival no 2.º quadrante, com sangramento, a 14/11),
.
30 (retirada da ponte superior, exegese do tecido hiperplasiado com
electrobisturi, aplicação de lite na ponte, colocação dos cacratizadores,
recolocação da ponte com novos parafusos, ajuste oclusal e reconstruções, a
16/11),
.
31 (inflamação na zona dos dentes 1.4 e 2.4, a 05/01),
.
38 (diminuição, pelo 1.º Réu da altura das cúspides vestibulares dos premolares
e molares do 2.º quadrante, a 21/03);
.
53 (nos períodos em que não teve dentes no maxilar superior, a Autora sofreu
dificuldades de mastigação e sentimento de vergonha),
conjugados com a circunstância de se ter deslocado à clínica 44 vezes (facto
44) e à de ter sido necessário remover e recolocar por três vezes a ponte
superior, permitiriam a atribuição de uma indemnização, desde logo porque a
culpa dos Réus está presumida, bem como o defeituoso cumprimento da prestação
contratada.
Entrando
a decidir.
A
"responsabilidade civil é um instituto jurídico que comunga da tarefa
primordial do Direito que consiste na ordenação
e distribuição dos riscos e contingências que afectam a vida dos sujeitos e a
sua coexistência social"[1].
Qualquer
que seja o ponto vista sobre o qual se encare, para um/a Autor/a ser
ressarcido/a, sempre terão de se mostrar reunidos os pressupostos -
genericamente enunciados pelo artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil - da
responsabilidade civil[2],
consistindo esta "na obrigação de reparar os danos sofridos por alguém.
Trata-se de indemnizar os prejuízos de que esse alguém foi vítima"[3].
Como
refere - com pertinência - José Alberto
González[4],
a “responsabilidade civil cumpre uma função: obrigar terceiro a proceder à reparação de danos provocados na esfera
jurídica do lesado (credor para esse efeito)”.
Adoptando-se
a clássica sistematização avançada por Antunes
Varela[5],
diga-se que, para existir a responsabilidade civil, necessária se torna a
presença de um facto, da ilicitude, da imputação do facto ao lesante, a existência de danos e de um nexo de
causalidade entre o facto e o dano[6].
Assim,
a responsabilidade civil da qual emerge a referida obrigação de indemnização,
tanto pode ser contratual (por resultar de uma relação jurídica de natureza
creditícia, sendo a obrigação de indemnização decorrente da violação de deveres
originados nesse vínculo obrigacional originário), como extra-contratual (por
resultar da violação de direitos absolutos ou da prática de actos lícitos ou
ilícitos) que provoquem danos a outrem[7].
Os
seus pressupostos são muito semelhantes, nada obstando à sua cumulação dos seus
regimes, nos concretos casos que se apreciem[8].
Para o que concerne aos presentes autos partimos do regime da responsabilidade contratual (artigos 798.º e seguintes do Código Civil), por ser o mais favorável à pretensão da Autora (ao ter a culpa do devedor presumida – artigo 799.º do Código Civil).
Assim, a regra base é a de que «o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor» (artigo 798.º do Código Civil), pelo que importa verificar a que é que corresponde o não cumprimento de uma obrigação assumida.
Para a definição do conteúdo da prestação a cargo do médico, na responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato de prestação de serviços médicos[9] (sem regulamentação legal típica, incluído na categoria genérica dos contratos de prestação de serviços - artigo 1154.º do Código Civil - e subordinado às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações – artigo 1156.º do Código Civil[10]), para além do que conste de concretas cláusulas contratuais acordadas, há que recorrer ao que consta dos regulamentos deontológicos próprios, a começar pelo Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (Diário da República, 2.ª série, n.º 139, de 21/07/2016).
O artigo 5.º deste Regulamento assinala, assim, que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”.
Por outro lado, tem ainda de ser considerado o Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas (Diário da República, 2.ª série, n.º 143, de 22/06/1999, alterado pelo Regulamento Interno n.º 4/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 103, de 29/05/2006[11], cujo artigo 8.º (sob a epígrafe “Dever Fundamental”) dispõe:
“1.
Todo o médico dentista tem o dever de assegurar ao seu paciente a prestação dos melhores
cuidados de saúde oral ao seu alcance,
agindo com correcção e delicadeza.
2. O médico dentista
poderá ser responsabilizado pela prestação de actos médico-dentários manifestamente desadequados, bem como pela prestação
manifestamente desadequada de actos médico-dentários, quando, dadas as circunstâncias
concretas do caso, lhe era objectivamente exigível a actuação de forma distinta”.
O “médico moderno tem de lidar quase
sempre com uma dinâmica da doença que quase nunca é puramente biológica, por um
lado, ou puramente sociológica, por outra, nem sequer apenas a «biodinâmica»
(…), porém, quase sempre, uma dinâmica mista, biossocial, impondo-se assim, na
consideração de tal dinâmica, uma perspectiva complexamente biossocial, e o
mais possível, unificada”. E esta dinâmica mista cria, para o médico, problemas
“impossíveis de serem resolvidos, através de uma medicina para o qual o doente
exista apenas ou simplesmente como indivíduo biológico; e a doença,
invariavelmente, como distúrbio apenas ou simplesmente orgânico, físico ou
físico-químico ou bio-químico ou hereditário. E se tal reorientação se impõe no
caso da terapêutica, ainda mais se impõe no caso da medicina que se especialize
em proteger preventiva e profilaticamente a saúde pública, ampliar a acção
protectora da higiene, concorrer para o chamado bem-estar social”[12].
Tudo isto apela para o profissionalismo do médico (dentista ou
não), que, nas palavras de João Lobo
Antunes[13],
assenta em três princípios fundamentais:
“1. Ter um suporte ético específico,
que no caso da medicina implica altruísmo, compaixão, integridade, verdade e
competência técnica, como valores igualmente respeitáveis, e isto não deve
colidir com os interesses da gestão;
2. Afirmar os seus valores,
explicitando claramente as regras que os regem;
3. Participar como parceiro social
independente e reconhecido como tal.
O contrato tácito que fizemos com a
sociedade que nos deu a liberdade de actuar como profissionais é
fundamentalmente moral e supõe, para lá do contínuo aperfeiçoamento científico
e técnico, uma reflexão ética correlativa”.
Nesta
base, a obrigação
médica envolve em primeira linha o dever de prestar os melhores cuidados no
exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde ao/à paciente, suavizar-lhe
o sofrimento e prolongar-lhe a vida.
Tradicionalmente qualifica-se esta obrigação como uma obrigação de meios (no sentido de que o médico estará obrigado a desenvolver a sua actividade, prudentemente e com diligência, visando um determinado objectivo, mas sem que lhe seja exigível a obtenção de um concreto resultado.
Giramos assim à volta do conceito de “diligência exigível” (a que já voltaremos), o qual, segundo Manuel A. Carneiro da Frada, constitui “pedra de toque da responsabilidade por acto médico, que é, essencialmente uma responsabilidade subjectiva, pela violação de deveres de meios. (…) A negligência resulta de uma ofensa ao padrão de conduta profissional de um médico satisfatoriamente competente, prudente, e informado. As rotinas médicas e as leges artis auxiliam à concretização. O juízo correspondente deve ser temporalmente referido: além de não ser uma ciência exacta, a medicina está sujeita a um processo de evolução e aperfeiçoamento permanentes”[14].
