terça-feira, 19 de outubro de 2021

Decisão Singular de 06/10/2021 - fundamentação dos despachos

Decisão Singular - fundamentação dos despachos 

Sumário:

I – Deve ser proferida Decisão Sumária nos termos do artigo 656.º do Código de Processo Civil sempre que a questão a decidir seja simples, atribuindo-se a apreciação dessa simplicidade ao Relator e fornecendo-se-lhe dois exemplos-padrão: o recurso ser manifestamente infundado e a questão já ter sido jurisdicionalmente apreciada de modo uniforme e reiterado.

II – É nulo - por não cumprir as exigências de fundamentação das decisões judiciais consagradas nos artigos 205.º, n.º 1, da CRP, 6.º, n.º 1, da CEDH e 154.º e 615.º, n.º 1, b) e 613.º, n.º 3, do CPC - o despacho que, perante um pedido de esclarecimento do Agente de Execução sobre a penhora e venda de um imóvel, complementado com um requerimento do Exequente levantando questões de direito relacionadas com a legislação aplicável, se limita a dizer “Como é óbvio, só poderá ser vendida a metade do imóvel pertencente ao executado”.

 

Recurso:

                              - apresentado por quem para tal tem legitimidade (artigo 631.º, n.º 1, do Código de Processo Civil-CPC)

                              - de decisão que o admite (artigo 630.º e 644.º, CPC).

               - dirigido a este Tribunal e apresentado no Tribunal a quo, indicando espécie, efeito e modo de subida (artigo 637.º, n.º 1, CPC), contendo alegação e conclusões (artigos 637.º, n.º 2 e 639.º, ambos do CPC).

               - tempestivo (artigo 638.º CPC).

               - correctamente admitido pelo Tribunal de 1.ª Instância (artigos 641.º, 644.º, 645.º, 647.º CPC).

 

O processo está regularizado no que respeita às devidas taxas de justiça (artigo 642º. CPC).

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Tendo o processo sido distribuído ao subscritor e feita a verificação imposta pelo artigo 652.º CPC, nada obsta ao seu prosseguimento nesta Instância.

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Quando a questão em causa nos autos “seja rodeada de simplicidade na resposta, perspetivada pelo confronto com o ordenamento jurídico, pela frequência com que a mesma questão tem sido decidida em determinado sentido, pela resposta uniforme ou reiterada da jurisprudência(…)”[1], pode o Relator proferir decisão sumária, nos termos do artigo 656.º do Código de Processo Civil.

A situação dos autos (clara e objectiva em face do tipo de despacho proferido) permite (e aconselha, por mais célere) o proferimento de decisão sumária, o que se fará de seguida.

  

Decide-se na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

 

Relatório

B………………………, Lda. intentou acção executiva contra

            - V………………….., Lda.

            - C……………………

            - C…………………...

 

Na execução são credores reclamantes:

                        - B…………, SA.

                        - B…………, SA.

 

No âmbito da execução, o Agente de Execução veio solicitar ao Tribunal informação sobre a circunstância de, tendo falecido a cônjuge do executado C……………… (citada na execução por força de ter sido penhorado um imóvel deste), o que seria alvo de venda, se a sua totalidade ou o direito que pertence ao aludido executado.

Sobre essa matéria veio a exequente pronunciar-se entendendo que deveria ser vendido o imóvel na sua totalidade por se tratar de um bem próprio do executado, sendo certo que ao casamento se aplica a lei suíça.

 

O Tribunal de 1.ª Instância decidindo a questão, referiu que “Como é óbvio, poderá ser vendida a metade do imóvel pertencente ao executado ………………………. Notifique”.

           

A Exequente recorreu deste despacho lavrando as seguintes conclusões:

1 - A sentença é nula porque não contém qualquer fundamentação, como devia (art. 154.º  n.º 1 e art. 615.º n.º 1 b) do CPC).

2 - E é igualmente nula, por omissão de pronuncia, pois que não se pronunciou sobre os fundamentos alegados pela recorrente em oposto ao decidido, mas devia tê-lo feito, pois que há um dever geral de fundamentação e de pronuncia sobre as questões que deviam ser apreciadas, pelo que incorreu em omissão de pronuncia, causando a nulidade da sentença (608.º n.º 2, e 615.º n.º 1 b)).