Esta questão de estarmos diante de
uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultados[15]
é também um dos pontos clássicos de abordagem desta matéria[16]
e pode ajudar no seu enquadramento[17]
(embora se possa concluir que a distinção acaba por não ter grande utilidade
prática[18]).
Será, todavia, uma forma de
facilitar a abordagem da matéria, na consciência de que já Manuel Gomes da
Silva[19]
assinalava que a distinção entre obrigações de resultado e obrigações de
meios era um “fracasso”, uma vez que mesmo nas obrigações de meios existia uma
vinculação a um fim (o interesse do credor), e que, se este se não atinge, se
presume a culpa do devedor (páginas 206 e 238 e seguintes).
Ou seja, e seguindo agora Luís Meneses Leitão, “em ambos os casos
aquilo a que o devedor se obriga é sempre a uma conduta (a prestação), e o
credor visa sempre um resultado, que corresponde ao seu interesse (art. 498.º,
n.º 2). Por outro lado, ao devedor cabe sempre o ónus da prova de que realizou
a prestação (art. 342.º, n.º 2) ou de que a falta de cumprimento não procede de
culpa sua (art. 799.º), sem o que será sujeito a responsabilidade. Não parece
haver assim base no nosso direito para distinguir entre obrigações de meios e
obrigações de resultado”[20]
Com a assertividade que o
caracterizava, Carlos Ferreira de Almeida,
escreveu mesmo que a “distinção acaba pois por ser fonte das confusões ou
imprecisões que pretenderia evitar, pelo que é preferível renunciar a ela e
estabelecer o elenco adequado dos deveres, principais e acessórios, que incidem
sobre o médico ou a unidade privada de saúde. O conceito de ‘obrigação de
meios’ poderá gerar afinal uma ideia injustificada de responsabilidade
diminuída. Colocada no âmbito adequado, como consequência da violação da
obrigação de tratar, a responsabilidade contratual do médico não deve ser
colocada em plano de exigência menor do que o correspondente a qualquer outra
obrigação”[21].
Assim, e concordando com Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Evitando-se,
como estamos convencidos de que deverá evitar-se, a contraposição entre as
obrigações de meios e de resultado, há-de distinguir-se dois tipos de
prestações.
Em primeiro lugar, há prestações de
conteúdo definido ou determinado, em que o devedor está adstrito à realização
de factos que estão “especificadamente indicados no contrato ou na lei”, e, em
segundo lugar, há prestações de conteúdo indefinido ou indeterminado, em que o
devedor se encontra adstrito à prestação de factos que não estão especificadamente
indicados. Estando em causa prestações de conteúdo indeterminado, o contrato
e/ou a lei determinam o fim da prestação e o devedor há-de determinar os meios
adequados para o realizar, ou seja: determinar o conteúdo da prestação. O caso
da obrigação do médico é o caso paradigmático, e porventura o caso paradigmático, de uma prestação
de conteúdo indefinido. Ora o conteúdo das obrigações de conteúdo indefinido
ou indeterminado determina-se por remissão para o conceito de cuidado
ou de diligência — em obrigações de conteúdo indefinido, o
devedor está, sempre e só, adstrito à mais elevada medida de cuidado exterior”[22].
A ilicitude necessária para considerar preenchido esse requisito/pressuposto da responsabilidade civil do médico, passa por considerar estarmos diante de uma acção ou uma omissão de um médico, que viole os seus deveres.
De outro modo dito, considerando estarmos diante de uma violação das leges artis, entendidas como uma desconformidade objectiva entre os actos realizado e os que seriam devidos de acordo com os conhecimentos técnicos da ciência médica à data[23], poderá dar-se como presente a ilicitude.
E poderá
tê-lo cometido por imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou inobservância
dos regulamentos, ou, muitas vezes, com estes factores misturados, sendo as
duas primeiras as mais comuns.
A imperícia
traduzida na falta dos conhecimentos técnicos adequados[25]
ou derivada uma inadequada preparação, consistindo em fazer mal o que deveria -
de acordo com as legis artis - ser
bem feito, sendo que não deve nunca o médico ultrapassar os limites das suas
qualificações e competências (artigo 11.º, n.º 1, do Regulamento
de Deontologia Médica da Ordem dos
Médicos, já acima citado e os artigos 8.º, 9.º e 15.º do Código Deontológico da
Ordem dos Médicos Dentistas vigente à data dos factos[26]).
A imprudência,
por seu turno traduzida no fazer o que não deveria ser feito (artigos 10.º, n.º
1, 8.º, n.º 1, 7.º, n.º 2 e 5.º, do Regulamento de Deontologia Médica da
Ordem dos Médicos, acima citado; e
artigos 8.º, 9.º, 15.º, 16.º, 18.º e 19.º[27] do Código
Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas vigente à data dos factos).
Conforme
afirma Mariano Yzquierdo Tolsada
“Siendo la actividad diligente el auténtico objeto de la obligación de medios,
es la culpa, y no el error, lo que genera el incumprimiento” [28].
Ou
seja, primeiro comprova-se o erro (ou se se preferir a falta de diligência).
Havendo
culpa, há incumprimento (ou se se preferir, uma prestação defeituosa).
A questão que
se coloca pertinentemente será sempre a da definição do já aqui referido “padrão
de diligência” exigível ao médico, ou do seu profissionalismo (na expressão de João Lobo Antunes).
E a
exigibilidade está intrinsecamente ligada à culpa, a qual consiste num nexo de
imputação do acto ilícito ao agente, em que não há previsão ou aceitação do
resultado antijurídico.
O acto
ilícito será imputável ao agente porque ele deveria ter actuado por molde a
evitá-lo, usando da diligência adequada[29]
[30].
Culposa não será
a omissão de qualquer precaução, mas a omissão daquelas precauções que
evitariam o dano cuja produção era provável[31].
Da conjugação
dos artigos 799.º, n.º 2 e 487.º, n.º 2, do Código Civil, resulta que a bitola
veiculada pela lei é do bom pai de
família[32]
(bonus pater familias) - que aqui utilizaremos
não na sua expressão facial/linguística, mas no seu conteúdo jurídico -, isto
é, a diligência que uma pessoa comum – médico/a – (prudente, razoável,
atenta e preocupada) teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto (“em
face das circunstâncias do caso concreto” como diz na parte final do n.º 2 do
referido artigo 487.º): se só uma pessoa particularmente displicente teria tal
conduta, estaremos perante a categoria da culpa grave ou negligência grosseira[33]
- non intelligere quod omens intelligunt).
Como é
evidente, quanto maior for o valor do bem que a conduta debitória visa produzir
ou salvaguardar, mais forte será o imperativo de cautela que recai sobre o
devedor.
Na área do exercício
da medicina, o médico deve actuar de acordo com o cuidado, a perícia e os
conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos,
razoáveis e competentes do seu tempo, o que pressupõe que o médico se mantenha
– como é seu dever estatutário – razoavelmente actualizado sobre a evolução dos
conhecimentos médicos, especialmente na sua área de actuação)[34].
Ou seja,
exige-se ao médico que actue com aquele grau de cuidado e competência que é
razoável esperar de um profissional da mesma especialidade, agindo em
circunstâncias semelhantes[35].
Desta forma e
no âmbito da responsabilidade profissional, o critério do “bom pai de família”
deve considerar-se substituído pelo padrão de conduta do bom
profissional da categoria e especialidade do devedor (competente,
prudente, razoável e informado), perante as mesmas circunstâncias factuais
e no mesmo
tempo histórico[36].