3 - E há erro de julgamento com violação de regras de Direito probatório do art. 371.º n.º 1 do CC, relativamente ao regime de casamento do executado, o qual está provado por certidão do registo civil junta aos autos a 13-08-2018.

4 - De acordo com essa certidão o executado contraiu casamento civil, sem convenção antenupcial, na Suíça, com a falecida esposa, de naturalidade e nacionalidade Suíça, no dia 14-02-1975, em A…………, local que se situa na Suíça, Cantão …………..

5 - A regime da sucessão da falecida esposa do executado, apura-se pelos art.° 31.°, 53.º e 62.° do Código Civil Português, os quais indicam que o regime legal do casamento e a sucessão em causa, é regida pela lei pessoal da falecida que é a lei da sua nacionalidade, que a certidão comprova ser Suíça.

6 - A esse casamento, onde não houve convenção antenupcial, aplica-se o regime geral do casamento civil na Suíça, em 1975, do art. 178.º do mesmo código civil Suíço de 1907, denominado de "union des biens".

7 - Os arts. 194.° e 195.° do Código Civil Suíço em 1975, definiam o regime da união de bens, e neste último artigo no n.° 1, definia os bens próprios da mulher como sendo os que lhe adviessem durante o matrimónio por sucessão ou a gratuitamente a qualquer titulo, e o número 2, definia os bens do marido, como todos os que lhe adviessem, além de todos os outros que não fossem bens próprios da mulher.

8 - O regime suíço de bens matrimonial à data da morte da conjugue do executado, era e ainda hoje é regido pelos arts. 181.° e ss. do Código Civil Suíço de 10 de Dezembro de 1907, da versão deste decorrente da Lei Federal de 5 de Outubro de 1984, aplicável por regra a todos os casamentos anteriores, por via da disposição transitória do art. 9.°a e 9.°c do mesmo código civil Suíço.

9 - Sendo assim bens próprios os adquiridos por doação, nesse regime de casamento do direito suíço, tal como no regime de comunhão de adquiridos do direito nacional.

10 - Logo sendo o bem adquirido por doação o direito do executado é sobre a totalidade do imóvel, sendo que da certidão de registo predial, junta aos autos e do auto de penhora, decorre uma realidade, é a de que o imóvel foi penhorado na sua totalidade, em 2006.

11 - E tendo posteriormente sido notificada a esposa de executado da penhora, nada tendo sido requerido pela mesma,

12 - Pelo que o bem que foi penhorado na totalidade, só pode ser vendido na totalidade que é o direito do executado sobre o mesmo, pelo que:

13 - Devendo ser revogada a sentença ora recorrida, substituindo-se por outra que aplicando o direito, substituindo-se ao tribunal recorrido decida logo a questão, sobre a parte do imóvel penhorado a ser vendida, ao abrigo do art. 665.º, n.º 1, 2 e 3 do CPC.

 

Não foram apresentadas contra-alegações.

 

Decisão Sumária (artigo 656.º do Código de Processo Civil)

Permite o Código de Processo Civil no seu artigo 656.º que nas situações em que o relator entenda que a questão a decidir é simples (por ser “rodeada de simplicidade na resposta, perspetivada pelo confronto com o ordenamento jurídico, pela frequência com que a mesma questão tem sido decidida em determinado sentido, pela resposta uniforme ou reiterada da jurisprudência(…)[2]), julgue o objecto do recurso sumária e individualmente.

O requisito fundamental para a utilização deste mecanismo é a questão ser simples, entregando-se essa apreciação ao relator do recurso e fornecendo-lhe dois exemplos-padrão do que se pode entender como “questão simples”:

            - o recurso ser manifestamente infundado;

            - a questão já ter sido jurisdicionalmente apreciada de modo uniforme e reiterado.

 

No caso dos autos, a questão inicial prende-se com a ausência de motivação de um despacho judicial de duas linhas proferido num processo de execução, do qual foi interposto recurso, não tendo havido contra-alegações.

 

O recurso reporta-se assim a uma questão particularmente simples em face da clara ausência de fundamentação da decisão em causa e da necessidade de imprimir celeridade ao processo

 

 

Questões a Decidir

São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina, 2018, pág. 115), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.

 

Assim, em causa nestes autos estará a decisão quanto às seguintes questões:

            - ausência de fundamentação da decisão de 1.ª Instância;

            - acerto da decisão proferida e sua eventual alteração em sede deste recurso.

 

Cumpre decidir.

 

Enquadramento fáctico

Com relevo para a decisão da causa e em face da prova documental junta (certidão contendo requerimento do Agente de Execução; requerimento do exequente; despacho do Tribunal), resulta provada, com relevo para a decisão, a seguinte factualidade:

1 – O Agente de execução solicitar esclarecimentos ao Tribunal sobre a incidência da penhora e posterior venda do imóvel penhorado ao executado C………………………, tendo em conta que este à data da penhora estava casado, com S…………………… (a qual faleceu em 06-07-2015) nos seguintes termos:

“Está penhorado no presente processo o imóvel descrito na 2° CR Predial do Porto sob o n° 3……., freguesia de M……………, pertença do executado C……………...

A conjugue do executado foi citado e nada veio dizer aos autos.

No decorrer das notificações para modalidade e valor base de venda deste imóvel, o AE tomou conhecimento do óbito da conjugue do executado.

Conforme despacho de 25-05-2018, que me foi notificado pelo ofício 377145842 de 04-06-2018 e através da comunicação a AE do mandatário da exequente de 10/07/2018 e existindo herdeiros da conjugue falecida, sou a solicitar esclarecimentos se o imóvel será alvo de venda pela sua totalidade ou pelo direito que pertence ao executado”.

2 – A exequente pronunciou-se em requerimento avulso, defendendo que o regime legal do casamento do executado com a sua falecida cônjuge, bem como a sua sucessão, são regidos pela lei pessoal da falecida mulher do executado, ou seja, pela lei Suíça, pelo que tendo o imóvel penhorado sido adquirido por doação, o mesmo é um bem próprio deste e, como tal, em face do artigo 198.º, n.º 2, in fine do Código Civil Suíço, todo ele pertencia em exclusivo ao executado, pelo que deverá ser vendido na totalidade.

3 – Por Despacho proferido a 15/07/2019, o Tribunal a quo decidiu quanto ao requerimento referido em 1 da seguinte forma: “Como é óbvio, só poderá ser vendida a metade do imóvel pertencente ao executado ……………………………. Notifique”.

 

 Enquadramento Jurídico

A “decisão judicial não é o resultado de uma tarefa mecânica. A adopção de uma decisão tomando como referência os enunciados jurídicos é sem dúvida um acto no qual existe sempre uma certa margem de valoração, pelo que a manifestação dessa decisão e das suas referências é essencial para favorecer a eficácia do Direito através do conhecimento do seu significado nos casos concretos.

A satisfação desta exigência tanto se justifica do ponto de vista da “eficácia técnica” (ao satisfazer as exigências de coerência, publicidade e submissão ao Direito), como do da “eficácia real” (ao satisfazer o requisito da submissão à legalidade”[3] (tradução nossa).

 

 “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Este é o teor do n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.

Trata-se de uma norma básica e estruturante para a existência de um Estado de Direito democrático, cumprindo, nas palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, “simultaneamente, uma função de carácter objectivo – pacificação social, legitimidade e auto-controlo das decisões – e uma função de carácter subjectivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários”[4] [5].

 

Miguel Teixeira de Sousa alerta para o facto de estarmos diante de um “corolário do processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, CRP; TC 55/85; TC 310/94), dado que dá a perceber as razões do deferimento ou do indeferimento do requerimento ou da procedência ou improcedência da acção e permite controlar o iter decisório, nomeadamente por um tribunal de recurso”[6].

 

A Constituição remete para a lei ordinária mas, por via da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[7] e do seu artigo 6.º, n.º 1[8], chegaríamos às mesmas conclusões, como decorrência do processo justo e equitativo, que exige que o tribunal efectue “um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done)”[9].