O ponto de
partida para qualquer acção de responsabilidade médica será - assim - o da desconformidade da concreta actuação do
agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico
medianamente competente, prudente e informado, com os mesmos graus académicos e
profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes, na mesma data.
Em termos
de negligência, portanto, como bem se assinala no Acórdão do STJ de 26/04/2014
(relatado por Silva Salazar), a responsabilidade do
médico pressupõe a negligência, a “violação das leges artis”, e só “tem
lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os
conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face
à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir” (disponível em www.dgsi.pt).
Há
ainda dois planos que importa ter presentes, que reflectem a violação das
referidas leges artis (quaisquer que
elas sejam): o da falta de prudência, de
diligência ou de conhecimento no apuramento do diagnóstico ou no tratamento
proposto, por um lado, e o erro de
apreciação ou julgamento, por outro[37].
Sabido
que um diagnóstico se estabelece de forma progressiva e sujeito a constantes e
sucessivas correcções sucessivas, mais do que o resultado que o médico obteve
com o doente, ou do que o médico retira dos dados a ele respeitantes por si de
certo modo o observados, o padrão atrás definido impõe que se atente nos meios
que um médico da mesma categoria, prudente e avisado, utilizaria para obter um
diagnóstico exacto e correcto e se eles foram ou não utilizados[38].
Esta
distinção radica, no fundo, na álea inerente ao exercício da medicina[39] e na
subsequente ilação de que os mais reputados mestres cometem, diariamente, erros[40] de
diagnóstico[41].
O que se impõe evitar - em qualquer caso - são os diagnósticos apressados e falta de exames ou controlo apropriado, sendo defensável afirmar que o erro de apreciação ou julgamento só será relevante se tiver sido provocado por manifesta negligência (“que o médico não tenha examinado o seu doente convenientemente, que não tenha utilizado as regras e técnicas actuais recomendáveis e disponíveis, que não tenha levado em conta os resultados dos exames complementares de diagnóstico, valendo apenas do chamado “olho clínico”, ou que tenha optado “por uma hipótese diagnóstica remota ou absurda ou que tenha ainda adoptado uma terapêutica errada ou desajustada”[42]).
João Lobo Antunes chama a atenção ainda para a distinção conceptual entre acontecimento adverso e erro, sendo o primeiro “algo que sucede na sequência de uma intervenção médica e que causa dano temporário ou permanente, ou prolonga o internamento hospitalar” e o segundo “o acontecimento adverso prevenível, que ocorre por falta de planeamento ou execução” e que “é considerado negligente quando preenche os critérios legais da negligência e se afasta portanto de padrões de prática aceitáveis”[43].
Assim,
não cumprir o tratamento
sem interrupções e/ou não o fazer exactamente da forma como o/a médico/a estipulou, caso o(s) acto(s) médico(s) não
atinjam o resultado pretendido em consequência disso, excluirá a responsabilidade do prestador
do serviço médico[44].
Com este enquadramento em termos de Direito, há que passar à apreciação do concreto objecto do presente recurso.
Aqui,
começa por se dar nota para a circunstância de estarmos perante dois Réus (o
médico que prestou os serviços e a sociedade de que é único sócio e gerente e
no âmbito, para a qual trabalha exercendo a sua actividade de dentista - Factos
1 e 2).
A segunda Ré é demandada por ser a
titular da clínica onde foram prestados os serviços médicos dentários
realizados pelo primeiro, com vista ao pagamento de uma indemnização.
Foi
à sede da segunda Ré que a Autora se dirigiu para ter uma consulta com o
primeiro Réu (Facto 5), com ele tendo 44 consultas (Facto 44) e com quem foi
acordada a colocação de implantes (Factos 5, 6, 7, 8, 9, 10), sendo realizados
tratamentos (Factos 14, 23, 32, 40, 41) e exames (Facto 43), feitas advertências
e dadas indicações quanto à higienização (Factos 24, 34, 43), feitas
recomendações (Facto 53), feita a colocação dos implantes (factos 15, 16), bem
como a colocação e recolocação de pontes (Factos 16, 17, 20, 21, 28, 29, 30,
32, 35, 36, 39), tendo feito os respectivos pagamentos (Factos 45 a 47), tudo
feito com o devido consentimento informado (Facto 56).
Assim,
não há dúvidas a suscitar quanto ao funcionamento pleno do artigo 800.º, n.º 1, do Código
Civil, no sentido de que a segunda Ré pode responder pela (eventual) prestação
defeituosa do primeiro Réu, realizada no quadro da sua oferta ao público de
serviços médicos, como se tais atos tivessem tido sido por si praticados.
A Autora quer responsabilizar os Réus
(em primeira linha, o primeiro Réu, que foi o médico que conduziu todas as
“operações”) porque o tratamento não correu bem, sofreu dores e prejuízos e as
suas expectativas não se cumpriram.
Procura encontrar um culpado, porque
“tem” de haver um culpado.
A Autora procurou esse culpado nos Réus
ao intentar este processo.
Dizia Álvaro de Campos, "Continua o
Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que
as coisas se provam"[45],
referência esta que vem a propósito do que sucedeu nos presentes autos, em que
a Autora apresentou uma versão dos factos que a comprovar-se lhe daria razão,
mas que resultou não comprovada em tudo o que respeita a uma qualquer conduta
ou má prática profissional por parte dos Réus: colocada na posição de Fernando Pessoa, a Autora, julgava
conseguir provar o que alegava, mas - efectivamente - não o conseguiu.
Efectuado o contraditório, feita uma
peritagem imparcial e produzida toda a prova, a conclusão na Sentença de 1.ª
Instância foi pela inexistência da responsabilidade jurídica das Rés pelos
problemas vivenciados pela Autora.
Compreende-se a sua combatividade. Como
a dos Réus na defesa da sua posição.
Cada um no seu papel.
Em concreto, reapreciando os factos e a leitura que deles faz a Autora-recorrente nas Conclusões que apresenta nessa apelação, só podemos concluir que:
-
confunde tratamentos com lesões,
-
ignora ostensivamente tudo o que se não provou (vd. Factos A a V),
-
omite o seu próprio contributo para o ocorrido (Factos 24, 25 e 34 – recusa de
utilização do aparelho que expressamente lhe foi dito que deveria usar - Waterpic - para higienização da boca, e
da importância desta; Factos 51, 52, 53 e 54 – não utilização - nos períodos em que não dispunha de dentes
no maxilar superior - da prótese amovível que já tinha, apesar de lhe ter sido
expressamente recomendado)[46];
e
-
afirma a existência de uma regra de leges
artis que se revelou inexistente (a de que não devia haver apenas 4 dentes
para uma ponte de 12);
-
esquece que, incidindo embora uma presunção de culpa sobre o primeiro Réu, essa
presunção é ilidível[47] (e, efectivamente,
foi-o…) e tem a seu cargo a prova da ilicitude e do nexo causal.
A
Autora haveria de ter alegado e provado uma objectiva desconformidade entre os
actos praticados e as legis artis,
assim como os danos e o nexo de causalidade entre esses actos e os estes danos,
estando a culpa presumida nos termos do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil.