Marco Carvalho Gonçalves, no Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, sintetiza a ideia de que, na “verdade, a exigência de fundamentação das decisões judiciais cumpre duas finalidades essenciais: por um lado, permite impedir o proferimento de decisões totalmente arbitrárias, isto é, sem qualquer adesão ou conexão com a matéria factual que resultou demonstrada em sede de instrução e de julgamento; por outro lado, faculta às partes a compreensão das razões pelas quais o tribunal decidiu num determinado sentido, viabilizando, dessa forma, a possibilidade de sindicarem o mérito da decisão em sede de recurso”[10].

 

Em todo o caso, a lei interna (no caso, leia-se, o Código de Processo Civil) vai na mesma linha, como o demonstram os artigos 154.º (Dever de fundamentar a decisão)[11], 615.º, nº 1, alínea b) (Causas de nulidade da sentença)[12] e 613.º, n.º 3 (que estende o regime também aos despachos).

Esta é uma matéria relativamente pacífica na nossa doutrina processualista civil e já José Alberto dos Reis, sublinhava que é por via do trabalho de interpretação e aplicação que se consegue com a fundamentação, que “se forma a jurisprudência e que esta se vai uniformizando e adaptando às novas condições e necessidades do meio social”[13], pelo que a “exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser”[14], acrescentando ainda que “desde que o nosso sistema é de legalidade; o juiz tem de demonstrar que decidiu em conformidade com a lei”[15] (“ainda que o pedido não seja controvertido, ou que a questão não suscite qualquer dúvida”, fundamentando sempre “nos termos adequados ao caso”, em função da “complexidade das questões ou da maior ou menor discussão que exista na jurisprudência ou na doutrina acerca das mesmas”[16]).

 

O Acórdão da Relação de Porto de 19/10/2015 (Carlos Querido) resume o acabado de expor, quando assinala que “o dever de fundamentação das decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, consagrado no art. 205.°/1 da CRP e no art. 154.° do CPC, para além de legitimar a decisão judicial, constitui garantia do direito ao recurso, na medida em que só é viável uma eficaz impugnação da decisão se o destinatário tiver acesso aos seus fundamentos de facto e de direito. Tal dever cumpre-se sempre que a fundamentação da decisão judicial, apesar de algum eventual défice, permite ao destinatário a percepção das razões de facto e de direito, revelando o iter «cognoscitivo» e «valorativo» que a justifica”[17].

 

Fundamentar, motivar, corresponde assim à justificação das razões pelas quais se decidiu de numa forma e não de/a(s) outra(s).

 

De assinalar, em todo o caso, como sublinha Miguel Teixeira de Sousa (em anotação ao artigo 154.º do Código de Processo Civil) que a “fundamentação da decisão está submetida à proibição da prática de actos inúteis (art. 130.º), pelo que não é necessário fundamentar a decisão sobre o que não for controverso. Em contrapartida, é necessário fundamentar toda a decisão sobre tudo o que, sendo relevante, também é controverso”[18].

 

Sublinhe-se ainda que, numa decisão judicial, usando as palavras de Michele Taruffo, “como qualquer texto (a mesma coisa valeria para um romance ou para uma poesia), a motivação não reproduz e não conta os procedimentos mentais, a sequência de pensamentos e de estados psicológicos que conduziram o autor a construí-lo. O texto é o produto de uma atividade que pode até ser bastante complexa, mas não é a descrição ou a reprodução dessa atividade(...), não é um detalhamento do assim chamado iter lógico-psicológico que o juiz seguiu para chegar à formulação final da sua decisão. À parte o fato de que isso seria impossível (por razões óbvias), não interessa a dinâmica das sinapses ocorridas nos neurónios do juiz, e nem mesmo importam os seus humores, sentimentos, e tudo o mais que pode ter ocorrido in interiore homine[19].

 

O essencial é que estejamos diante de um texto que, relativamente à concreta matéria que esteja para decisão, a identifique e a decida, de forma a que seja possível - de forma racional - compreender minimamente em que é que a decisão se baseou (o que implica requisitos formais e materiais ou de substância)[20].

“A motivação formal exige a presença de enunciados (pretensamente justificatórios), ao passo que a existência da motivação substancial se baseia nos significados (realmente justificatórios) dos enunciados formulados”[21].

*

Entrando a decidir.

A situação que se apresenta para decisão nestes autos não suscita grandes dúvidas: perante um pedido de esclarecimento formulado pelo Agente de Execução quanto à venda de um determinado bem penhorado (se se venderia a totalidade ou apenas parte, em face do óbito do cônjuge do executado) e perante um requerimento da exequente a defender que o bem teria de ser vendido na totalidade (argumentando tratar-se de um bem próprio do executado, em face da lei pessoal – suíça – aplicável ao seu casamento e à sucessão mortis causa da sua cônjuge), decidindo a questão, o Tribunal a quo, despachou dizendo que “Como é óbvio, só poderá ser vendida a metade do imóvel pertencente ao executado Carlos Manuel Pereira Correia. Notifique”. 

“Como é óbvio” transporta-nos para uma ideia de evidência, ou de prática de acto inútil, nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil[22], mas que não tem cabimento na situação em apreço.

Evidência é, por certo, com verdade, o termo da linguagem filosófica mais bem instalado na linguagem de todos os dias.(…) É evidente o que dispensa uma prova. É verdadeira a descrição daquilo que é; a evidência é uma verdade redobrada, uma afirmação que não precisa de justificação”, dizia Fernando Gil, no seu Tratado da Evidência[23]. E acrescentava (já noutra obra), numa “formulação como isso é evidente, isso, o sujeito, está no lugar de uma proposição indiscutível ou de um facto manifesto, é uma certa experiência do pensamento e  do mundo que sentimos como evidente”[24].

De outra forma situamo-nos no campo da fé, “sem qualquer nota característica que a distinga de uma crença ou de uma convicção mais ou menos arbitrária”.[25]

 

Ou seja, não era nada evidente, nem óbvia, a parte decisória (a única, aliás) do despacho (“só poderá ser vendida a metade do imóvel pertencente ao executado”), porque não conhecemos os argumentos em que se baseou, sendo certo que nos movemos numa matéria em que havia dúvidas do Agente de Execução e divergência por parte da Exequente.

 

Impunha-se que o Tribunal, estando em causa matéria de direito, fundamentasse justificando a aplicação de determinado regime jurídico[26].

Uma “decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos”[27], dizia José Alberto dos Reis, e, in casu, ficamos sem se saber quais são, sem saber com base em que argumentos, com assento em que razões, com base em que premissas, se decidiu da forma que se decidiu (sendo certo que a Exequente havia explanado com clareza as suas razões e o seu entendimento, correcto ou não).

O porquê da decisão não é, pois, apresentado, omitindo-se totalmente[28], não apenas a motivação formal, como a substancial[29], tratando-se de  “uma decisão sem fundamentos” o que “equivale a uma conclusão sem premissas”, a “uma peça sem base”[30].

 

A decisão do Tribunal a quo até poderá estar correcta em termos de Direito, mas só o saberíamos se pudéssemos apreciar a argumentação utilizada, por pouca que fosse.

 

É uma situação extrema (falta total de fundamentação) e que estará por certo ligada ao volume de serviço brutal a cargo do Juízo de Execução em causa (repare-se que o despacho recorrido data de 15/07/2019 e o pedido de informação do Agente de Execução de 16/07/2018), mas impõe-se, com celeridade, constatar a nulidade do despacho em causa, ficando – como é óbvio, agora sim – prejudicada a análise das restantes conclusões da recorrente, uma vez que o Tribunal não pode substituir-se a uma decisão que ainda não existe: só perante uma decisão da 1.ª Instância sobre a matéria e perante os seus fundamentos, o Tribunal da Relação sobre ela se poderá (apresentado recurso se caso disso for) pronunciar.

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Face ao exposto, dúvidas não restam de que, em face da sua total ausência de fundamentação, o despacho sob recurso é nulo, nos termos dos artigos 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 154.º e 615.º, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 613.º, n.º 3, do Código do Processo Civil.



DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos dos artigos 663.º e 656.º do Código de Processo Civil, decide-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida às disposições legais citadas, julgar procedente o recurso e, em conformidade, declarar nulo o despacho proferido a 15 de Julho de 2019, o qual haverá de ser substituído por outro que fundamente o que vier a decidir sobre a matéria em causa.

Sem Custas.

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Registe e notifique

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Lisboa, 06 de Outubro de 2021

 

Edgar Taborda Lopes



[1] A.Abrantes Geraldes-P.Pimenta-L.F.Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, 2.ª edição, Almedina, 2020, página 819; A.Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, páginas 268 a 271.