Só
que a actividade do médico no tratamento prestado à Autora não foi desconforme
às leges artis (como a Perita
entendeu e o Tribunal de 1.ª Instância sufragou), não resultando concretamente
demonstrado que nem que o tratamento tivesse sido desnecessária ou inútil, ou
que sendo adequado ou necessário tivesse sido praticado
de forma deficiente ou defeituoso, ou ainda que tivessem sido omitidos
actos necessários ou adequados à situação clínica da Autora (e quais), donde
não pode considerar-se demonstrado pela Autora o primeiro dos pressupostos da
responsabilidade civil!
A
Autora olha apenas para os danos que resultaram provados e para as 44 vezes que se deslocou à Clínica, bem como
para a remoção e execução, por três vezes, da ponte
dentária superior, para
concluir que o tratamento odontológico prestado não foi correcto.
Ora,
isso não é suficiente para fundamentar a ilicitude da conduta dos Réus.
Desde
logo porque as 44 sessões
a que se sujeitou demonstram à saciedade o interesse e o esforço realizado pelo
médico para procurar alcançar o desiderato pretendido e procurar recuperar as
gengivas da Autora (mesmo quando esta não fazia o que lhe era recomendado). O
Réu parece ter feito tudo o que estava ao seu alcance e tentado tudo para que o
tratamento funcionasse.
Por outro
lado, só por si, ir a 44 consultas num dentista, para este efeito relevaria se
fossem inúteis, desajustadas ou não fizessem parte do plano de tratamento (isto
sendo certo que ir ao dentista não é – pressuposta e comummente entendido - uma
actividade agradável e prazenteira[48],
fazendo estes “incómodos” parte do que é expectável).
A principal alegação da Autora era a de que, da parte do Réu, tinha havido uma planificação errada do número de implantes a colocar face ao tamanho da prótese e à anatomia da boca da Autora.
Mas as legis artis (como resulta do Relatório Pericial) não confirmam esta tese estando confirmada a ostointegração dos implantes e a passividade da prótese.
O campo da odontologia[49] é fértil em situações duvidosas, desde logo proporcionadas pela já abordada vexata quaestio das obrigações de meios e de resultados[50]
Sendo embora necessário “fazer uma distinção entre a actividade de elaboração da prótese e a actividade de aplicação da mesma no organismo da paciente”, no “que concerne à primeira, o médico compromete-se a elaborar um dispositivo que se adeque à anatomia do concreto doente, de acordo com regras técnicas precisas, assumindo uma obrigação de resultado. No que respeita à segunda, na medida em que a aceitação ou rejeição de um corpo estranho pelo organismo depende de um conjunto de factores que o profissional não consegue controlar, a obrigação assumida deverá qualificar-se como uma obrigação de meios”[51].
In casu, não há
dúvidas de que estava em causa não a mera aplicação de uma simples prótese, mas
uma complexa e integrada operação dentária, que envolveu toda a boca da Autora
(maxilar inferior e superior) e, como tal, todo o seu organismo.
As
inflamações das gengivas de que a Autora padeceu obrigaram a que tudo tivesse
de ser repensado e a limpezas, colocações e recolocações da placa superior, sendo
certo que, admitindo-se que pudesse não estar bem, em face do estado da Autora,
foi mesmo substituída (Factos 32.º, 36.º e 39.º) e – repete-se – confirmou-se a ostointegração
dos implantes e a passividade da prótese, pelo que não derivou daqui qualquer
erro ou actividade desconforme com boas práticas médicas na área, ao tempo da
sua ocorrência.
“Todo
o médico cometeu erros de diagnóstico, enganado por vezes por sintomas atípicos
ou falsamente tranquilizadores, desconcertado por uma evolução imprevisível,
surpreendido por uma reacção desusada, ou ainda enganado pelo resultado erróneo
de um exame complementar. Quando se examina um dossier a posterior, o erro parece muitas vezes evidente, mas é
compreensível e, sobretudo, reconhece-se uma lógica total na diligência seguida
pelo médico. Nada lhe podemos censurar, a não ser um erro de apreciação ou de
interpretação. Neste tipo de situação, não existe erro, os cuidados
permaneceram vigilantes, atentos, conscienciosos”[52].
Ora,
no caso em apreço, saber se o primeiro Réu cometeu algum erro de diagnóstico,
ou algum erro na terapêutica aplicada, ou de execução dessa terapêutica, só
pode ter uma resposta negativa: nada
para isso aponta ou indicia, bem pelo contrário, pois tudo por este
profissional dentista, dentro das regras técnicas adequadas, adequado ao
conhecimento disponível sobre as características físicas da Autora, de acordo
com os conhecimentos científicos comuns disponíveis à data, tudo conjugado com a
evolução da reacção do organismo da Autora, situação que nos transporta para
uma situação, não de erro, mas de acontecimento
adverso[53].
A “actividade de um odontólogo
pode assumir uma qualidade vária, dependendo não só da tarefa que se vincula a
realizar, mas também de outros factores alguns dos quais se relacionam com o
próprio doente”[54]: e eis o ponto em que entra
não apenas o referido organismo da Autora, mas o próprio comportamento desta.
Ou seja, não
bastava o primeiro Réu ter seguido toda a praxis
exigível a um profissional da área, diante de um circunstancialismo adverso,
como a Autora deu um contributo negativo para esse mesmo circunstancialismo
(embora não se possa afirmar peremptoriamente que o ocorrido a si
exclusivamente se deveu).
De facto,
devida, expressamente e repetidamente alertada para a necessidade de uma
higienização bucodentária correcta e adequada, para evitar inflamações, dores e
sangramentos
provocados por acumulação de restos de comida
junto da prótese e para adquirir e usar um aparelho que a isso ajudaria (Waterpic) a Autora recusou fazê-lo
(Factos 24, 25 e 34).
E
como se não bastasse, contra a opinião e expressa recomendação do primeiro Réu,
seu médico dentista, não utilizou nos períodos em que não teve dentes no
maxilar superior a prótese amovível que já possuía (Factos 51, 52, 53 e 54).
Dir-se-á
que o primeiro Réu - neste preciso circunstancialismo factual - se não tivesse
feito estas advertências e indicações teria, ele próprio, violado as leges artis da sua profissão.
Dir-se-á
que a Autora estava no seu “direito” de fazer estas opções, mas são opções com
consequências[55].
À
luz do princípio da boa fé (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil) é exigido ao
paciente – no caso à Autora – “que cumpra os tratamentos prescritos, sem
interrupções injustificadas, sob pena de os desvios praticados poderem ser
considerados no âmbito do juízo de valoração da sua contribuição, enquanto
lesado (nos termos do disposto no artigo 570.º) para os danos sofridos e cujo
ressarcimento venha a reclamar”[56].
A
Autora não pode esquecer estes factos e este seu comportamento, desde logo
porque caso a violação das leges artis
por parte do primeiro Réu se tivesse comprovado, isso obrigaria no mínimo a uma
reflexão sobre uma possível interrupção do nexo causal ou uma eventual situação
de culpas concorrentes.
Tudo
considerado, nada há a apontar à Sentença sob recurso, devendo o recurso ser
julgado improcedente.
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de
Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de
Lisboa,
face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas,
em julgar improcedente a apelação,
confirmando-se a sentença recorrida.
Custas
pela apelante (artigos 527.º, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), sem
prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique
e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
Lisboa, 28 de Setembro de 2021
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Sousa
José Capacete
[1]
Manuel Carneiro da Frada, Uma «terceira via» no
Direito da Responsabilidade Civil?, Almedina, 1997, página 15.
[2]
Cfr., Menezes Cordeiro, Direito das
Obrigações, 1.º, AAFDL, 1990, página 281.
[3]
Inocêncio Galvão Telles, Direito das
Obrigações, 6.ª edição, Coimbra Editora, 1989, página 194.
[4]
Responsabilidade
Civil, 2ª edição, Quid Juris, 2009, páginas 14-15.
[5]
Das Obrigações
em Geral, I, 8ª edição, Almedina, 1994, página 532.
[6]
Excepcionalmente,
e tal como resulta do regime constante dos artigos 499.º a 510.º do Código
Civil, pode alguém ser responsabilizado, independentemente de culpa: é o caso
de responsabilidade objectiva, pelo risco, em circunstâncias nas quais, as
necessidades sociais de segurança se sobrepõem às considerações de justiça
alicerçadas sobre o plano das situações individuais (cfr., Antunes Varela, ob. cit., página 644): a "excepcionalidade dos
tipos de casos" de responsabilidade pelo risco, para além de prescindir da
culpa do lesante, não exige "sequer, como pressuposto necessário, a
ilicitude da conduta . A responsabilidade pode assentar aqui sobre um facto
natural (um acontecimento), um facto de terceiro ou até um facto do próprio
lesado. O facto constitutivo da responsabilidade deixa, pois, de ser
necessariamente, neste domínio, um facto ilícito" (ob. cit., página 649),
[7]
Dando origem,
cada uma, a um regime distinto – basicamente - quanto:
-
ao ónus da prova da culpa (artigo 799.º, n.º 1 e artigo 487.º, n.º 1, do Código
Civil);
-
a prazos de prescrição (artigo 309.º e artigo 498.º do Código Civil);
-
à responsabilidade por facto de outrem (artigo 800.º, n.º 1 e artigo 500.º do Código
Civil); e
-
à atenuação equitativa da indemnização em caso de mera culpa (artigo 494.º do
Código Civil).
Vd.,
por todos, os desenvolvimentos de Nuno Manuel Pinto Oliveira, Tópicos sobre a distinção entre a responsabilidade
contratual e a responsabilidade extracontratual, in Estudos em comemoração dos
vinte anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, Coimbra
Editora, 2014, páginas 513-526; e de
Filipe Albuquerque Matos, Traços
distintivos e sinais e contacto entre os regimes da responsabilidade civil
contratual e extracontratual. O caso particular da responsabilidade civil
médica [II], in Lex Medicinae.
Revista portuguesa de direito da saúde, ano 12.º, 2015, páginas 25-54).
[8]
Cfr., por todos,
Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade
Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, LEX, 1999, páginas 491 e
492; e Miguel Teixeira de Sousa, Concurso
de Títulos de Aquisição da Prestação – Estudos Sobre a Dogmática da Pretensão e
do Concurso de Pretensões, Almedina, 1988, páginas 136 e seguintes e 313 e
seguintes).
[9]
Essencial, Rui Torres Vouga,
A responsabilidade médica, in Responsabilidade
civil profissional, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2017, páginas
9-178, disponível na internet em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ResponsabilidadeProfissional.pdf
[consultado a 20/09/2021]; Rui Torres Vouga, A
Responsabilidade Civil Médica
(decorrente de actos
médicos praticados em
hospitais públicos), Centro de
Estudos Judiciários, Lisboa, 2018, páginas 9-96, disponível na internet em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_ResponsabilidadeMedica2018.pdf
[consultado a 20/09/2021]; Curso Complementar
de Direito da
Saúde, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2012, páginas 10-493,
disponível na internet em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/DireitoSaude/Curso_Complementar_Direito_Saude.pdf
[consultado a 20/09/2021]; Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus da
prova na responsabilidade civil médica, in
DataVenia, ano 3 (2015), n.º 4, páginas 345-380, disponível na internet
em https://www.datavenia.pt/ficheiros/edicao08/datavenia08_p005_024.pdf
[consultado a 20/09/2021]; Vera Lúcia Raposo, Do ato médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da
Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional, Almedina,
2015; Miguel Teixeira de Sousa, Sobre
o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica, Direito da
Saúde e Bioética, AAFDL, 1996, páginas 123 a 144; António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, in Colectânea de Jurisprudência, 1978,
tomo 1, páginas 335 a 355; Responsabilidad Civil por Actos Médicos – Problemas
de Prueba, Civitas, 1999 Javier Fernandez
Costales, El contrato de servicios médicos, Civitas, 1988); A responsabilidade civil
por acto médico na
jurisprudência das Secções
Cíveis do Supremo Tribunal
de Justiça (Sumários de Acórdãos
de 1996 a
Março de 2015), disponível da internet em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/responsabcivilactomedico1996Julho2015.pdf
[consultado a 20/09/2021].
[10]
“Trata-se,
afinal, de um contrato de prestação de serviços médicos autónomo, que, não
encontrando a sua regulamentação específica no Cód. Civil, não deixa, ainda
assim, de ser um contrato típico, na medida em que a sua tipicidade resulta não
da lei, mas do simples facto da sua existência na sociedade enquanto categoria
jurídica autónoma” – Rui Torres Vouga,
A responsabilidade médica, ob. cit., página 76
e doutrina e jurisprudência aí referida.
[11]
Já depois dos
factos em causa nos presentes autos (ocorridos em 2016 e 2017) foi publicado um
novo Código Deontológico da Ordem dos
Médicos Dentistas (Diário da República, 2.ª série, n.º 115, de 18/06/2019), que, quanto a esta matéria, pouco
altera.
[12]
Gilberto Freyre, Sociologia da Medicina, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1967, página 92.
[13]
A profissão de médico, in
Memórias de Nova Iorque e Outros Ensaios, Gradiva, 2002, página 249.
[14]
Direito Civil-Responsabilidade Civil, O Método do
Caso, Almedina, 2010, páginas 115 e 116.
[15]
Ricardo Lucas Ribeiro, Obrigações de Meios e Obrigações de
Resultados. Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010.
[16]
Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do
Médico-Reflexões sobre a noção de perda de chance e a tutela do doente lesado,
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Centro de Direito Biomédico,
Coimbra Editora, 2008, páginas 90 a 102.
[17]
De facto, é importante ter presente que nas
obrigações de meios não é suficiente que o credor alegue e prove a não obtenção
do resultado pretendido com a prestação, para que o não cumprimento se
considere assente. Antunes Varela,
com limpidez, conclui mesmo que não basta “alegar a morte do doente ou a perda
da acção para se considerar em falta o médico que tratou o paciente ou o
advogado que patrocinou a causa. É necessário provar que o médico ou o advogado
não realizaram os actos em que normalmente se traduziria uma assistência
ou um patrocínio diligente, de acordo com as normas deontológicas aplicáveis
ao exercício da profissão” (Das Obrigações em Geral, II, 7.ª edição,
Amedina, 1999, página 101) (carregado
nosso).
[18]
“A contraposição
entre prestações de conduta e de resultado acaba, assim, por ser linguística:
tudo está em saber qual foi a fórmula usada na fonte (normalmente, no contrato)
de onde promane a obrigação em jogo e quais as consequências porventura daí
resultantes, a nível de regime” (Menezes
Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações,
Tomo I, 2009, Almedina, página 446).
[19]
O dever de prestar e o dever de indemnizar, Volume I,
Lisboa, 1944, páginas 206 e 238 e seguintes.
[20]
Direito das Obrigações, Volume I, Almedina, 2000, páginas
124 e 125.