[2] A.Abrantes Geraldes-P.Pimenta-L.F.Pires de Sousa, ob. loc. cit..

[3] Rafael de Asis Roig, La motivación de las decisiones judiciales, in La justicia procesal, Cuadernos de Derecho Judicial, VI-2008, CGPJ-Escuela Judicial, 2009, página 244.

[4] Constituição da República Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, página 70. Sobre a jurisprudência do Tribunal nesta matéria, vd. José Lebre de Freitas-Cristina Máximo dos Santos, O Processo Civil na Constituição, Coimbra Editora, 2008, páginas 50-51 e 156-160.

[5] No mesmo sentido Antunes Varela-J.M.Bezerra-Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, página 689.

[6] Miguel Teixeira de Sousa, CPC on line (versão 2021.10) [anotação ao artigo 154.º], disponível na internet no Blog do IPPC, em https://blogippc.blogspot.com/ [consultado em 06/10/2021).

[7] Que por força dos artigos 8.º, n.º 2 e 16.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, vigora directamente na nossa ordem jurídica e num plano superior ao das leis ordinárias internas.

[8] “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça”.

[9] Acórdão da Relação de Lisboa de 16/02/2016 (Rijo Ferreira), disponível in www.dgsi.pt.

[10] Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais (organizado por Paulo Pinto de Albuquerque), Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2019, página 954 (bem como a jurisprudência do TEDH aí citada).

[11]1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.

[12]1 - É nula a sentença quando:

a) (…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;(…)”.

[13] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição-reimpressão, Coimbra Editora, 1982, página 285.

[14] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1945, página 172.

[15] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, cit., página 284.

[16] A.Abrantes Geraldes-P.Pimenta-L.F.Pires de Sousa, ob. cit., página 199.

[17] Vd. também RC 08/07/2021, António Carvalho Martins.

[18] Miguel Teixeira de Sousa, CPC on line (versão 2021.10) [anotação 4 ao artigo 154.º], disponível na internet no Blog do IPPC em https://blogippc.blogspot.com/ [consultado em 06/10/2021).

[19][19] Michele Taruffo, Uma simples verdade-O Juiz e a construção dos fatos, Marcial Pons, 2012, página 271.

[20] A decisão é um resultado, é a conclusão de um raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge” - José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1945, páginas 172-173

[21] Juan Igartua Salaverría, La motivación de las sentencias, imperativo constitucional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2003, página 204.

[22] Vd. nota 18.

[23] Fernando Gil, Tratado da Evidência, INCM, 1996, página 9.

[24] Fernando Gil, Modos da Evidência, INCM, 1998, página 86.

[25] Ob. loc. cit..

[26] Assim, Miguel Teixeira de Sousa, CPC on line (versão 2021.10) [anotação 9, ao artigo 154.º], disponível na internet no Blog do IPPC em https://blogippc.blogspot.com/ [consultado em 06/10/2021).

[27] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, cit., página 172; Código de Processo Civil Anotado, Volume V, cit., página 139.

[28] A posição clássica assenta em José Alberto dos Reis (“Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade” - Código de Processo Civil Anotado, Volume V, cit., página 140).

Todavia, Miguel Teixeira de Sousa, entende que esta orientação – espelhada também nos Acórdãos do STJ de 08/10/2020 e 10/05/2021, bem assim como em A.Abrantes Geraldes-P.Pimenta-L.F.Pires de Sousa, ob. cit., páginas 199 e 763 – “é muito discutível, dado que não de se deve entender que é apenas quando falta a fundamentação da decisão que se verifica o vício de nulidade - CPC on line (versão 2021.10) [anotação 9, ao artigo 154.º], disponível na internet no Blog do IPPC em https://blogippc.blogspot.com/ [consultado em 06/10/2021).

[29] “A omissão formal da motivação produz-se quando da sentença consta apenas uma parte dispositiva (a decisão) sem que nela haja rasto de prosa supostamente motivatória” - Juan Igartua Salaverría, ob. cit., página 204.

[30] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, cit., página 139.

Na Impugnação de Deliberações de Condomínio, os condóminos, mesmo sendo partes podem depor como testemunhas

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