[21]
Os contratos
civis de prestação de serviços médicos, in
Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, 1996, páginas 75 a 120 (11-112); a questão
foi assinalada num acórdão de referência do STJ - o de 17/01/2013, relatado por
Ana Paula Boularot, disponível em www.dgsi,pt
- sobre a problemática da indemnização nos chamados casos de vida indevida ou
«wrongful life» .
[22]
Ilicitude
e Culpa na Responsabilidade Médica, (I)Materiais para o Direito da Saúde, n.º 1 · 2019, páginas 100-101. Vide, também, Rui
Torres Vouga, A responsabilidade médica, ob. cit., páginas 79 e 88 a 105, pela exaustividade e pela referência
às formas de superação desta matéria noutros ordenamentos.
[23]
Lex artis ad hoc (leges
artis) “é o critério valorativo da correcção de um concreto acto médico
executado por um profissional da medicina(ciência ou arte médica) – que tem em
conta as principais características do seu autor, da profissão, da complexidade
e transcendência do próprio acto, do estado ou da intervenção do doente, dos
seus familiares e da própria organização sanitária – destinado a qualificar o
referido acto como conforme ou não com a técnica normal requerida” (Luis Martinez-Calcerrada Y Gomez,
citados por Álvaro da Cunha Gomes
Rodrigues, in Responsabilidade
Médica em Direito Penal-Estudo dos pressupostos sistemáticos, Almedina, 2007,
página 5.
Vd.,
também, o artigo 4.º da Convenção para a Proteção dos Direitos
do Homem e da Dignidade do Ser
Humano face às
Aplicações da Biologia
e da Medicina
(Resolução n.º 2/2001, DR I-A, de 03 de Janeiro de 2001), que dá um bom
contributo também para a compreensão do conceito: “Qualquer intervenção
na área da saúde, incluindo a
investigação, deve ser efetuada na observância das normas e obrigações
profissionais, bem como as regras de conduta aplicáveis ao caso concreto” (anotado por Rui Nunes, in Direitos do Homem e
Biomedicina, Universidade Católica Editora, 2003, páginas 55 a 72).
[24]
Germano de Sousa, Negligência e erro médico, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º
6/99, Nov./Dez. 99, página 13; Acórdão do STJ de 15/12/2020, Ricardo Costa, disponível em www.dgsi.pt).
[25]
Mariano Yzquierdo Tolsada, La responsabilidad
civil del profissional liberal-Teoria General, Reus, SA., Madrid, 1989, página
284; acrescenta o mesmo Autor, que “La falta de perícia consistirá en una
inicial ineptitud para una concreta obligación”, cit., página 286.
[26]
Todos estas
regulamentações são tributárias dos mais importantes, históricos e universais
Códigos, Conselhos, Orações e Juramentos referentes à Medicina e a quem a
exerce: o Código de Hamurabi (1000 a.c.), os Conselhos de Esculápio (1120
a.c.?), o Juramento de Hipócrates (460 a.c), o Juramento de Asaph (século VI),
a Oração de Maimónides (século XII) e a Declaração de Genebra (1948),
transcritos por J. A. Esperança Pina, em A Responsabilidade dos Médicos,
LIDEL-edições técnicas, 1984, páginas 17 a 24.
[27] Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas (Diário da República, 2.ª série, n.º 143, de 22/06/1999),
alterado pelo Regulamento Interno n.º 4/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 103, de 29/05/2006:
Artigo 8.º (Dever fundamental)
1.
Todo o médico dentista tem o dever de assegurar ao seu doente a
prestação dos melhores cuidados de saúde oral ao seu alcance, agindo com
correcção e delicadeza.
2. O
médico dentista poderá ser responsabilizado pela prestação de actos
médico-dentários manifestamente desadequados, bem como pela prestação
manifestamente desadequada de actos médico-dentários, quando dadas as
circunstâncias concretas do caso lhe era objectivamente exigível a actuação de
forma distinta.
Artigo 9.º (Condições de exercício)
1. O médico dentista deve tentar assegurar as
melhores condições possíveis para a prestação dos seus actos médico-dentários,
de molde a melhor satisfazer as necessidades de tratamento do doente.
2. O
médico dentista tem o direito à liberdade de fazer juízos clínicos e éticos, e
à liberdade de diagnóstico e terapêutica, agindo, sempre, de forma
independente.
Artigo 15.º (Assistência)
1. O
médico dentista ao tratar o doente tem obrigação de administrar os cuidados
para os quais tenha formação e experiência, assumindo a responsabilidade pelos
mesmos.
2. O
reconhecimento da competência do médico dentista assenta essencialmente no
saber, competência e experiência, devendo acompanhar os mais recentes
progressos no plano da medicina dentária.
3. O
médico dentista, quando lhe pareça indicado, deve pedir a colaboração de outro
profissional ou indicar ao doente outro profissional que julgue mais
qualificado.
Artigo 16.º (Continuidade de assistência)
1. O médico dentista deve assegurar a
continuidade de prestação de serviços aos seus doentes.
2. É, porém, reconhecido ao médico dentista o
direito de recusar a continuação da prestação de assistência quando se
verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) não seja afectada a saúde do doente,
nomeadamente por lhe ser possível assegurar assistência por outro médico
dentista, de idêntica qualificação;
b) tenha prestado os esclarecimentos necessários
para a regular continuidade de tratamento;
c) tenha advertido o doente ou a família com a
devida antecedência.
3. É, ainda, reconhecido o direito ao médico
dentista de recusar a continuação de prestação de assistência a doente que,
injustificadamente, não tenha pago as despesas suportadas e os honorários de
tratamento anterior, ressalvadas as situações de urgência.
Artigo 17.º (Esclarecimento)
1. O
médico dentista deve informar e esclarecer o doente, a família ou quem
legalmente o represente, acerca dos métodos de diagnóstico e terapêutica que
pretende aplicar, bem como transmitir a sua opinião sobre o estado de saúde
oral do doente.
2. Em caso de prognóstico grave, é lícito ao
médico dentista omiti-lo ao doente, devendo, contudo, dar dele conhecimento à
família, ou ao legal representante.
3. O
médico dentista deve discutir com o seu doente o tratamento a administrar.
4. Quando possa ser administrado medicamento
ou produto relacionado com o tratamento que não seja geralmente aceite ou
reconhecido pela profissão, deve o médico dentista alertar o doente de tal
facto.
5. O
médico dentista não deve dar garantias de sucesso total das intervenções ou
tratamentos.
6. Se o doente, a família ou o legal
representante, após devidamente informados recusarem os exames ou tratamentos
indicados, pode o médico dentista recusar-se a assistir o doente.
Artigo 18.º (Métodos arriscados)
1. Antes de optar por um método arriscado de
diagnóstico ou terapêutica, o médico dentista deve obter, de preferência por
escrito, o consentimento do doente, ou de seu representante legal, se for menor
ou incapaz, ainda que temporariamente.
2. É expressamente proibido ao médico
dentista enganar a boa fé dos colegas ou dos doentes apresentando como
comprovado e sem perigo um procedimento insuficientemente experimentado.
Artigo 19.º (Tratamentos vedados ou condicionados)
1. O
médico dentista deve abster-se de quaisquer cuidados terapêuticos ou
diagnósticos não fundamentados cientificamente, bem como de experimentação
temerária ou de uso de processos de diagnósticos ou terapêutica que possam
produzir alteração de consciência, com diminuição da livre determinação ou da
responsabilidade, ou provocar estados mórbidos, salvo havendo consentimento
formal do doente ou seu representante legal, de
preferência por escrito, após ter sido informado dos riscos a que se
expõe, e sempre no interesse do doente.
2. É expressamente proibido ao médico
dentista enganar a boa fé dos colegas ou doentes sobre os cuidados referidos no
número anterior.
[28]
La
responsabilidad civil del profissional liberal, ob. cit., página 297.
[29] “Para que a
responsabilidade de um médico seja accionada (…) é preciso que se encontrem
reunidos três elementos constitutivos: um erro, um dano e o elo de causalidade
que deve reunir essas duas componentes” (Guy
Nicolas, A Responsabilidade Médica, Instituto Piaget, 1999, página 27).
[30]
Nuno Manuel Pinto Oliveira, assinala (ob. cit.,
páginas 101-102) que: “a) O princípio de que o autor tem o ónus da prova dos
factos que normalmente fazem nascer o direito invocado e o réu, o ónus da prova
dos factos que anormalmente o impedem de nascer faz com que deva distinguir-se
entre as prestações cuja margem de risco é irrelevante (cuja margem de risco é
“ínfima”) e as prestações cuja margem de risco é relevante. Em intervenções
cuja margem de risco seja irrelevante — cuja margem de risco seja “ínfima” —, a
prova de que não foi alcançado o fim pretendido pelas partes faz com que fique
preenchido o ónus da prova dos factos que normalmente fazem nascer o direito
do paciente à compensação dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, causados
pelo acto médico. Em intervenções cuja margem de risco seja relevante, não.
Em
diferentes palavras, ainda que insistindo em igual pensamento:
Em
relação aos defeitos das coisas, como, p. ex., dos instrumentos empregues, e
aos defeitos de prestações simples, cuja margem de risco é irrelevante, o
médico deve ter o ónus de alegar e de provar que actuou com a diligência
exigível. O risco de a causa permanecer desconhecida ou, na fórmula mais
impressiva de Carneiro da Frada, o risco de não esclarecimento (seguro) do
evento causador do dano deve recair sobre o médico. Em relação aos defeitos de
prestações, simples ou complexas, cuja margem de risco não é, de forma alguma,
irrelevante, o paciente deve ter o ónus de alegar e de provar que o médico não
actuou com a diligência exigível. O risco de não esclarecimento (seguro) do
evento causador do dano deve (agora) recair sobre o paciente.
b)
Esclarecida a relevância do critério da aleatoriedade, da probabilidade de o
fim pretendido pelas partes ser, ou não, alcançado, perguntar-se-á pela
relevância dos critérios do fim do acto médico ou do conteúdo do acto médico.
Estamos
convencidos de que não faz grande sentido dizer-se que há uma obrigação de
resultado em todas as intervenções não necessárias do ponto de vista da saúde.
As
intervenções não necessárias do ponto de vista da saúde, como, p. ex., as
cirurgias estéticas, podem ter uma margem de risco relevante — desde que o
paciente seja esclarecido ou informado sobre a margem de risco da intervenção,
deve considerar-se que a prova de que não foi alcançado o fim pretendido é
insuficiente.
Estamos,
em segundo lugar, firmemente convencidos de que não faz grande sentido dizer-se
que, dentro das intervenções necessárias do ponto de vista da saúde, há uma
obrigação de resultado em todas as intervenções com finalidade diagnóstica e
em (pelo menos) algumas intervenções com finalidade terapêutica”.
[31]
Ana Prata, Cláusulas e exclusão e limitação da
responsabilidade contratual, Almedina, 1985, página 298. Há culpa – refere esta
Autora – “ainda quando existiu uma vontade de cumprir, em toda a extensão
legalmente exigida (ou até ultrapassando-a), desde que a inexecução releve de
um erro de procedimento intolerável pela lei. O agente esforçou-se - no sentido
de ter aplicado uma tensão da sua vontade à execução - mas, por impreparação,
imperícia, inabilidade, não cumpriu ou cumpriu mal” (páginas 547-548).
[32] O critério é o expressamente utilizado no
nosso Código Civil, no n.º 2 do artigo 487.º, seguindo a nossa tradição do
Direito Romano, estando largamente discutido e consolidado na Doutrina e na
Jurisprudência, mas, em França, a expressão foi já – recentemente – eliminada
do ordenamento jurídico (incluindo o Code Civil), substituindo-a pela expressão
“soin raisonnable”, ou “raisonablement” (Loi n.º 2014‐873, du 4 août 2014, pour
l'égalité réelle entre les femmes et les hommes, publicada no Journal Officel
de la Republique Française a 05 de Agosto), por ser considerada em desuso,
remeter para um estereótipo masculino e uma concepção patriarcal de família,
agora incompreensível para os cidadãos e
facilmente substituível (isto apesar de – na origem – o Direito Romano lhe não
atribuir uma conotação sexista - Gema Tomás Martínez, La sustitución del «buen
padre de familia» por el estándar de la «persona razonable»: reforma en Francia
y valoración de su alcance”, in Revista de Derecho Civil, vol. 2, Nº 1,
Janeiro-Março 2015, páginas 57 a 103). Esta substituição transportou para a civil law uma expressão cara nos sistemas
de common law (“reasonable person”,
antes “reasonable man”), cujos contornos e conteúdos - embora com semelhanças -
não são exactamente iguais.
[33] Voltando a Ana Prata, ob. cit., página 771, “a
culpa grave é a qualificação jurídica da conduta omissiva (violadora) do dever
de diligência no seu mínimo conteúdo imprescindível à garantia da realização do
fim juridicamente protegido pelo comando”.
[34]
Assim, Luís Filipe
Pires de Sousa, ob. cit., página 11.
[35]
“não há um único
arquétipo, mas vários arquétipos – que corresponderão ao bom profissional
médico da concreta categoria do agente” – Rute
Teixeira Pedro, ob. cit., página 128.
[36] Carlos Ferreira de
Almeida fala
na “diligência normal de um médico daquela especialidade” (ob. cit., página
118); Miguel Teixeira de Sousa na
“diligência exigível a um profissional medianamente informado e habilitado” e
que “depende do grau de especialização do médico, pois que a um especialista é
exigível uma maior diligência no diagnóstico e na terapêutica do que a um não
especialista nessa mesma matéria” (ob. cit., página 135); Rute Teixeira Pedro “no bom
profissional da mesma categoria daquele médico, a actuar perante uma facti-species com os contornos daquela
com que o concreto agente actuou” (ob. cit., página 128); Luís Filipe Pires de Sousa no “critério do bom profissional da
categoria e especialidade do devedor
à data da prática do facto” (ob. cit.,
página 11).
[37]
Jean Penneau (La responsabilité du médicin, Dalloz, 1992,
página 23), fala de quatro circunstâncias principais em que a falha ou erro
médico pode ocorrer: no diagnóstico, na escolha dos exames ou dos tratamentos,
na sua colocação em prática e na monitorização da doença.
[38]
Jean Penneau, La responsabilité du médicin, Dalloz, 1992,
página 23.
[39]
“Todos vivemos da
esperança no progresso indefinido da medicina, e todos morremos do fracasso
dessa esperança. O médico vive, medularmente, essa ambígua e misteriosa
situação, onde se aninham em simultâneo a esperança e a desesperança, a
eficácia e a ineficácia. Possui o segredo dessa situação e sabe que o deve
guardar, que não o pode revelar por inteiro, até ao momento em que esteja
completamente seguro. E até aí quem está mais preso na magia e no mistério do
que o próprio médico? Sabe que uns se curam e outros não, que não há remédios
absolutamente eficazes, nem doenças absolutamente conhecidas. Sabe, sobretudo,
que na situação concreta de cada doente, o hão-de guiar não só os seus
conhecimentos, como os seus saberes, esses obscuros e instintivos saberes que
possuíam Hipócrates, Galeno, Sydenham e tantos outros grandes da medicina:
saberes intransmissíveis” (tradução nossa do castelhano, do Prefácio de J.
López Ibor, ao livro “Deuses e Demónios da Medicina”, de Fernando Namora,
Círculo de Leitores, 1977, página 5).
[40] Por todos, como
enquadramento, José Fragata-Luís Martins
(coord.), O Erro em Medicina-Perspectivas do Indivíduo, da Organização e da
Sociedade, Almedina, 2008; também, Mariano
Yzquierdo Tolsada, ob. cit., páginas 294-298.
[41]
“a ciência do
médico é incerta e conjectural” – Cunha
Gonçalves, Tratado de Direito Civil – em comentário ao Código Civil
Português, Volume XII, Coimbra Editora, 1938, página 756 (páginas 753 a 759
sobre a “Responsabilidade dos médicos”).
[42]
Germano de Sousa, Negligência e erro médico, in Boletim da Ordem dos
Advogados, n.º 6/99, Nov./Dez. 99, páginas 13-14; Maria Paula Ribeiro de Faria, O Erro Em Medicina e o Direito
Penal, in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano
7, n.º 14, 2010.
[43]
A Nova Medicina,
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012, página 39; também, O Erro em
Medicina, Acta Médica Portuguesa, 1993-6, páginas 43-46 (página 44, em
especial).
[44] Assim, Vera Lúcia Raposo, Do ato médico ao problema jurídico: breves notas sobre o
acolhimento da responsabilidade médica civil e
criminal na jurisprudência nacional, Almedina, 2013,
página 40.
Jose Manuel Fernandez
Hierro
(Responsabilidad Civil Medico-Sanitaria, Aranzandi, 1984, página 102) refere
que “Ainda que o mais importante dos deveres do paciente seja o pagamento dos
honorários médicos, também existe outras obrigações para o doente, como a de
seguir as instruções médicas com vista ao tratamento da doença”.
[45]
Citado por Teresa Sobral Cunha, na introdução de O
Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa,
Relógio d'Água, 1997, página ix.
[46]
De forma clara,
pertinente e assertiva, o Tribunal recorrido afirma que a Autora incumpriu as
suas obrigações “ao não efectuar uma higiene bucodentária adequada a evitar a
acumulação de restos de comida junto
da prótese e ao recusar-se a adquirir o aparelho (Waterpic) que a poderia auxiliar a isso, sendo essa uma das causas possíveis das inflamações e, consequentemente, das dores
e sangramento que ocorreram”.
[47]
A “responsabilidade
a título de risco pelos serviços médicos não se compatibiliza com a natureza do
acto médico” (STJ 25/02/2015, Armindo Monteiro, www.dgsi.pt).
[48] No seu “O velho que
lia romances de amor” (Edições ASA, 1998, 12.ª edição), Luís Sepúlveda tem este expressivo excerto “Os pacientes,
aferrados aos braços da cadeira, respondiam abrindo desmesuradamente os olhos e
a suar em bica.
Alguns
pretendiam retirar das respectivas bocas as mãos insolentes do dentista e
responder-lhe insultando-o como ele merecia, mas as suas intenções esbarravam
nos braços fortes e na voz autoritária do odontologista” (página 9), a
propósito do trabalho de uma das principais personagens do livro, o dentista
Rubicundo Loachimín (que tinha como forma de anestesia dizer aos pacientes “Já
sei que dói. E quem tem a culpa? Quem? Eu? Quem tem a culpa é o Governo! Mete
isso bem na moleirinha. O Governo é que tem a culpa de teres os dentes podres.
O Governo é que tem a culpa de te doer”).
Sobre
a dor de dentes, vide ainda este interessante estudo “Uso de metáforas para
expressar a dor de dente: um estudo na área de antropologia da saúde” (Lucas, S.D, Mattos, F.F., MELO, J.A.C,
VASCONCELOS, M., Abreu, M. H. N. G., Ferreira, N.E., Lucas, S.D., Cien Saude
Colet [periódico na internet] (2013/Ago).
[consultado a 20/09/2021]. Disponível
em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/uso-de-metaforas-para-expressar-a-dor-de-dente-um-estudo-na-area-de-antropologia-da-saude/13963?id=13963).
[49] Cunha Gonçalves dizia mesmo no seu Tratado, que o
“trabalho do dentista é, simultaneamente, científico e artístico” (ob. cit., página 759).
[50] Filipe Albuquerque
Matos (in «Responsabilidade civil médica: breves reflexões em torno dos
respectivos pressupostos» - Cadernos de Direito Privado, n.º 43, Julho/Setembro
2013, páginas 68-69) assinala que “no universo da odontologia nos parece
leviano afirmar, em termos genéricos, que os médicos assumem obrigações de
resultado. A colocação de próteses, ou certas operações onde os objectivos a
alcançar não dependem senão da competência técnica dos médicos podem
configurar-se como obrigações de resultado. Porém, certas actividades dentárias
mais complexas, porquanto se encontram dependentes de factores diversos do
estrito cumprimento das leges artis,
devem considerar-se incluídas na categoria das obrigações de meios”.
A “aplicação de próteses é, em regra, apresentada como um exemplo de
uma intervenção em que o médico se vincula à consecução de um resultado.
Trata-se, porém de uma actividade complexa, em que o profissional assume
obrigações de vária natureza” (Rute Teixeira Pedro, ob. cit., página
100).
[51]
Rute Teixeira Pedro, ob. cit., página 100;
Rui Torres Vouga, A responsabilidade médica, ob. cit., páginas 82-83.
[52]
Guy Nicolas, ob.
cit., página 29.
[53]
Situações de malapraxis odontológica podem ser
encontradas, p. ex., em Gustavo
López-Muñoz y Larraz, Negligencias en Cirugía y anestesia estéticas, Dykinson,
2008, páginas 104 a 108; Rui Torres
Vouga, A responsabilidade médica, ob. cit., páginas 82-83; no Brasil, vd. Renato Peres Vianna,
Responsabilidade Civil do Cirurgião Dentista: um equilíbrio entre o dever de indenizar, a
boa-fé do paciente e a necessidade de evitar o enriquecimento sem causa, EMERJ,
2012, páginas 12-15, disponível na internet em https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/rcursodeespecializacao_latosensu/direito_do_consumidor_e_responsabilidade_civil/edicoes/n72020/pdf/RENATO-PERES-VIANNA.pdf
[consultado a 20/09/2021].
[54]
Rute Teixeira Pedro, ob. cit., página 101.
[55]
“se os danos
para o paciente derivam da inobservância das instruções do médico é claro que
não poderá exigir ao profissional da medicina o ressarcimento de nenhum tipo de
dano ou prejuízo” – Jose Manuel Lopes
Hierro, ob. cit., página 103
(tradução nossa).
[56]
Rute Teixeira Pedro, ob. cit., página 82-83.
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